Alguns gêmeos com Zika têm microcefalia, mas seus irmãos não. Por quê?
Mayana Zatz, da USP, descobriu que a microcefalia não é aleatória: há 60 genes que, quando não funcionam tão bem, tornam alguns bebês mais propensos que outros a sofrer as consequências do vírus
Nem toda grávida infectada com o vírus Zika dá a luz a bebês com microcefalia – ou outros problemas congênitos associados a doença, como surdez e cegueira. De fato, os bebês de mães que têm o vírus só nascem com má-formações em algo entre 6% e 12% dos casos.
Esse número levou Mayana Zatz, pesquisadora da USP, a levantar a hipótese de que o vírus, sozinho, não basta – os genes de cada criança também teriam alguma responsabilidade, tornando-as mais ou menos predispostas a nascer com microcefalia.
Acertou: em um estudo divulgado no último dia 2, ela e sua equipe listam um grupo de 60 genes que, nos bebês afetados, não produzem tantas proteínas quanto deveriam – no jargão, se diz que sua expressão é reduzida. Em outras palavras, 60 genes mais suscetíveis ao vírus que a média.
Fazer uma descoberta dessas não é fácil – não dá para simplesmente comparar dois bebês. Afinal, mães diferentes têm sistemas imunológicos diferentes, gestações diferentes e podem até ter sido infectadas por linhagens um pouquinho diferentes do vírus. Com tantas variáveis em jogo, fica difícil isolar o quê pode ser atribuído exclusivamente ao DNA de cada criança.
A melhor forma de evitar esse empecilho é estudando e comparando gêmeos não-idênticos – isto é, que não tem o mesmo DNA, mas que compartilharam todo o resto: a mesma barriga, o mesmo ambiente e até, em caso de infecção, o mesmo vírus. Assim, se um deles nasce com microcefalia e o outro não, a única explicação possível está nos genes.
“Nós averiguamos noves pares de gêmeos, e conseguimos material genético de oito deles”, contou ela à SUPER. “Viajamos pelo Brasil todo, e trouxemos até alguns gêmeos ao laboratório, para coletar o sangue nas melhores condições possíveis.” Desses gêmeos, dois eram idênticos – isto é, produzidos a partir da divisão de um único óvulo, já fecundado. Os outros sete eram fraternos – gerados cada um a partir de um óvulo. Todos haviam sido expostos ao vírus Zika durante a gestação.
O próximo passo foi levar o sangue dessas crianças para o laboratório. Ele foi usado para gerar células pluripotentes – células coringa, que podem assumir qualquer função no organismo. A partir delas foram geradas células um pouco mais específicas, chamadas células progenitoras neurais (NPCs).
As NPCs são os tijolos de que é feito nosso sistema nervoso. Conforme o feto se desenvolve, elas vão se deslocando, se especializando e formando diferentes partes do cérebro. É aí que o vírus atua – evitando que essas células se reproduzam e se especializem corretamente.
Zatz criou colônias dessas células, chamadas neuroesferas. Cada uma de um bebê. E as expôs ao vírus. Não deu outra. “Logo de início nos chamou a atenção o fato de que o vírus se replicava muito mais rapidamente nas NPCs dos bebês com microcefalia”, afirmou a pesquisadora. “Além disso, essas células se proliferavam menos e morriam mais que as dos bebês não afetados. Parece que conseguimos reproduzir in vitro o que ocorreu in vivo“. Os pesquisadores assistiram, no laboratório, ao que ocorreu no útero: as células de alguns bebês resistem naturalmente ao Zika.
Comprovada a predisposição genética, restava dar nome aos genes. Eram muitos – problemas complexos não são explicados por heranças simples, como a das ervilhas de Mendel. Dois dos principais se chamam DDIT4L e LHX2, e se expressam respectivamente 12,6 e 9,6 vezes menos nos bebês afetados. Eles estão relacionados a processos de divisão de células, morte de células e sua diferenciação. De maneira simplificada, quando eles não atuam com a eficiência necessária, fica mais difícil para o embrião desenvolver um cérebro perfeito. O vírus faz esse problema se manifestar – da mesma maneira que uma pessoa com histórico familiar de diabetes se põe em risco quando não tem uma dieta equilibrada.
“Eu sou meio suspeita para falar, mas acho que nós e outros pesquisadores fizemos trabalhos [sobre Zika] de grande impacto no Brasil”, afirma Zatz. “Esse estudo teve uma repercussão internacional gigantesca. Conseguir essas amostras deu muito trabalho, e nós usamos tecnologia de primeiro mundo.” Se um dia for desenvolvida uma vacina contra o Zika, saber identificar os genes suscetíveis pode garantir que as pessoas certas serão imunizadas.