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Como nascem as memórias falsas

O cérebro pode gravar algo que nunca ocorreu como se fosse uma lembrança verdadeira. E isso pode trazer consequências nefastas.

Por Guilherme Eler
Atualizado em 5 jul 2021, 21h09 - Publicado em 26 dez 2018, 14h04

Salvador Dalí, o pintor surrealista, dizia ser dono de uma memória incomum. Ele teria lembranças detalhadas até mesmo da temporada que passou no útero de sua mãe – como se literalmente tivesse vindo ao mundo ontem.

Em sua autobiografia, A Vida Secreta de Salvador Dalí, o artista catalão chega a afirmar que memórias de uma vida entre chutes e contrações estariam ao alcance de qualquer pessoa. Bastava que fossem estimuladas por histórias (como as dele) para virem à tona.

Havia, no entanto, um porém: nada do que Dalí dizia se lembrar era real. E qualquer recordação que seus leitores porventura tivessem seria igualmente falsa. Isso ocorre por causa de uma característica única do cérebro humano: viver confundindo o que é memória com o que não passa de uma ilusão quase perfeita.

Seu cérebro acessa memórias o tempo todo. É assim que você aprende alguma coisa e depois não precisa voltar a estudá-la todos os dias – ou acorda sabendo o nome dos seus pais. A vida seria impossível se você não pudesse confiar na memória… E, ainda assim, ela não é das mais confiáveis.

Sabe quando você tem certeza de que visitou certo lugar até que, um belo dia, se dá conta de que jamais pôs os pés lá? Ou quando consegue contar, com detalhes dignos de testemunha ocular, uma história que sequer aconteceu contigo? É sua mente tapeando você. Bem-vindo ao mundo das memórias falsas, onde seu intelecto é confiável só até a página dois.

O cérebro é capaz de gravar corretamente uma situação e armazená-la junto a memórias verdadeiras, sem que ela tenha ocorrido de fato. Pode ter sido contada por outra pessoa. Ou simplesmente imaginada.

É o caso de Dalí. Não há consenso entre os cientistas se é possível guardar qualquer coisa vivida antes dos 2,5 anos de idade. Alguns estudos vão além: afirmam que nenhuma memória sobrevive dos zero aos 3 – e que as primeiras memórias permanentes só surgem aos 5 anos. Um cérebro infantil, que ainda não está desenvolvido por completo, é incapaz de carregar lembranças da primeira infância até a fase adulta. E é essencial que seja exatamente assim – não só nos primeiros anos, mas ao longo da vida toda.

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Nossas memórias
ficam guardadas
no hipocampo e são
nada além de rela-
ções de afinidade
entre os neurônios.

Estar constantemente lembrando e esquecendo é a chave para entender por que somos tão inteligentes e criativos. Aprender algo pela primeira vez é criar uma nova ligação entre áreas que nunca foram conectadas antes. E, para criar novas conexões, é preciso ter sempre espaço de sobra na memória. “Esquecer, e mais especificamente escolher o que será esquecido, também é importante para garantir que aquilo que precisa ficar cravado na memória de fato permaneça lá”, explica Giuliana Mazzoni, professora de psicologia da Universidade de Hull, na Inglaterra, e uma das principais referências do estudo de memórias falsas no mundo.

“Imagine, por exemplo, que você tenha mudado de cidade 21 vezes ao longo da vida. Se todos os 21 números de telefone que você teve vierem à mente ao mesmo tempo sempre que alguém pedir seu contato, haverá um ruído muito grande, capaz de bloquear da memória o único número que realmente importa a quem pergunta – o atual”, diz.

Recorta e cola

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(Gabriela Sánchez/Superinteressante)

Nossas memórias ficam guardadas em uma região do cérebro chamada hipocampo, e são nada além de relações de afinidade entre os neurônios. Quando você memoriza alguma coisa – como a data de aniversário de sua mãe, por exemplo –, o cérebro forma conexões entre as células cerebrais que respondem por aquela informação. Se é preciso lembrar novamente a data em questão, a mesma rede de neurônios é ativada e recupera a informação correta.

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Para reviver uma memória, portanto, é como se o cérebro tivesse que percorrer um caminho pré-determinado, reconectando a rede. Aí mora um problema: e se uma memória sem importância precisa ser resgatada com urgência e detalhes, anos depois de ser formada?

Para dar sentido à história, seu cérebro recorre à imaginação, preenchendo os buracos em modo automático. Como não poderia deixar de ser, ele faz esse trabalho da forma mais criativa possível, usando o que tiver à disposição. Nossa memória não se comporta como a de uma câmera digital, em que tudo, uma vez gravado, fica facilmente acessível quando se bem entende. Ela está mais para uma página de Wikipédia, que pode ser editada livremente. E o principal: ela é colaborativa. Você não é o único editor – sua memória enciclopédica também pode ser editada pelos outros.

A analogia acima é de Elizabeth Loftus, psicóloga americana que conduziu o primeiro teste de destaque envolvendo a implantação de memórias falsas em 1995. A ideia de Loftus era descobrir, nos experimentos, se era possível convencer alguém de algo que nunca viveu só na base da lábia. Algo no estilo do filme A Origem, só que com ela mesma assumindo o lugar de Leonardo DiCaprio.

