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Biotérios quatro e cinco estrelas

Cama trocada todos os dias, água limpíssima, refeições preparadas com esmero, ar absolutamente puro - tudo isso devem oferecer os locais em que se criam animais para experiências científicas.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h47 - Publicado em 31 ago 1991, 22h00

Lúcia Helena de Oliveira

Ali, não é qualquer um que consegue entrar e nem se entra de qualquer jeito. Primeiro, o visitante abandona os sapatos, pula o muro de 0,5 metro e apanha chinelos. Então, um corredor comprido conduz ao banheiro, onde quatro duchas, juntas, expulsam do corpo nu a sujeira vinda de fora. Uma roupa esterilizada fica à espera. De banho tomado e vestida como um cirurgião, a pessoa abre a porta que dá para um cubículo, menor do que um elevador, decorado apenas com um interfone. Ela, assim, pede autorização para passar e, se a resposta é positiva, recebe jatos de ar, que correm do teto em direção ao chão, para varrer eventuais clandestinos, como insetos —afinal o banheiro ainda fica em uma área considerada suja. Só quando se destranca a outra porta do cubículo, oposta à primeira, é que se vai para a chamada área limpa, freqüentada apenas por quem passou por todo esse ritual e pelos animais destinados a experiências científicas.

Esse é o roteiro de quem visita o biotério central da Universidade de Campinas (Unicamp), no interior de São Paulo, um dos raros exemplares brasileiros que seguem os padrões internacionais estabelecidos para esses locais de criação. “As portas que interrompem o percurso têm maçanetas eletrônicas, acionáveis só de um lado— o de entrar, nunca o de sair. É um caminho sem volta”, explica a bióloga Delma Pegolo Alves, que coordena o setor de gnotobiologia, ou seja, das cobaias cujos parasitos do organismo são bem conhecidos. A impossibilidade de retornar é uma medida de segurança: “Caso alguém se contamine em um dos ambientes, não levará o agente da infecção para outro lugar da área limpa”, diz Delma. “Isso porque, quando já está dentro de uma câmara, como chamamos a sala em que ficam os animais, a pessoa só tem uma saída, que é voltar para a área suja.”

Mas não existem apenas cuidados de percurso. Um biotério, como o da Unicamp, tem de ser um lugar especial até no próprio projeto do prédio. As câmaras dos animais devem ficar no miolo da construção, cuja pressão atmosférica é programada para ser maior do que a do corredor, a qual por sua vez é maior do que a de áreas mais externas e mais sujas, entre aspas, do edifício. Desse modo, o ar tende sempre a escapar para fora. Se alguém, por exemplo, passeia por ali com um germe de carona na roupa, é grande a probabilidade do microorganismo invasor voar para longe das câmaras. “Além disso, a cada hora ocorrem quinze a dezoito trocas de ar, que é filtrado, mantendo se puríssimo”, conta a bióloga. Delma planejava trabalhar em um laboratório de Medicina, quando se formou. Mas, então, assistiu a um vídeo sobre bioterismo: “Fiquei encantada”, recorda. O resultado é que há cinco anos, vaidosa, desfila de colar de pérolas entre ratos e camundongos.

“Muitos cientistas nem sequer fazem idéia sobre o que é um verdadeiro biotério—muito diferente de uma sala com um amontoado de gaiolas, como, infelizmente, se encontra em diversas escolas e centros de pesquisas brasileiros”, critica a imunologista Teresa Kipnis, da Universidade de São Paulo. “Ao pensar em cobaias, a maioria das pessoas lembra que costumam morrer depois de experimentos científicos, sem se preocupar em como elas passam a vida”, diz ela, famosa entre os pesquisadores por lutar pelo estabelecimento de melhores biotérios no país.

De fato, muitos animais são sacrificados em laboratórios. Mas, em princípio, eles não devem sentir qualquer sofrimento. Condená-los dessa maneira faz parte da luta pela sobrevivência do homem tanto quanto se alimentar com uma salsicha—feita a partir de um porco também criado para morrer, só que sem anestesia. No Rio de Janeiro, por exemplo, o Instituto Vital Brasil mata cerca de 17 000 camundongos, oitenta cobaias e sessenta coelhos por mês. Mas, com isso, são fabricadas 60 000 doses de soro antiofídico, 120.000 doses da vacina anti-rábica e 5 milhões de doses da vacina antitetânica, produtos que podem ser vitais. Sobretudo, os animais de laboratório são fundamentais à pesquisa, que irá utilizar determinada espécie conforme sua finalidade. Hoje em dia, é verdade, os pesquisadores procuram economizar cobaias, deixando-as para a última etapa de seu trabalho, iniciado com simulações em computador ou mesmo observando-se culturas de células em tubos de ensaio.

