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Brasil, república dos camarões

A pesca comercial feita com arrastão cede lugar em todo o mundo às fazendas de criação de camarões. O Brasil dá os primeiros passos no difícil trabalho de reproduzir em cativeiro as condições do mar.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h28 - Publicado em 30 nov 1991, 22h00

Regina Prado

Dez anos atrás, apenas 2,1% do camarão consumido no mundo provinha do cultivo em cativeiro. O restante vinha do mar, produto da pesca de arrastão, considerada predatória porque as redes capturam também animais e peixes sem valor comercial, que são devolvidos à água mortos. No ano passado, porém, um quarto dos 2,6 milhões de toneladas consumidas era formado por camarões criados em fazendas, como vacas, ovelhas, cabras e porcos. Estima-se que até o ano 2000 apenas metade deles terão conhecido o verdadeiro fundo do mar antes de irem para as panelas. As fazendas de camarões, substitutas da pesca de arrastão, exigem tecnologia e conhecimento científico à altura da fama culinária do caro crustáceo.

A criação em cativeiro do camarão marinho só é possível quando as condições de seu habitat são reproduzidas artificialmente. Como os camarões são animais de sangue frio, ou seja, não possuem temperatura interna própria. a velocidade de seu metabolismo, que determina o crescimento, está relacionada diretamente à temperatura do lugar onde vive—e quanto mais quente, melhor. Assim, no Brasil, a Região Nordeste, onde praticamente não há estação fria, é o melhor lugar para seu cultivo, e é por lá que se distribui a quase totalidade das fazendas de camarão do país.

Ainda pequena por aqui, a carcinocultura, como também é chamada a criação de crustáceos, produz apenas 2 000 toneladas de camarões por ano, atendendo a não mais que 4% da produção. Dos 515 hectares de viveiros da unidade da empresa Maricultura da Bahia. instalada a 272 quilômetros de Salvador, sai um terço do total produzido no país. Para que 3 milhões e 750 000 camarões rolem todo mês esteira abaixo em direção às embalagens—em fila, algo como 48 quilômetros de proteína , foi preciso recriar as condições de reprodução destes crustáceos e, mais ainda, provocar uma superprocriação, sem a qual seria economicamente mais viável apanhá-los em águas oceânicas.

No Brasil, camarão de casa não faz milagre. É que as cinco espécies próprias para cultivo ao longo do litoral foram pouco estudadas, e não vivem muito bem em cativeiro. “A solução para o cultivo em escala industrial foi importar espécies estrangeiras e recriar em laboratório o seu habitat”, afirma o biólogo Luiz Augusto Faria, um exímio pescador que se interessava por algas no tempo da faculdade e chegou aos camarões pelas mãos de um professor. Em Valença, a espécie predominante na produção é o Penaeus vannamei, trazida das águas quentes do Equador. Da mistura de tecnologias americana e equatoriana surgiu a criação dos camarões com sotaque baiano. Para cuidar deles, a fazenda dispõe de 170 funcionários contratados, mais 200 prestadores de serviços um tanto parecidos com os bóias-frias das fazendas de cana-de-açúcar.

No Equador, os camarões adultos P. vannamei procriam durante nove meses no ano—de setembro a maio. Embora no mar eles tenham dias e noites de 12 horas, constatou-se em laboratório que dias de 14 horas com 10 horas de noite favorecem a procriação em algumas espécies. Sobre os 29 tanques de reprodução azuis e redondos, com 35 casais de camarões e 17 000 litros de água do mar em cada um, existe uma iluminação controlada por timer, que simula esse dia ideal. Para facilitar o trabalho com os camarões, animais de hábitos noturnos, o período é invertido—enquanto é dia para os técnicos da fazenda, é noite para os bichos. Uma cortina feita com tiras de borracha impede a entrada da luz de fora nesse ambiente silencioso, onde se trabalha com lanternas.

Na agradável temperatura de 28°C, também monitorada, os camarões se reproduzem o ano inteiro, já que não passam pelos três meses de água um pouco mais fria do inverno equatoriano. Construir um ninho tranqüilo e estável, no entanto, não basta. Para incrementar a reprodução dos camarões, a fêmea precisa ser transformada numa verdadeira máquina de produzir ovos. Um órgão chamado X, presente em cada um dos pedúnculos oculares (as hastes que sustentam os olhos), secreta o hormônio inibidor da gônada (a glândula sexual). Esse hormônio equilibra a maturação dos ovários das fêmeas, opondo-se à ação do hormônio estimulador, que vem da região torácica. “Para criar a superparideira extirpase um dos olhos da fêmea reprodutora”, conta o biólogo Faria. Essa operação, chamada ablação, é feita com lâmina de barbear. Uma a uma as fêmeas reprodutoras são “abladas”, debaixo d’água, segundo um funcionário, “para que doa menos”.

