Caçadores do invisível
Os físicos começam a montar uma fantástica armadilha para capturar os raios cósmicos, que bombardeiam a Terra com partículas subatômicas e superpoderosas.
Cássio Leite Vieira
Pegue um tijolo de 1 quilo. Aí, divida-o em um bilhão de pedaços. Depois, se conseguir, pegue uma das microlascas e reparta-a em 1 bilhão de grãos. Difícil? É só o começo. Transforme um desses grãos em mais 1 bilhão de subpartículas. Agora imagine que um único desses pontinhos invisíveis tem energia igual à de uma bola de tênis voando a 300 quilômetros por hora. Para isso, ele precisa viajar a uma velocidade próxima à da luz, 3,6 milhões de vezes maior que a da bola.
Não é ficção. Os céus estão cheios de microviajantes assim como o nosso pontinho imaginário. São os zévatrons, a elite da família de raios cósmicos. É isso mesmo, eles se chamam raios mas são partículas – núcleos atômicos, prótons e elétrons que vêm de todos os lados do espaço. Ao chegar à Terra, arrancam pedaços dos átomos do ar em que esbarram, criando uma chuveirada de outras partículas. Não trazem nenhuma ameaça à saúde dos terráqueos, mas representam um mistério que há muito fascina os cientistas.
Que usina celestial acelera assim os zévatrons? De onde vem tanta energia? Agora os físicos se preparam para achar a resposta. Em maio, 150 pesquisadores de dezoito países* se reúnem aqui no Brasil para acertar a construção da maior rede de detectores de zévatrons jamais vista, o projeto Pierre Auger. O pai do projeto, o americano James Cronin, Prêmio Nobel de Física de 1980, está otimista: “Acho que teremos algumas respostas em apenas três anos”.
* Alemanha, Argentina, Armênia, Austrália, Bolívia, Brasil, Chile, China, Eslovênia, Estados Unidos, França, Grécia, Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia e Vietnã
A cada cem anos, uma só partícula
Dormir a bordo de uma nave ou estação espacial, na órbita da Terra, tem lá seus incômodos. Os astronautas não deixam de ver estrelas, mesmo com os olhos fechados. Por trás das pálpebras acontece um eterno pipocar de luzes. Os minifla-shes nada mais são do que raios cósmicos batendo na retina. É que, acima da camada mais espessa da atmosfera, fica-se exposto às partículas espaciais que mergulham em direção à Terra.
A maioria desses micrometeoros tem baixa energia. A cada segundo caem sobre o planeta uns dez por centímetro quadrado. Essa “garoa radioativa”, identificada em 1912, tem sua origem conhecida: ela vem do Sol e de estrelas explodindo, chamadas supernovas. E, afora o pequeno estorvo no descanso dos astronautas, não fazem mal à saúde de ninguém.
Quanto maior a rede, mais fácil caçar
Mistério mesmo são os raios superenergéticos, os zévatrons. Desde sua descoberta, em 1962, eles intrigam os pesquisadores. Que mecanismo celestial lhes imprime uma energia tão absurda? Há várias hipóteses (veja ao lado). Mas só observando a direção de onde essas partículas vêm dá para achar sua fonte. E, para isso, é preciso capturar várias delas.
O problema é que os zévatrons são muito raros: a cada século, um – apenas um – perfura cada quilômetro quadrado da atmosfera terrestre. Se você não estiver no lugar certo, no momento certo, com o detector certo, o bombardeio subatômico em cascata que ele produz não será notado. Por isso é que até hoje não foram identificados mais que oito exemplares. A solução foi aumentar a rede para pescar mais raridades. É aí que entra o projeto Pierre Auger.
O Auger não será uma, mas duas imensas redes de detectores. Uma ficará no Hemisfério Norte (em Utah, Estados Unidos) e outra, no Hemisfério Sul (em Las Leñas, Argentina), cobrindo todo o céu em volta da Terra. “Com elas, temos a esperança de identificar os sinais de umas sessenta partículas por ano”, vibra Cronin. Ou seja, num único ano, quase oito vezes mais do que o total de zévatrons capturados em cerca de três décadas de pesquisa.
Quando o tédio é o pai da ciência
A idéia surgiu de um queixume entre cientistas. Em 1983, os físicos James Cronin e seu colega Alan Watson, da Universidade de Leeds, na Inglaterra, lamentavam-se um para o outro: as experiências realizadas em laboratório estavam ficando chatas, aborrecidas. Os aceleradores – que provocam choques entre partículas para estraçalhá-las e descobrir do que elas são feitas – não são poderosos o suficiente para produzir microbólidos mais energéticos do que os já conhecidos. Eles pensaram então em voltar a curiosidade para o céu. Por que não construir uma grande armadilha para zévatrons, que jamais aparecem dentro de um laboratório, e estudá-los melhor? Dez anos depois, o projeto de 100 milhões de dólares foi apresentado ao mundo: as duas redes do Pierre Auger. Cada uma delas com 1 600 detectores, distribuídos por uma área de 3 000 quilômetros quadrados (veja ao lado).