Sem os animais, contudo, a roda das ciências biológicas não teria girado: talvez ainda se acreditasse que os organismos obedecem a leis mecanicistas sendo um punhado de células isoladas entre si, funcionando certinhas como um relógio. Na década de 1870, porém, o francês Claude Bernard (1813 -1878), um dos precursores da Fisiologia experimental demonstrou com a ajuda de cobaias que existia uma relação entre todos os órgãos. Mas hoje se sabe: não é qualquer animal que serve para o pesquisador. “Às vezes, precisamos de uma cobaia com certa doença hereditária, para estudar um fenômeno especifico. Mesmo assim, ela não pode ter outros problemas de saúde, porque isso influenciaria o resultado da experiência.
 
Daí os biotérios oferecerem tantos cuidados quanto um berçário”, compara o imunologista Mário Mariano, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, ao qual pertence um dos melhores biotérios brasileiros—o de camundogos isogênicos, isto é, camundongos que possuem os mesmos genes. Dessa maneira, os camundogos da chamada linhagem Balb-C que se encontram em um laboratório brasileiro são idênticos aos Balb-C da China ou dos Estados Unidos. “Desse modo, uma experiência realizada aqui pode ser repetida em qualquer lugar do mundo”, conclui Mariano.

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Segundo o imunologista, as linhagens de laboratório têm duas características: sua bagagem genética é bem conhecida; além disso, são selecionados geneticamente os animais mais mansos e fáceis de manipular. No Brasil, por enquanto, o biotério da Unicamp é o único que possui um banco de embriões, para preservar essas linhagens sob medida para a pesquisa. “Não teremos de importar novamente os bichos, toda vez que eles forem contaminados”, comemora o microbiologista baiano Humberto Rangel, que dirige o biotério. Os embriões são retirados das trompas maternas e congelados, cinco dias depois da fecundação, quando somam entre quatro e oito células. “Mais tarde, eles poderão ser implantados em qualquer fêmea, mesmo que ela pertença a outra linhagem”, diz Rangel. Antes disso, porém, é preciso realizar a vasectomia no macho que irá acasalar com a mãe de aluguel. Sim, porque sem esse namoro prévio o organismo da fêmea, como ocorre na maioria das espécies, não produz os hormônios que mantêm a gravidez—e ela aborta.

Outra cirurgia na rotina dos biotérios é a histerectomia, no caso uma espécie de cesariana com a finalidade de limpar —no jargão dos especialistas—uma linhagem. “Quando os filhotes de uma fêmea infectada estão para nascer, nós retiramos todo o útero”, descreve a veterinária Rosália Regina De Luca, acostumada a fazer a operação no biotério de isogênicos da USP, o qual ela chefia. O vidro que divide a pequena sala cirúrgica é cortado por uma banheira, repleta de solução anti-séptica. Nela, Regina mergulha o útero extraído. Um cirurgião, no outro lado, apanha a bolsa e reanima depressa uma por uma das crias, que ficaram temporariamente sem receber oxigênio. De tão pequenas, a massagem para ressuscitar o coração é feita com um cotonete. “Como, durante a gestação, os filhotes estavam protegidos pela placenta, capaz de barrar os germes, e mais tarde, durante o parto, não tiveram nenhum contato com o corpo infectado da mãe, eles nascem limpos, ou seja, sem herdar a infecção”, conclui Regina.

O trabalho, porém, não termina aqui. “Programamos uma fêmea para dar crias poucos dias antes da histerectomia, assim ela pode servir de ama-de-leite. O problema é que ela só irá cooperar se for enganada”, conta a veterinária. É um seqüestro: enquanto alguém distrai a mãe zelosa, outra pessoa troca os filhos legítimos pelos camundongos órfãos. “O truque é sujá-los com a maravalha que revestia a cama da primeira ninhada”, revela Regina. “Com um pouco de sorte, a fêmea irá ignorar as diferenças, ao sentir o cheiro dos próprios filhotes.”

