As mutações genéticas de Edward Lewis: a ciência de um provocador
O cientista americano Edward Lewis provoca mutações nos genes que coordenam a formação do corpo nas moscas Drosophila. Com isso, ele vem decifrando o desenvolvimento dos embriões na evolução das espécie
Lúcia Helena de Oliveira
São tantos vidros espalhados por prateleiras, revestindo as paredes do chão ao teto, que eventuais visitantes talvez mal notem uma flauta e pilhas de partituras, no canto da sala Durante uma hora, todos os dias, o laboratório do geneticista americano Edward Lewis se transforma em local de ensaio — a música é a sua segunda paixão. Em primeiro lugar, empatam a esposa, Pamela, e as moscas. Ela é uma artista bissexta, que pega em tintas e pincéis para registrar, com traço bem-humorado, os estranhos insetos criados pelo marido — alguns com pares extras de asas, outros com patas fora de lugar, exemplares guardados com carinho naquelas dezenas de recipientes. Os olhos do professor de 72 anos brilham quando mostra, no microscópio, esses animais estranhos — “há mais de quarenta anos, estudo essas mutações na construção do corpo”, conta Lewis, um dos geneticistas mais premiados dos Estados Unidos. Professor do lnstituto de Tecnologia da Califórnia, com sede em Pasadena, onde trabalha desde 1948. ele acompanhou passo a passo as principais revelações sobre os genes homeóticos. Daí motivo de ser um dos mais respeitados especialistas no tema
Em todas as espécies, os genes que decidem como será construído o organismo são os mesmos. E admirável que os chamados genes homeóticos saibam, por exemplo, onde se deve fazer a cabeça humana, e não o tórax, e onde se deve fazer a cabeça da mosca, e não o primeiro par de patas. É ainda mais admirável que, nos dois organismos, esses genes (bolas coloridas) sejam idênticos e ocupem a mesma posição no cromossomo. Assim como, provavelmente, seguem sempre o mesmo roteiro para entrar em cena. Isso acontece nos estágios iniciais do desenvolvimento do embrião, quando este não é mais do que um aglomerado com cerca de mil células, indiferenciáveis entre si. Cada célula carrega em seu núcleo todas as informações sobre o organismo de que faz parte, embora não vá precisar da maioria delas. Mas isso — o que interessa ou não a determinada célula — são os genes homeóticos que resolvem. Não é à toa que os cientistas costumam chamá-los de genes espertos.
SUPER — O que torna os genes homeóticos tão espertos?
LEWIS — Eles contêm uma seqüência muito especial de moléculas de DNA, que conhecemos por homeobox. Esse trecho específico é responsável pela síntese de uma proteína, que funciona como uma chave, capaz de ligar ou desligar outros genes.
SUPER — Como isso é possível?
LEWIS — A proteína do homeobox pode grudar em pontos diferentes dos cromossomos e os genes que estiverem ali, nesses locais de contato, entrarão em ação. Por exemplo: em certas células, essas proteínas se ligam aos genes que carregam informações sobre os olhos; todos os outros genes, como os que determinam a cor dos cabelos, permanecem desligados. Neles, a ausência da proteína do homeobox é interpretada como ’ok, você não precisa fazer nada’. Os genes homeóticos dão ordens e os outros genes, ativados ou não por eles, cuidam da construção, propriamente dita, dos diversos órgãos.
SUPER — E qual seria a primeiríssima ordem desses genes no comando?
LEWIS — Primeiro, eles estabelecem que um lado do ovo será frontal e o outro, dorsal. Essa diferenciação é marcada por uma proteína, chamada bicóide, que se acumula nas células destinadas à área frontal. Um segundo sinal recruta células para formar a parte superior do corpo e outras para a região inferior. Quando isso tudo já está feito, aparecem três grandes segmentos — um para a cabeça, um para o tórax e outro para o abdome. As espécies sempre obedecem a esse projeto, até mesmo uma minhoca, embora a gente mal consiga notar sua cabeça. Sinal de que o modelo de corpo com três segmentos básicos mostrou uma eficiência imbatível na evolução. Esses segmentos se subdividem para formar as diversas estruturas do corpo. O embrião humano, claro, possui mais subdivisões do que o da minhoca, porque o seu design final implica uma enorme quantidade de detalhes.
