Cobras-cegas também produzem leite para alimentar seus filhotes
As fêmeas desses anfíbios produzem um líquido análogo ao fornecido por mamães mamíferas – e os bebês até “choram” pedindo comida.
Os mamíferos não são os únicos animais que dão leite para seus filhotes – alguns pássaros, aranhas e peixes também produzem um líquido rico em nutrientes para alimentar sua prole.
Um novo estudo de pesquisadores do Instituto Butantan, publicado no prestigiado periódico Science, mostra que as cobra-cegas também têm essa capacidade. As fêmeas secretam um líquido nutritivo pela cloaca, que fornece a maior parte dos nutrientes exigidos pelos bebês.
Os cobras-cegas (também chamadas de cecílias) são anfíbias como os sapos e rãs, apesar de sua semelhança física com espécies rastejantes como cobras, vermes ou minhocas gorduchas.
Elas não têm membros e possuem olhos rudimentares, capazes apenas de distinguir luz e sombra. Algumas espécies põem ovos no ambiente – em outras, os recém-nascidos saem dos ovos ainda no interior da fêmea, onde é mais úmido e seguro.
Por morarem basicamente debaixo da terra, as cobras-cegas são animais difíceis de se estudar. O caminho para esta última descoberta começou em 2006, quando os pesquisadores publicaram um outro estudo mostrando que as cobras-cegas ovíparas (as que põem ovos) mudam de cor enquanto cuidam dos filhotes.
Elas passam de sua cor cinza-escura típica para um tom esbranquiçado e opaco. Essa troca de visual se deve ao fato de que os filhotes se alimentam da pele da mãe, usando pequenos dentinhos embrionários para removê-la. A pesquisa foi um sucesso acadêmico e atraiu até a mídia gringa:
“O Life In Cold Blood, programa de vida selvagem da BBC apresentado pelo David Attenborough, teve uma parte sobre as cecílias filmada aqui no Butantan, no meu laboratório”, conta à Super o doutor Carlos Jared, pesquisador do Instituto Butantan e um dos autores do estudo.
A equipe do documentário trouxe um equipamento engenhoso. Eles usaram uma máquina de endoscopia para espiar dentro dos buracos em que vivem as cecílias e filmar o que acontecia sem atrapalhar muito a rotina desses anfíbios.
“E aí a Hilary Jeffkins [produtora do documentário] falou assim: ‘olha, interessante que a gente viu várias vezes os filhotinhos tenderem para a abertura cloacal da fêmea’. O tempo passou e a gente ficou com aquilo na cabeça”, diz Jared.
A pulga atrás da orelha aumentou quando os pesquisadores perceberam que os nutrientes da pele da cobra-cega mãe não eram suficientes para permitir o crescimento saudável dos filhotes.
As células da epiderme são ricas em proteína e possuem gotículas de lipídios, mas essa refeição frugal não explica tudo – os filhotes comem a pele da mãe uma vez por semana, mas crescem 130% nos primeiros sete dias fora dos ovos.
“Os filhotinhos são bichos extremamente ativos, são muito dinâmicos”, diz Jared. “A gente tinha a suposição de que a pele não tinha carboidrato, e eles necessitam de açúcar para sua atividade imediata. Isso ficou rodando na cabeça: como é que acontece?”
Quando a oportunidade surgiu, Jared voltou para esse ponto de pesquisa junto do biólogo Pedro Luiz Mailho-Fontana, que fez do assunto seu pós-doutorado.
Eles montaram um ninho para as cobras-cegas e gravaram a atividade das mães e bebês por mais de 200 horas – desde o momento da eclosão do ovo dentro da mãe até quando os filhotes deixavam o corpo dela, dois ou três meses depois.
Com tantas horas de filmagem, foi possível pegar as cobrinhas-cegas com a boca na botija. Ou melhor, na cloaca.
“Foi a grande surpresa, né? A gente começou a ver que os filhotes iam para a abertura cloacal da mãe e ficavam sugando um líquido viscoso que saia de lá. Muitas e muitas vezes, o tempo todo sugando. Tinha alguns que até tentavam enfiar a cabeça dentro da cloaca da mãe”, diz Jared.
Analisando esse líquido, eles perceberam que ele é quimicamente semelhante ao leite dos mamíferos – rico em carboidratos e ácidos graxos. E que essa é uma substância frequente no cardápio: os filhotes se alimentam do tal leite quatro vezes mais do que comem a pele da mãe.
Os pesquisadores também descobriram que os bebês famintos “choram” para avisar a mãe de que estão com fome. Durante as gravações, os filhotes tocaavam regularmente a área ao redor da abertura cloacal enquanto emitiam um som agudo, que se intensificava no minuto final antes da liberação do líquido. Um aviso sonoro faz sentido, já que as cobras-cegas não são cobras, mas são cegas.
Pois é: nem os anfíbios escapam da sina das mães de primeira viagem. Passar a noite em claro por causa do bebê chorando não é exclusividade da espécie humana.