No biotério de isogênicos da USP, os camundogos são SPF—sigla do nome em inglês, que significa livre de patógenos específicos. “São animais que possuem apenas as bactérias da própria flora intestinal, sem nenhum parasito estranho, capaz de provocar doenças”, esclarece Regina. Por criar linhagens SPF, o biotério recebe a classificação de quatro estrelas. Sim, porque tais quais hotéis, os biotérios são devidamente estrelados. Uma única estrela recebem os biotérios onde não há nenhum tratamento especial com os animais, que no caso podem ser até doentes; duas estrelas vão para aqueles biotérios com animais sem determinadas bactérias que costumam provocar diarréias; três estrelas merecem os biotérios com barreiras, como filtros de ar para evitar as contaminações; quatro estrelas são para os que criam SPF; na categoria máxima, a das cinco estrelas, estão os biotérios de animais germfree —em inglês, livre de germes—que não têm sequer as bactérias da flora intestinal.

Manter um biotério quatro estrelas já não é fácil. O biotério da USP conta com sistemas de barreiras similares aos da Unicamp. Todo dia, os funcionários trocam cama por cama dos camundongos, forrada de maravalha de pinho. “De acordo com testes, essa madeira oferece menor risco de alergias nos animais”, esclarece Regina. Tudo, do bebedouro à comida propriamente dita é esterilizado em autoclaves. O material também recebe banhos de ultravioleta, raios que têm ação bactericida. Além disso, periodicamente, é feita uma série de testes em 10% dos animais, a fim de flagar microorganismos indesejáveis. Os animais isogênicos, especificamente, exigem exames extras, com substâncias marcadoras de DNA, a fim de mapear seus genes, para verificar se continuam, de fato, idênticos entre um indivíduo e outro.

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Para obter animais isogênicos, os cientistas cruzam vinte gerações de irmãos—os acasalamentos e os nascimentos ficam gravados na memória de um computador que pode fornecer rapidamente a árvore genealógica de qualquer animal do biotério. “Para saber se os bichos são isogênicos, realizamos um transplante”, ensina a bióloga Sílvia Maria Gomes Massaroni, da USP. Sílvia corta a orelha de um camundongo, para costurá-la nas costas de outro. “Se não necrosar, passados 100 dias, é porque os dois organismos são idênticos”, raciocina a bióloga, com jeito sereno. “Tantos cruzamentos entre irmãos, aumenta as chances de mutações”.

As mutações, no entanto, às vezes são bem-vindas. “Nem sempre elas resultam em um monstrinho”, afirma a bióloga Mirian Ghiraldini, da Escola Paulista de Medicina. Entre os 6 000 ratos que seu biotério abriga estão os de uma linhagem de hipertensos, que surgiu na Universidade de Quioto, no Japão. Mirian, sempre falante, mostra o aparelho que tira a pressão do rato pela cauda. “Ele é um dos modelos preferidos pelos cardiologistas”, brinca. Outro mutante no biotério é um ratinho com um tipo de diabete em que não se produz o hormônio antidiurético, com o qual o organismo prende o líquido de que necessita. “Por acaso, um pesquisador americano notou que o bebedouro daquele rato estava sempre vazio”, conta Mirian. “Constatada a mutação o sumiço da água fazia sentido: diabete deixa as vítimas sedentas.

“O metabolismo de uma cobaia pode ser avaliado em uma gaiola redonda de vidro. “Deixamos o animal doze horas ali dentro”, explica Mirian. “Sabemos quanta água há no bebedouro e quantos gramas de ração, no prato. Assim, podemos calcular o consumo do animal nesse período.” O Brasil também tem o seu mutante, um rato completamente careca chamado Paraíba, numa homenagem ao Estado em que apareceu. “Ele possui um sistema imunológico deficiente. Vamos cruzá-lo para tentar obter uma linhagem. Ela ajudará em pesquisas como a da AIDS”, acredita.