SUPER — São os genes homeóticos que cuidam desses detalhes?
LEWIS — Não, eles disparam uma reação em cascata. Desse modo, três genes ordenam a diferenciação de uma cabeça o que aliás parece ocorrer em primeiro lugar. Esses mesmos genes ativam cerca de outros dez que criarão os olhos; estes, uma vez acionados, começam a produzir proteínas similares às do homeobox, para ligar mais cem genes e assim por diante. Quanto mais complexo é o organismo, mais genes são recrutados nessa cadeia.
SUPER — Por que os braços e as pernas dos seres humanos são considerados um enigma?
LEWIS — Porque ninguém sabe ao certo quais segmentos Ihes deram origem. É bom esclarecer que os braços e as pernas do homem não têm a ver com as patas das moscas. Estas se originam de três subdivisões do segmento do tórax; no embrião humano, existem trinta subdivisões nesse mesmo segmento, que formam as costelas. Portanto, o origem das patas dos insetos é a mesma desses ossos.
SUPER — Apesar dessas diferenças, os genes homeóticos são idênticos na mosca e no homem?
LEWIS — Sim, eles desencadearam o surgimento do tórax nas duas espécies; as estruturas que aparecem em fase posterior do desenvolvimento embrionário é que podem divergir, por causa de diferenças entre os genes que obedeceram àqueles primeiros.
SUPER — Não existe mesmo nenhuma diferença?
LEWIS — Existe uma diferença de quantidade. Enquanto a mosca possui um par de cada grupo de genes homeóticos, os seres humanos carregam quatro pares. A provável razão disso é que as cópias extras seriam garantia importante. Assim, se um gene não der o comando para criar algum detalhe do ouvido, por exemplo, haverá ainda outros três comandos corretos. E um cerco de cuidados para construir um corpo perfeito.
SUPER — Como o senhor consegue observar a ação desses genes?
LEWIS — Eu retiro ou altero genes do ovo da Drosophila, por exemplo, para observar as mutações que ocorrem no embrião. Assim, posso determinar exatamente onde aquele gene está atuando. Como a gente sabe que os genes homeóticos são iguais em todas as espécies, podemos chegar a conclusões importantes sobre o desenvolvimento do embrião humano. Aliás, acho que é por isso que tanta gente está interessada em minhas moscas.
SUPER — Qual o significado dos genes homeóticos serem idênticos no homem e na mosca?
LEWIS — Em primeiro lugar, significa que as duas espécies possuem um ancestral em comum, provavelmente parecido com uma minhoca. Mas os genes homeóticos, em si, devem ser ainda mais antigos do que esse próprio ancestral. Trata-se de vitoriosos no processo de seleção, porque muita coisa foi mudando e eles permaneceram inalterados, de espécie para espécie.
SUPER — Esses genes teriam aparecido na mesma época?
LEWIS — É provável. Sabemos que devem ter se originado a partir de um único gene, porque são muito semelhantes entre si. Eles são os genes mais antigos que carregamos em nosso organismo. E é isso, particularmente, o que me fascina.
SUPER — O principal interesse do senhor não seriam as fases do desenvolvimento dos embriões?
LEWIS — Não, isso é um aspecto secundário do meu trabalho. Ao iniciar o seu desenvolvimento, o embrião humano lembra uma minhoca; depois, fica parecido com um peixe. E assim vai, refletindo todas as etapas da evolução das espécies. Uma teoria é de que, há milhões de anos, existiam genes que apenas diferenciavam a cabeça do restante do corpo. Portanto, os genes envolvidos com cabeça devem ser mais antigos do que outros genes. Depois, apareceram os genes que formam os olhos, porque algumas espécies muito primitivas de minhocas marinhas possuem olhos. Ou seja, ao compararmos o surgimento de espécies na Terra com o desenvolvimento dos embriões, conseguimos presumir a ordem em que os genes foram aparecendo. E, a partir disso, investigar como um gene pode dar origem a novos genes, em um interminável processo da evolução.
Para saber mais:
A vida dentro de um ovo
(SUPER número 6, ano 5)