Como Balzac, o romancista do século 19, dominou o multiverso antes da Marvel
O escritor francês gerou, ao longo de sua carreira prolífica, mais de cem peças de ficção com personagens e tramas entrecruzadas.
Harsh Trivedi, professor associado no Centro de Ensino de Letras Modernas na Universidade de Sheffield. O texto abaixo saiu originalmente no site The Conversation, que publica artigos escritos por pesquisadores. Vale a visita.
O multiverso tornou-se uma parte essencial da cultura pop. O Universo Cinematográfico Marvel (MCU, em inglês) trouxe esse estilo de mundo compartilhado com o filme Homem de Ferro (2008), em que uma cena pós-créditos sugeria um planeta maior interconectado.
Com o tempo, isso se expandiu, especialmente com o longa-metragem Doutor Estranho, de 2016. Filmes como Spider-Man: No Way Home (“Homem-Aranha: Sem Volta Para a Casa”, 2021) e Doctor Strange: Multiverse of Madness (“Doutor Estranho no Multiverso da Loucura”, 2022) apresentaram ao público mundos paralelos onde coexistem diferentes versões do mesmo personagem.
O multiverso também foi adotado por outras produções cinematográficas como Everything Everywhere All At Once (“Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”, 2022), que ganhou vários prêmios da Academia, e Stree 2 (mesmo título em português), que se tornou o filme de Bollywood de maior bilheteria de todos os tempos em setembro de 2024.
Esse estilo de contar histórias tem raízes literárias profundas. Acredito que a primeira pessoa a dominar o multiverso fictício foi o romancista francês do século XIX, Honoré de Balzac (1799-1850), em sua obra monumental La Comédie Humaine (“A Comédia Humana”, 1829-1847).
Na década de 1920, o físico alemão Werner Heisenberg (1901-1976) desafiou a física newtoniana ao postular que as partículas podem ocupar simultaneamente vários estados – ele chamou isso de Princípio da Incerteza.
Mais tarde, na década de 1950, o físico americano Hugh Everett (1930-1982) propôs a Interpretação de Muitos Mundos, sugerindo que todos os resultados possíveis de um evento quântico ocorrem, cada um em um universo separado, mas paralelo.
Embora essa teoria tenha sido desenvolvida na física, o termo “multiverso” foi introduzido na literatura pelo escritor britânico de ficção científica Michael Moorcock. Em The Eternal Champion (1970), ele imaginou personagens que existiam em mundos simultâneos com vários avatares.
Entretanto, “A Comédia Humana”, de Balzac, escrita mais de um século antes, já continha as sementes da narrativa multiverso. Composta por quase 100 romances e contos, ela apresenta milhares de personagens que reaparecem em diferentes obras, criando um mundo compartilhado que permite interconexões complexas.
A inovação de Balzac não estava apenas nesses personagens recorrentes, mas na unidade temática e conceitual que ele estabeleceu em sua obra ficcional.
Essa coesão é construída por meio de sua específica “tipologia” de personagens. Os “tipos” de Balzac são personagens que incorporam traços universais e, ao mesmo tempo, mantêm suas personalidades individuais, o que os torna instantaneamente reconhecíveis em diferentes histórias.
Em seu prefácio para um Caso Tenebroso, Balzac defende seu uso de personagens: “Um tipo… é uma persona que resume em si mesmo certos traços característicos de todos aqueles que mais ou menos se assemelham a ele, que é o modelo do gênero.”
O filósofo húngaro Georg Lukács (1885-1971) expandiu esta ideia afirmando que os tipos de Balzac representam uma síntese do individual e do universal. Esses personagens são universais o suficiente para representar forças sociais mais amplas, embora permaneçam indivíduos distintos em suas próprias narrativas.
Esse equilíbrio entre o universal e o individual é a pedra angular da descrição do multiverso. Por exemplo, o clímax de Spider-Man: Sem Volta para a Casa destaca a interação entre esses dois aspectos (equilibrados) dos personagens, como visto quando três versões do Homem-Aranha (Toby Maguire, Andrew Garfield, Tom Holland), de universos paralelos, se unem.
O Homem-Aranha de Garfield encontra a redenção ao salvar MJ (o interesse amoroso do Homem-Aranha de Holland), um momento que reflete sua própria perda trágica de Gwen — enfatizando tanto o trauma compartilhado quanto os destinos divergentes.
Da mesma forma, os personagens recorrentes de Balzac evoluem em “A Comédia Humana”, refletindo diferentes facetas de suas personalidades e situações. Embora não tenha sido planejado como um universo rateado desde o início – Balzac adaptou obras anteriores para se adequar a essa estrutura -, a coerência de seu mundo ficcional é notável.
Mobilizando o multiverso
O filósofo francês Alain escreveu que o universo literário de Balzac, às vezes, pode parecer uma “encruzilhada onde os personagens de A Comédia Humana se encontram, se cumprimentam e passam”. Isso cria uma sensação de desarticulação, devido à falta de uma ordem cronológica rigorosa, permitindo que os leitores entrem no mundo de Balzac a partir de qualquer um dos quase 100 romances ou contos.
O romancista francês abordou essas preocupações em seus prefácios. Ele se envolveu em um meta-discurso semelhante às cenas pós-créditos dos filmes modernos da Marvel, em que futuras linhas de enredo e arcos de personagens são sugeridos.
O uso de prefácios por Balzac, como um espaço para se antecipar às críticas e interagir com seus leitores, adianta o diálogo entre criadores e fãs no MCU. Assim como a Marvel equilibra a visão criativa com as demandas dos fãs, Balzac usou seus prefácios para abordar as preocupações de seus leitores sobre as trajetórias de personagens amados.
Um dos muitos exemplos ocorre no prefácio de Pierrette (1840), em que Balzac revela que Maxime de Trailles, um solteirão notório que arruína a vida de muitas mulheres em A Comédia Humana, está finalmente se casando.
Apesar das críticas dos leitores que queriam que De Trailles tivesse um fim trágico e doloroso, Balzac defende sua decisão, comentando com humor: “O que você quer que eu faça? O demônio Maxime está com boa saúde”.
Tanto Balzac quanto a Marvel lidam com o desafio de atender a um público amplo e diversificado. O modelo do multiverso, no entanto, oferece uma solução para as limitações de um universo compartilhado.
Enquanto Balzac lutava com a impossibilidade de criar um mundo completamente coerente – “A Comédia Humana” estava inacabada quando ele morreu –, o multiverso permite que os criadores modernos explorem várias realidades e satisfaçam as expectativas de um público diverso sem fazer escolhas de discursos irreversíveis.
Em 2019, a Marvel enfrentou uma reação negativa ao filme Capitã Marvel por parte dos fãs conservadores, por ter escalado uma atriz feminina para o papel principal – e, depois, em 2022, outra reação negativa por ter escalado uma atriz muçulmana paquistanesa como Ms. Marvel.
Em vez de abordar diretamente as críticas, o que poderia ter alienado tanto o público conservador quanto o liberal, a Marvel usou o multiverso para atender a uma ampla gama de expectativas.