A dificuldade do biotério da Escola Paulista de Medicina é ser multiespécie, reunindo ratos, camundongos, cobaias e coelhos. “O que não causa mal em uma espécie pode provocar doenças em outra”, admite a bióloga. A pior batalha, porém, é a de um biotério cinco estrelas, para impedir o acesso de absolutamente qualquer microorganismo. O único cinco estrelas brasileiro está na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Nele, os camundongos ficam dentro da proteção dos isoladores. Mas, há dois meses, mal pisou no biotério, às 7 da manhã como de costume, a técnica Ronilda Santos sentiu um cheiro estranho. Os colegas, a princípio, discordaram: “Afinal, aqui não se nota sequer o odor de ração e do pêlo dos animais, que ficam isolados”, explica a técnica. Mas o nariz de Ronilda, apurado pelos quinze anos de experiência lidando com cobaias sem germes, notou que os bichos estavam contaminados. Felizmente, o biotério já importou novos animais.

O célebre microbiologista francês Louis Pasteur (1822 -1895) imaginava que seria impossível conseguir um animal sem parasitos – se existisse um ovo asséptico, então o filhote se contaminaria pela alimentação. Contudo, em 1928, R. Kimura, no Japão, e J. Reyniers, nos Estados Unidos, criaram filhotes nascidos de cesarianas com uma, dieta esterilizada. “Esses animais são extremamente úteis para a Medicina, porque têm um sistema imunológico praticamente virgem”, ressalta o médico mineiro Ênio Vieira, que trouxe os primeiros exemplares de camundongos sem germes para o Brasil, há sete anos. “Só praticamente, porque os alimentos excitam as células de defesa”, diz ele, especialista em alimentação.

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Cheio de humor, Vieira mostra a pasta lotada de papéis—onde se lê, na etiqueta, Dia de São Nunca—perdida sobre a mesa, entre pilhas de projetos de estudos. “Com essas cobaias, podemos notar exatamente como as vitaminas influem no sistema imunológico ou observar até que ponto as cáries dentárias são provocadas pelos alimentos e pelas bactérias”, conta animado. Hoje em dia, porém, ele prefere se dedicar à pesquisa de doenças freqüentes no Brasil, como o mal de Chagas. “Comparamos esses problemas em animais sem germes e animais convencionais. Temos descoberto coisas curiosas”, revela. Segundo o professor, a flora bacteriana do intestino parece interagir com o organismo, ajudando-o a se defender em muitos casos. “Uma única salmonela, encontrada no alimento, é capaz de matar um camundongo sem germes”, nota Vieira. “Podemos infectar o camundongo convencional com 10 000 salmonelas, que nada lhe acontece.” Noventa por cento do número de células presentes no organismo humano são alheias, isto é, são bactérias da flora. “É natural que essa massa celular tenha um papel importante”, opina a bióloga Leda Quércia Vieira.

Filha do professor Ênio, depois de fazer mestrado na Escócia, ela voltou para o laboratório chefiado pelo pai. É dela o desafio de entender como essas bactérias influenciam fenômenos aparentemente distantes. “Se inocularmos amostras da flora de um animal em um camundongo sem germes, ele se torna capaz de aceitar o implante de um órgão do primeiro. Sinal de que a flora tem algum papel nos mecanismos de rejeição—resta saber qual.” Estudos como esse, no entanto, ficam emperrados cada vez que os bichos se contaminam. “Seremos menos dependentes quando existir mais biotérios cinco estrelas”, torce Leda.

 

 

 

 

 

Para saber mais:

Pela seleção artificial

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(SUPER número 4, ano 3)

 

 

 

 

 

Licença para matar

No ano passado, na Inglaterra, nove cientistas perderam a licença do governo para pesquisar, acusados de realizar experiências sem anestesiar os animais. “No Brasil, falta fiscalização”, reclama a bióloga Mirian Ghiraldini, da Escola Paulista de Medicina. “Poucas pessoas sabem, mas é proibido usar animais em escolas de primeiro ou segundo grau, até mesmo para mostrar em feira de ciências”, exemplifica. Por sua vez, segundo a veterinária Rosália Regina De Luca, da USP, as aparências podem enganar: “O que parece tortura, às vezes é uma maneira de proteger o animal. Amarrá-lo, em certos casos. é a melhor forma de evitar que ele, ao se debater, acabe se machucando”, diz ela. “Os sacrifícios, porém, só deveriam ser permitidos sem dor”.

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