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Com parte da dose do hormônio inibidor comprometida, a fêmea caolha matura os ovos com uma freqüência duas vezes maior do que suas parentes no mar. “Nos tanques do cativeiro, ela matura a cada três dias, fornecendo para os tanques de larvas até 200 000 ovos por vez”, contabiliza Faria. Essa vida superprodutiva tem suas compensações, como um cardápio de primeira—além das rações, bifes de lula e poliqueta cortados pelos funcionários. O stress de uma produção tão farta obriga a aposentar uma fêmea matriz após quatro meses de procriação. Para esta espécie, também conhecida como camarão-branco, o acasalamento só acontece no dia em que a fêmea vai desovar; caprichosos, os animais costumam copular ao entardecer.

O macho deixa coladas no ventre da fêmea duas bolsas espermáticas, os espermatóforos. Os técnicos da fazenda recolhem as fêmeas acasaladas e as transportam a outros tanques para a desova. Duas horas depois do acasalamento, a fêmea nada freneticamente para eliminar os ovos. Na saída do corpo da mãe, eles esbarram na bolsa espermática deixada pelo macho. Como na natureza, cerca de 50% dos ovos são fertilizador, o resto se perde.

Quinze horas depois de os ovos serem eliminados pelas fêmeas, deles eclodirão as primeiras larvas. Como a luminosidade dos casais é cronometrada, e por isso mesmo seu comportamento previsível, é sempre por volta das 11 horas da manhã—noite para os camarões—que cerca de 1 milhão de larvas (ou náuplios) nadam pelo tanque prontinhas para a colheita.

Para retirá-los dos tanques, os técnicos aproveitam o fototactismo positivo dos bichinhos, ou seja, uma atração irresistível pela luz, que no mar faz com que eles se dirijam à superfície, onde está seu alimento. Fachos de lanterna são apontados no tanque, os náuplios sobem do fundo atrás da luz, são recolhidos com um sifão e levados para outra sala, colocados em tanques brancos e redondos. Estes bebês-camarões já não precisam, como seus bem tratados pais, de dias e noites com horas controladas. Porém, como vivem numa sala fechada, o teto é construído com telhas transparentes, para que entre a luz do dia. Nesse calor abafado, é raro ver alguém vestindo mais do que camiseta, calção e chinelos. Com a aparência de aranhas, e medindo menos de meio milímetro, os bebês-camarões não precisam ser alimentados por terem ainda grande reserva de vitelo (substância que nutre o embrião); necessitam apenas de um rigoroso controle de seu ambiente: a salinidade da água, a temperatura e o seu pH (nível de acidez).

Quarenta horas depois, a larva ganha novo nome, zoea, estágio em que os olhos começam a adquirir a forma final, sobre pedúnculos. Já um pouco crescida—chega a até 2 milímetros nesta fase—, ela exige novo cardápio. Herbívoros, os pequenos camarões consomem, numa velocidade assustadora, algas filtradas da água que impulsionam corpo adentro com batimentos constantes de seus apêndices torácicos. Para manter o rebanho bem alimentado, essas algas, importante fonte protéica, são cultivadas na fazenda. O cardápio das larvas é complementado com plâncton artificial vindo direto do Japão—à base de gema de ovo, óleo de fígado de bacalhau, farinha de peixe e outros quitutes—, jogado aos futuros camarões por um funcionário que circula numa passarela de madeira sobre os tanques.

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Pelo método de repicagem, a partir de uma cultura original, as pequenas algas multiplicam-se em recipientes de vidro ou plástico com aregação e luminosidade controladas. A produção diária para alimentar os camarões nos tanques é de cerca de 14000 litros, com uma densidade de 1 milhão de algas unicelulares por mililitro. Toda esta vida fervilhante, no entanto, é um prato cheio para bactérias também. Por esta razão, entre a metade e o triplo do volume total dos tanques precisa ser renovado todos os dias, para eliminar as fezes e ainda impedir que surjam hóspedes indesejáveis—além de provocar doenças nos bichos, algumas bactérias são predadoras das algas.