Quem sabe achamos alienígenas
O Brasil entrou no consórcio de dezoito países em 1995, com trinta cientistas de onze instituições de pesquisa (entre elas nove universidades federais, estaduais e particulares) e um desembolso de 10 milhões de dólares ao longo da próxima década. “É um dinheiro bem empregado”, comenta Ronald Shellard, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio de Janeiro. “Além de participarmos da busca pela solução de um dos maiores mistérios do Cosmo, a indústria do país estará colaborando com um projeto de tecnologia de ponta.”
Na reunião que se realiza em maio, na Ilha de Itacuruçá, Rio de Janeiro, os 150 cientistas vão acertar os ponteiros para a montagem dos primeiros oito detectores de Las Leñas. “Começamos assim a abrir uma poderosa janela para estudar os zévatrons”, diz Cronin. “Além disso, quem sabe, topamos com novas partículas alienígenas, que não podem ser vistas nos aceleradores terrestres.” A julgar pela animação de Cronin, parece que o tédio de que reclamavam os físicos está mesmo chegando ao fim.
Para saber mais
The Discovery of Subatomic Particles, Steven Weinberg,
Penguin Books, Inglaterra, 1ª edição, 1993
Na Internet
https://www.fisica.unlp.edu.ar/auger/eg_main.html
Boliche de 10 bilhões de partículas
Um raio cósmico entra na atmosfera e vai derrubando pedaços de átomos do ar, feito pinos atingidos por uma bolada.
Nenhum detector capta um zévatron diretamente porque ele não chega ao solo. Os cientistas sabem que topam com um raio desses quando a chuveirada é muito intensa – um dilúvio de 10 bilhões de elétrons, múons e neutrinos numa área de 10 quilômetros quadrados.
Em 1938, o físico francês Pierre Auger, usando um contador Geiger, próprio para medir radiação, identifica uma chuveirada de partículas. Conclui que ela é o rastro deixado pelo choque de raios cósmicos com átomos do ar.
Pico do Meio-Dia 2 872 metros
Em 1962, o americano John Linsley capta no Novo México a primeira bagunça na atmosfera causada por um zévatron, o mais violento e misterioso raio cósmico.
Everest 8 848 metros
Em 1914, o físico alemão Werner Kolhörster coloca balões a 9 000 metros e percebe que a quantidade de raios cresce à medida que a altura aumenta.
Em 1910, o padre jesuíta Theodor Wulf instala um detector rudimentar no alto da Torre Eiffel e acha mais radiação do que esperava. Mas ele não sabe de onde vem tanta energia.
Em 1991, o detector de Utah flagra as marcas do raio mais poderoso jamais visto. Até hoje só se acharam oito zévatrons com tanta energia.
Hoje, balões levam detectores automáticos a 30 000 metros de altura.
Monte Branco 4 807 metros
Em 1912, o austríaco Victor Hess leva detectores a 5 000 metros de altura, num balão, e descobre que a estranha radiação vem do espaço. Ganha o Prêmio Nobel de 1936 pela descoberta dos raios cósmicos.
Hoje, o único detector especialmente desenhado para identificar raios ultra-energéticos é o Agasa, perto de Tóquio. Ele será desligado no ano 2000.
Em 2001, os detectores Pierre Auger já estarão funcionando. Os de Las Leñas começam a ser montados ainda este ano (veja mais na página 78).
1. Um núcleo de átomo ou um próton viaja pelo espaço a uma velocidade próxima à da luz no vácuo (300 000 quilômetros por segundo).
2. Ao chegar à atmosfera, a viajante sideral colide com os átomos do ar e os quebra. Parte da energia liberada nessa trombada vira luz – visível e invisível, como raios gama. Outro tanto sai como matéria – elétrons e mais fragmentos de nomes estranhos, como múons, píons e neutrinos.
3. Esses fragmentos chocam-se por sua vez com novos átomos. A cada impacto são arrancados mais pedaços e é criada mais luz.
4. Quando chegam a pouco mais de 1,5 quilômetro do chão, as sucatas subatômicas mexem com os elétrons dos átomos do ar. O que gera luz ultravioleta. O brilho dessa luz pode ser captado por aparelhos científicos. É aqui que entram os detectores de zévatrons. Eles não capturam o zévatron diretamente, mas os efeitos que ele provoca na atmosfera.
Cinco tentativas de explicação
Os cientistas ainda procuram a origem dos viajantes siderais ultra-energéticos, os zévatrons. Veja algumas suspeitas.
