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Canto dos pássaros, conversa dos macacos: qual é a origem da linguagem?

Conheça Shigeru Miyagawa, o linguista do MIT que abraçou Darwin para responder a um dos maiores mistérios da ciência: por que o ser humano é capaz de falar?

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
27 abr 2018, 19h26

“Eu publiquei o meu artigo científico em fevereiro [de 2018] e ele foi muito bem na mídia. Apareceu em todos os jornais, até na National Geographic. Pena que, dois dias depois, veio o pessoal das pinturas rupestres Neandertais e anunciou a descoberta deles. Todos os jornalistas se esqueceram de mim”. Quem conta a história, em tom de brincadeira, é Shigeru Miyagawa, professor de linguística e pró-reitor de educação aberta no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT. Eu tenho culpa no cartório: fui justamente um dos jornalistas que acabou dando a notícia sobre arte Neandertal. A prova do crime está publicada no site da SUPER até hoje.

Não que Miyagawa precise de confete, é claro: seu currículo inclui até ser vizinho de sala de Noam Chomsky, o Einstein da linguística – com que participou de um programa de rádio de meia hora da Nature, a revista científica mais importante do mundo. O senhor japonês de camisa impecável visitou a USP na última quinta (26) para divulgar sua hipótese mais recente: ele propõe que a linguagem humana, única entre os animais, surgiu graças à conjugação de dois sistemas de comunicação que até então estavam separados na natureza: o canto dos pássaros e as vocalizações de alerta dos macacos.

O resumo da ópera vai assim: alguns macacos, como os da espécie africana Chlorocebus pygerythrus, têm algo análogo a vocabulário. Se um deles emite o conjunto de sons associados a “águia”, por exemplo, todo o bando sabe que a ameaça vem do céu, e desce das árvores. Já se o ruído for o equivalente a “leopardo”, o grupo sobe para escapar. É uma associação clara entre som e sentido, mas para por aí: eles não conseguem unir esses projetos de palavra em frases. Eles não têm a cola que dá sentido à língua: a gramática.

Já alguns pássaros (como os rouxinóis, Luscinia megarhynchos) têm a habilidade oposta. Tomadas individualmente, as notas musicais de seu canto não têm significado. Elas só passam a comunicar algo – identidade ou disponibilidade para acasalar, por exemplo – graças à maneira como são encadeadas nas melodias. Exatamente da mesma forma que o Beethoven e Rita Lee usam as mesmas notas para produzir dois tipos de música muito diferentes. Em resumo: pássaros têm uma forma primitiva de gramática, mas não vocabulário.

Unidos graças a um dos golpes de sorte que movem a seleção natural, esses dois sistemas – chamados por Miyagawa de “L” (lexical) e “E” (expressão) – poderiam ser a chave para conciliar a linguística à teoria de Darwin. Bons candidatos a serem os alicerces biológicos da nossa avançada capacidade de comunicação. Em parceira com vários colaboradores – incluindo o brasileiro Vitor Nóbrega, da USP –, o professor do MIT publicou essa ideia inovadora em artigos científicos que saíram no periódico Frontiers of Psychology entre 2013 e 2015.

União instável

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Fazer as faculdades de Letras e Biologia a apertarem as mãos e trabalharem juntas não é uma tarefa tão fácil quanto parece à primeira vista. Qualquer leigo é capaz de ver a relação óbvia entre as duas: todos os bebês, não importa a cultura, acesso à educação ou classe social, aprendem a falar sua língua natal na mesma época da vida, com a mesma perfeição, antes de saberem andar ou manipular objetos. Essa é uma evidência de que a linguagem é um instinto – de que a gramática vem, até certo ponto, instalada de fábrica no nosso cérebro.

O problema é que o discurso não fossiliza, não aparece no registro geológico. Como encontrar provas de que a capacidade de comunicação humana evoluiu exatamente como o andar bípede e a postura ereta? “Há uma reunião famosa, que ocorreu em 1866, na Sociedade Linguística de Paris, em que ficou decidido que era proibido discutir a evolução da linguagem”, me contou Miyagawa em uma sala de pé direito alto na reitoria da USP, onde conversamos por meia hora. “Segundo eles, era impossível coletar evidências concretas. E ainda há um pouco desse pensamento hoje. Ainda se diz que especular sobre a origem biológica da linguagem é como inventar boas histórias sem ter provas.”

Quem deu o passo mais importante para mudar essa visão foi justamente Noam Chomsky, a já mencionada lenda do MIT. Entre as décadas de 1950 e 1960, analisando as semelhanças entre as mais de 6 mil línguas que existem no mundo – e o processo praticamente mágico de aquisição de linguagem por crianças de todos os povos e países –, o pesquisador concluiu de maneira quase incontestável que a reunião de 1866 se precipitou: na verdade, a gramática das línguas humanas, para ser da maneira que é, só pode ser explicada como parte da arquitetura do cérebro.