Para controlar todo este vaivém de água, o fluxo é monitorado por um programa de computador, especialmente desenvolvido para a criação dos camarões. A população de cada tanque é calculada diariamente pela análise de uma amostra da água em microscópio—de cada três ovos eclodidos, apenas um camarão chega à idade adulta. Os números coletados são então colocados na tabela em um microcomputador Macintosh. O programa dá o volume de água que deverá ser trocado durante aquele dia e a quantidade de alimento que precisa ser fornecida a cada um dos tanques, segundo a população estimada de camarões e algas

Uma semana após a eclosão, as pequenas larvas exibem uma nova forma, batizada agora de mysis. Com 3,5 milímetros, essa criança-camarão está menos interessada nas algas e passa a exigir mais carne. Aí, novo cardápio salta dos laboratórios. Vindos diretamente dos Estados Unidos, cistos desidratados de Artemia salina—crustáceos que ficaram famosos no final dos anos 70 como os “monstros” Kikos Marinhos —seguem para tanques de 250 litros de água salgada, onde a futura refeição estará pronta para o “abate” depois de 18 horas. Num único mês, os treze tanques de larvas dos laboratórios consomem 80 quilos de artêmia.

Dez dias depois do nascimento os camarõezinhos são chamados de pós-larvas, já com o jeitão dos pais. A partir deste momento, eles têm os mesmos segmentos do camarão adulto-5 na cabeça, 8 no tórax e 6 no abdômen, que foram adquiridos ao longo do desenvolvimento larval. Adolescentes, elas abandonam o nado (predominante na larva) e procuram a base dos tanques como no mar procurariam o fundo-é o chamado hábito bentônico (do grego, bentos, fundo do mar). Como todo jovem, está na hora de mudança de ares e de tanques.

Para que não estranhem o novo lar, os camarões são primeiro colocados em caixas plásticas com 200 litros da água do seu antigo tanque. “Ali, a temperatura vai sendo alterada de grau em grau, para cima ou para baixo, a cada 10 minutos, até atingir a mesma do seu local de destino, que poderá ser o berçário ou os tanques do sistema intensivo, ambos agora ao ar livre”, descreve o engenheiro de pesca Jorkean Torres de Lima, o responsável pelos camarões a partir desse ponto. Lima passa os dias inspecionando viveiros e tostando a pele sob o sol.

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Ao mesmo tempo em que muda a temperatura altera-se também a salinidade. No sistema intensivo, uma espécie de UTI para assegurar maior sobrevivência de pós-larvas, caso algo tenha saído errado na fase de reprodução, eles ganham uma tela para proteger-se do sol intenso, permanecem ainda em tanques de fibra de vidro e têm até redes que servirão de substrato para as algas se apoiarem-comida servida em prato para facilitar o desjejum. Uma multidão de 500 000 pós-larvas segue para cada um dos seis tanques de 18 000 litros de água e sairá daí para a engorda nos viveiros maiores somente depois de dez dias. O outro destino, um dos dez berçarios de 1 hectare cada (outros doze são reservados para a criação de reprodutores), é quase igual aos viveiros definitivos-o sol bate sem barreiras, desaparecem os tanques e as pós-larvas se instalam na areia mesmo.

Uma lâmina de água com 1 metro de profundidade é o reino onde as pós-larvas passam trinta dias até finalmente seguirem para a engorda. Para receber 1 millhão e 200.000 filhotes, cada berçario é fertilizado todas as semanas com o objetivo as semanas, com o objetivo de estimular ali a proliferação de fitoplancton e de zooplancton. Os patrulhadores dos viveiros, equipe de trabalho do engenheiro Lima, são os homens que alimentam os camarões nos viveiros a céu aberto, distribuindo ração nas águas com canoas.

A aventura dos animais termina com um internato nos viveiros, quando o pequeno camarão de 1 grama e cerca de 5 centímetros é chamado juvenil. Tendo por vizinhos 75000 camarões em cada hectare de viveiro, ele cresce a céu aberto, engorda comendo ração e será recolhido ao final de 100 dias, quando for um senhor de 13 centímetros e 16 gramas. Zelando por sua saúde estão os patrulhadores, que percorrem os 490 hectares ocupados pelos 35 viveiros montados não em cavalos, mas em motocicletas.