A manipulação deu certo: uma em cada quatro pessoas testadas saíram dos encontros acreditando piamente ter memórias sobre os mais bizarros acontecimentos. De abduções alienígenas, beijos em sapos a até mesmo um pedido de casamento feito a uma máquina de refrigerantes, não parecia haver limites para as distorções que alguém poderia aceitar sobre a própria biografia.

Em 2015, outra pesquisadora encontrou resultados ainda mais distópicos. Em um experimento similar liderado por Julia Shaw, pesquisadora da University College, em Londres, 70% dos voluntários incorporaram memórias falsas. De machucados inventados a ataques de cachorro falsos, Shaw ainda conseguiu convencer seus voluntários a admitir pequenos crimes – furtos, por exemplo – que jamais existiram.

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No primeiro momento, nenhum participante se lembrava das histórias estranhas. Mas isso mudou após gastarem alguns minutos por dia, durante três semanas, tentando visualizar a cena. Não raro, eles não apenas acreditaram no papo como descreviam o ocorrido com detalhes.

A chave para o sucesso do método estava na forma de conduzir a conversa. As histórias plantadas tinham como alicerce informações reais, dadas de antemão pelos pais das cobaias – como o nome de um amigo de infância ou da rua da casa em que viviam na época. Mescladas com informações absurdas e repetidas por vezes seguidas, o todo se tornava plausível. “Como assim você não se recorda? O cientista não mentiria para você dessa forma. Trate de se lembrar, para não passarmos vergonha”, diriam nossos neurônios, se pudessem. A fundação na realidade e a pressão da autoridade: temos aqui um belo combo para fazer o cérebro comprar a ideia de que uma lembrança existiu – e preencher incômodas lacunas com memórias falsas.

Em nome da lei… do cérebro

SI_398_Memórias_3
(Gabriela Sánchez/Superinteressante)

O fato de nossa memória ser manipulável e, em vários casos, pouco confiável, não costuma fazer diferença no trabalho, na escola ou em uma conversa de bar. No que se refere a obrigações legais, porém, lembrar de algo que não aconteceu pode ser a diferença entre condenar ou inocentar alguém.

Nos Estados Unidos, o Innocence Project, organização que identifica e interfere em casos de réus injustamente condenados, estima que 70% das condenações equivocadas são causadas por suspeitos reconhecidos de forma incorreta.

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Não há um levantamento específico para o Brasil, mas, por aqui, o que se sabe é que os depoimentos de vítimas e testemunhas oculares são o principal tipo de evidência utilizada na condução de um processo criminal.

Entrevistas com
testemunhas podem
ser enviesadas e
interferir na coleta de provas.

Um estudo realizado para o Ministério da Justiça, em 2014, mostrou que 90,3% dos profissionais que participam da investigação, como policiais, delegados, promotores e juízes, dão importância máxima a testemunhos. Além disso, 69,2% desses profissionais costumam valorizar em grandes proporções o reconhecimento facial de criminosos, eventualmente feito com base em fotografias.

O problema é que, às vezes, provas do tipo falham feio. Um exemplo de destaque foi o caso do dentista carioca André Biazucci Medeiros, que respondeu a sete acusações de estupro em 2014. Reconhecido pelas vítimas e preso, foi inocentado após exames de DNA.

Para piorar, os métodos de coleta dos testemunhos também atrapalham. Dependendo da abordagem da entrevista, a qualidade da prova pode ser comprometida – e a memória, enviesada. Fazer perguntas como “o carro era vermelho, não era?”, por exemplo, tem um impacto muito maior do que “o que você pode me dizer sobre o carro?” ou ainda “qual era a cor do carro?”.

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Por esse motivo, alguns países adotam uma técnica chamada entrevista cognitiva, que evita questionamentos do tipo. Por lá, o controle da conversa precisa estar nas mãos de quem responde, não de quem pergunta. Segundo Gustavo Noronha de Ávila, professor de ciências jurídicas e pesquisador que integrou o estudo para o MJ, abordagens diferentes “podem legitimar condenações em série, com base em provas frágeis do ponto de vista científico”.

Mesmo que se obedeça a técnicas coerentes de entrevista, o inimigo mais implacável da memória, o tempo, ainda persiste.

Vítimas ou testemunhas de crimes costumam contribuir para a investigação pelo menos três vezes, com grandes intervalos entre cada depoimento. O primeiro interrogatório, em geral, é feito à Polícia Militar, no momento do flagrante. Quem assume depois é a Polícia Civil e, só então, começa a fase processual, conduzida pelo juiz. “O intervalo entre o crime e esse último depoimento costuma ser de um ano”, completa Ávila.

Não nos lembramos do que passamos antes de nascer. Não fixamos memórias antes dos 5 anos. E, depois disso, passamos o resto da vida sujeitos àquilo que o cérebro decide lembrar, inventar e, finalmente, esquecer. Com o prazo de validade de nossas memórias, não há quem seja capaz de competir. Como Salvador Dalí já havia pintado no quadro A Persistência da Memória, cada recordação, ao ser criada, ganha para si um relógio que começa a derreter. Não há nada a fazer por elas, a não ser vê-las ganhar tons pastel, esquecidas no fundo da mente. Tentar resgatá-las, como insistia o pintor, é uma ambição perdida: uma “memória” recuperada à força vai sempre vir pintada de cores fantasia.

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