A única força capaz de arquitetar cérebros – ou quaisquer outros órgãos – é a seleção natural, então seria um passo natural seria incluir Darwin na jogada. Chomsky nunca deu esse passo com segurança: seu mérito foi mostrar a anatomia da linguagem como ela é, e não contar a história de sua origem. O máximo que ele fez foi especular que uma única mutação genética, há alguns milhares de anos, teria dado ao ser humano a capacidade de usar estruturas recursivas – grosso modo, a capacidade de criar frases que se encadeiam em outras indefinidamente, como “Maria contou para Jorge que comentou com Paulo que…”.

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Para Miyagawa, chegou a hora de tentar ir além – mas com cautela. “Nós já sabemos mais do que sabíamos em 1866. Sabemos muito sobre o cérebro de humanos, primatas e pássaros. Agora nós temos a genética, que é muito importante para estudar a evolução. Podemos falar com mais segurança e teor científico sobre a origem da linguagem, sem cair no risco de só ‘contar boas histórias’. Só não sabemos o suficiente para dar respostas definitivas logo de cara.”

Um passo de cada vez

O professor do MIT de fato não tem pretensão nenhuma de bater o martelo nessa questão, e admite as dificuldades de sua teoria. Por exemplo: o ancestral comum de pássaros e humanos (em bom português, o último tataravô que você e um papagaio tiveram em comum antes de seguirem caminhos evolutivos diferentes) viveu há 300 milhões de anos, antes do início da era dos dinossauros. Como é que pode nós sermos parecidos com eles em um sistema tão complexo se nossa herança genética compartilhada é tão distante?

Felizmente há maneiras de controlar o problema: a seleção natural é muito boa em fornecer soluções parecidas para animais que em princípio não tem nada a ver um com o outro. Tubarões e baleias, por exemplo, não são nem um pouco próximos – as baleias são mamíferos e começaram a carreira como animais terrestres de quatro patas, parentes dos hipopótamos. Mesmo assim, ambos desenvolveram nadadeiras similares quando foram confrontados com o desafio de viver no oceano. Um processo de convergência parecido pode ter ocorrido com os cérebros de humanos e pássaros quando tanto um como o outro precisaram dar um jeito de se comunicar.

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Já temos pistas nesse caminho: um artigo científico de 2014 – publicado pela equipe do neurocientista Andreas Pfenning, na época da Universidade Rockefeller – revelou que Homo sapiens, beija-flores e mandarins compartilham 55 genes de alguma forma associados ao canto e à organização de sons. Entre eles, o famoso FOXP2, que já foi chamado com exagero de “gene da gramática”. Coincidência? Provavelmente não. Mas é bom ir com calma ao associar espécies tão distantes.

Outro problema é mais antigo que o próprio ser humano: qual vantagem de sobrevivência teria um macaco que grita para avisar seus amigos da aproximação de um predador? Afinal, ao agir dessa maneira ele revela sua própria posição e se torna uma presa fácil, enquanto o resto do bando ganha tempo para escapar. Com o tempo, a tendência seria que macacos comunicativos fossem eliminados em prol dos silenciosos – a natureza não dá biscoito para altruísmo.

“Esse é um enorme quebra-cabeças. É uma adaptação fraca, informar sua posição para o predador. Mas há algumas explicações”, explica Miyagawa. “Uma é que um macho líder, ao anunciar sua posição em prol dos outros, impressiona e atrai um número maior de fêmeas. A segunda explicação é que, ao avisar os outros, você também está avisando sua família, e ao permitir que sua família sobreviva, você protege seus próprios genes.” Percalços a parte, ideias como as do professor japonês são essenciais para unir áreas distantes e impedir que áreas diferentes da ciência fiquem cega de tanta especialização. Para ele, a integração entre humanas e biológicas será essencial para a ciência avançar no século 21.

Suas últimas experiências foram ousadas para a média dos linguistas: em um artigo científico publicado em fevereiro deste ano, Miyagawa e sua equipe analisaram a posição de pinturas rupestres no interior de cavernas em sítios arqueológicos. Ao que tudo indica, os pontos que os Homo sapiens pré-históricos escolheram para deixar suas primeiras manifestações artísticas, há no máximo 50 mil anos, correspondiam aos locais em que o som tem maior ressonância – em que o eco é mais forte. Uma associação simbólica sutil, mas que serve de pista para o estágio que nossa linguagem havia alcançado naquela época. No final das contas, a comunicação deixa sim fósseis. É só olhar para o mundo com os olhos certos.

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