1. Buraco negro
Tudo bem, ele é um corpo com uma tremenda força de gravidade, que devora tudo o que passa por perto, até a luz. Mas um pouquinho escapa e é cuspido para fora, na velocidade da luz. Esses jatos criam ondas de choque no espaço, mais ou menos como uma bala de canhão empurra o ar à sua volta. Os buracos negros poderiam ser a fonte da altíssima energia dos zévatrons, diz a primeira hipótese.
2. Estrelas de nêutrons
São muito densas e giram em torno de si mesmas cerca de 1 000 vezes por segundo. Por isso, geram um campo magnético monstruoso. Toda vez que um corpo cai nessa teia, recebe uma empurrão violento, o que o faz viajar com alta velocidade. Esse processo pode se repetir muitas e muitas vezes. Aí estaria o acelerador de zévatrons.
3. Explosões de raios gama
Acontecem fora da Galáxia e ninguém sabe o que os provoca. Basta um estouro desses para gerar a mesma energia produzida pelo Sol ao longo de 10 bilhões de anos. As ondas de choque produzidas por essas explosões forneceriam energia suficiente para fazer das partículas interestelares os poderosos zévatrons.
4. O inchaço do Universo
Desde o Big Bang, a explosão que fez nascer o Universo há 15 bilhões de anos, o Cosmo está se inflando como se fosse um bexiga. Nesse empurra-empurra, as galáxias, com bilhões de estrelas, “esbarram” umas nas outras. A quarta hipótese diz que a energia dos zévatrons seria gerada pelos campos elétricos criados nesse acotovelamento galáctico.
5. No início dos tempos
Nem tudo foi perfeito no Big Bang. Sobraram pequenos defeitos. Seriam como diminutas caixinhas que ainda guardassem a quantidade brutal de energia que o Universo tinha durante a grande explosão. Por um motivo desconhecido, essas bolhas remanescentes dos primeiros instantes do Universo teriam se rompido, liberando matéria com energia alucinante.
Mais comuns e mais fracos
Os raios bem conhecidos vêm daqui mesmo, da Via Láctea.
Sopro do Sol
A cromosfera, próxima à superfície solar, é uma região com intensos campos magnéticos e onde ocorrem violentas explosões de energia. Essas descargas energéticas lançam partículas elétricas até a Terra. Elas constituem a maioria dos raios cósmicos.
Suspiro da estrela
Uma supernova – a explosão de uma estrela agonizante – gera violentos campos magnéticos. Uma partícula que passe perto desses ímãs naturais recebe milhões de empurrões e ganha velocidade para escapar do pingue-pongue. Mas chega à Terra com uma energia ainda 100 000 vezes mais fraca do que os zévatrons.
Percebendo o intruso pelo rastro
Os detectores do projeto Auger não capturam os raios que chegam do espaço, mas a bagunça subatômica que eles provocam na atmosfera.
No meio da rede de tanques serão instalados vários detectores do tipo olho-de-mosca. Um espelho de 2 metros de diâmetro desvia a luz fluorescente criada pelo choque dos raios cósmicos com as moléculas de nitrogênio da atmosfera, que é detectada por uma câmera.
Esta antena mantém os 1 600 detectores da rede em comunicação.
A posição exata da entrada da partícula atômica que cai no tanque é dada por esta antena. Ela usa o sistema de posicionamento global (GPS). Como as partículas praticamente não se desviam durante a queda pela atmosfera, fica fácil saber de que direção do Cosmo elas vieram.
O Pierre Auger de Las Leñas cobrirá uma área de cerca de 3 000 quilômetros quadrados. Os tanques serão dispostos num losango cuja diagonal maior mede 60 quilômetros.
Cada detector funciona com uma bateria alimentada por um painel solar.
As paredes do tanque são feitas de um tipo de plástico molenga, como aquele das piscinas portáteis, que deixam as partículas passar sem nenhuma resistência.
Os tanques ficarão afastados 1,5 quilômetro um do outro.
O brilho do rastro de luz deixado pelas partículas dentro do tanque (veja no detalhe acima) é amplificado por um fotomultiplicador.
No fundo do tanque ficam os detectores de luz (veja no detalhe acima).
Cada tanque, de 1,20 metro de altura por 3,60 metros de diâmetro, é cheio de água esterilizada e lacrado. Qualquer bactéria pode interferir nos resultados da pesquisa.
Quando um elétron ou outra lasca dos átomos da atmosfera cai no tanque, sua velocidade é ligeiramente maior que a da luz dentro da água, que é de 225 000 quilômetros por segundo, mais ou menos.
Ao mergulhar na água, o elétron emite uma luz azul, que é captada pelos detectores no fundo do tanque. É o chamado efeito Cerenkov. A quantidade desses mergulhos subatômicos indica o nível de energia do raio cósmico.