Se nessa altura o camarão estivesse no mar, ele estaria vivendo perto de algum estuário, para onde migrou na sua fase de pós-larva atrás justamente da mistura de água doce de rio com a salgada do mar Por esse motivo a fazenda localiza-se próxima a um estuário, e conta com um potente mecanismo de captação de água doce e salgada e distribuição dessa água misturada pelos viveiros, através de um canal de 8 quilômetros de extensão. No mar, um camarão vive até 2 anos, mas na fazenda só dura cerca de cinco meses, saindo dali para a panela.

A “colheita” dos camarões, chamada despesca, acontece sempre durante a noite, pois o sol pode desidratar os animais conforme a água lhes é retirada. Dos 35 viveiros, são despescados apenas dois por semana, um de cada vez. A operação começa com o escoamento da lagoa—um viveiro de 20 hectares, por exemplo, possui o considerável volume de 200 milhões de litros de água. Esse caudaloso rio escapa devidamente filtrado por telas que impedem a passagem de camarões. Na boca do viveiro, já projetado de forma que permita o escoamento pela ação da gravidade, os camarões são sugados por uma bomba, atravessam uma mangueira de 10 metros e caem em caixas de plástico.

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No pico da despesca, que dura a noite inteira, um caixote com capacidade para 30 quilos é totalmente preenchido de camarões em 8 segundos Dentro da caixa eles levam um banho desagradável—são mergulhados em um tanque repleto de gelo e água clorada. E assim que são mortos, por choque térmico, enquanto o cloro serve para matar as bactérias que porventura tenham pegado carona. Alguns camarões teimarão em ficar no viveiro, mas, assim que nascer o dia, mulheres recrutadas apenas para este serviço caçarão os espertinhos um a um na lagoa vazia. O dia seguinte de um viveiro esvaziado é um espetáculo visual. Centenas de garças sobrevoam-no e pousam na areia branca, ciscando o fundo em busca dos resto de comida e de peixinhos que vieram com a água do mar.

A poucos passos da frigideira, o camarão entra no processamento, onde é retirado o cefalotórax-a cabeça, chamada assim por ser fundida com o tórax. É nela que estão todas as vísceras do camarão, e por isso é a primeira a apodrecer além de ser rejeitada pela maioria dos consumidores. O trabalho de limpar e embalar o camarão é feito por cerca de 100 mulheres vertidas com aventais brancos, chapéus e botas de borracha. “De cada 10 toneladas que tiramos de camarão, 3 e meia vão para o lixo”, lamenta Nelson Jayme Reis Filho, o engenheiro de pesca responsável pelo beneficiamento, paulista desembarcado do Espírito Santo onde dava aulas de pescaria para filhos de pescadores.

O filé da história, a cauda, que praticamente tem apenas os músculos e intestinos do animal, segue para esteiras de seleção e congelamento no mesmo dia da despesca. Daí, virarão moquecas, bobós e afins em várias partes do mundo. Os cefalotórax dos camarões viram uma montanha de cabeças oferecida de bandeja aos urubus da região. “Temos planos para transformá-las em ração mas ainda são planos”, divaga o engenheiro Reis.

Um dos fundadores do projeto da fazenda de camarões baiana o biólogo Sérgio Luiz de Siqueira Bueno, hoje professor na Universidade de São Paulo, acredita que esta atividade, ainda na infância no Brasil, está em pleno desenvolvimento. Doutor em camarões marinhos, Bueno mantém um laboratório de patologia de crustáceos na USP para assessorar justamente aqueles que se aventuram a criar camarões no Brasil. “A pesca comercial mostra sinais de esgotamento, porque os bancos de camarões nos litorais precisam se renovar da intensa pesca” aponta Bueno. “Os barcos precisam então ir cada vez mais longe buscar os camarões o custo, portanto aumenta.”

Bueno, que saiu do projeto depois de seis anos e hoje toca Beatles para seus alunos da USP, acredita que uma das maiores vantagens das fazendas é a rapidez no beneficiamento. Camarões pescados longe da costa podem levar dias para chegar a algum lugar protegido da invasão de bactérias. “Para conservar os camarões durante estas longas viagens. usa-se metabissulfito de sódio, um conservante químico nocivo para a saúde. Nos viveiros ele é dispensado”, compara Bueno. Cada vez mais longe e mais cara, a pesca tende também no Brasil a dar lugar aos camarões cultivados.

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Para saber mais:

O império do caviar

(SUPER número 12, ano 2)

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