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Conheça o Órion, 1° laboratório de segurança biológica máxima do Brasil

O acelerador de partículas Sirius, em Campinas (SP), ganhará um anexo capaz de pesquisar micróbios perigosos. Entenda como ele funcionará (e o que acelerar partículas tem a ver com o estudo de doenças).

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 17 jun 2024, 17h32 - Publicado em 19 out 2023, 16h24

 

por Bruno Vaiano
design de Caroline Aranha | edição de Alexandre Versignassi

 

O vírus mais perigoso já encontrado no Brasil fez sua primeira vítima em 1990 no Jardim Sabiá – um pequeno bairro do município de Cotia, nos arredores da capital paulista, às margens da Rodovia Raposo Tavares. A vítima, uma engenheira agrônoma de 25 anos, passou 12 dias em casa com sintomas similares aos de dengue: dores na cabeça e no corpo, enjoo e fraqueza. Foi internada e morreu no hospital quatro dias depois, com sonolência, tremores, convulsões e sangramentos espontâneos em vários órgãos.

O Instituto Adolfo Lutz analisou o patógeno e o enviou à Universidade Yale, nos EUA, que confirmou se tratar de uma espécie inédita de arenavírus – família que inclui os causadores de outras quatro febres hemorrágicas letais: os vírus Junin, Machupo, Guanarito (todos sul-americanos) e Lassa (africano). Em referência ao bairro, batizaram o dito-cujo de vírus Sabiá, sigla SABV.

Em sua turnê por institutos de pesquisa, o Sabiá fez mais estrago. No Brasil, em 1992, um técnico de laboratório se infectou, mas recebeu tratamento médico imediatamente e sobreviveu. Em 1994, já em sua passagem por Yale, o vírus se espalhou por acidente em uma centrífuga (equipamento típico de laboratórios) e contagiou um pesquisador americano de 46 anos – que acabou internado, mas se recuperou com auxílio de um remédio antiviral.

O SABV fez três vítimas fatais – além do caso de Cotia, houve uma morte em 1999 e outra em 2019, ambas no Brasil também. Todas contraíram o vírus em regiões rurais ou de mata nativa, já que, na natureza, ele se hospeda em roedores silvestres. O mais provável é que o Sabiá se transmita a bordo de aerossóis, partículas de material sólido ou líquido tão leves que flutuam no ar. O roedor faz xixi no chão e o líquido infectado se mistura ao pó. Depois, é só bater um vento e alguém respirar na hora errada. A transmissão de humano para humano é possível, mas nunca ocorreu.

O Brasil não tem, hoje, nenhum laboratório com o grau de contenção necessário para lidar com o Sabiá ou outras pestinhas de periculosidade similar. Nossas melhores instalações obedecem ao chamado nível de biossegurança 3 (NB-3). É suficiente para mexer com o coronavírus. Mas alguns patógenos exigem ambientes NB-4: o próximo nível de segurança, e o mais alto que existe.

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Agora, um projeto desse calibre finalmente vai sair do papel. O Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas (SP), deu início às obras do Órion, um complexo que conterá o primeiro ambiente NB-4 do país. O prédio de 20 mil m², programado para 2026, custará R$ 1 bi do FNDCT, um fundo do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), e terá também laboratórios com níveis de contenção mais baixos, bem como um biotério e escritórios.

O Órion não é especial apenas por ser a primeira instalação do tipo no Brasil. O bacana mesmo é que esse será o único laboratório de segurança máxima do mundo acoplado a um acelerador de partículas, o Sirius, que também pertence ao CNPEM e é o projeto mais ambicioso da história da ciência nacional.

O Sirius é uma fábrica de luz. Seu objetivo é produzir feixes de radiação eletromagnética muito intensos e com aplicações ultraespecíficas. Eles permitem tanto determinar a estrutura de um vírus átomo por átomo como fazer tomografias de altíssima definição que mostram a atuação do patógeno em várias escalas: dá para “flagrar” um Sars-CoV-2 invadindo uma célula, espiar a dengue se hospedando em um Aedes ou acompanhar o passo a passo de uma doença com um zoom menor, de olho nos danos aos órgãos e tecidos de uma cobaia animal. Vamos entender como nas próximas páginas.

Imagem interna do laboratório de biossegurança máxima com silhuetas de cientistas trabalhando.
(CNPEM/Divulgação e Arte/Superinteressante)

Favores gringos

Ter um NB-4 em território nacional é uma questão de soberania. Somos o país mais biodiverso do mundo. O que significa, é claro, que nossa microbiota é tão vasta quanto a fauna e a flora. A maior parte da vida microscópica é inofensiva (e, com frequência, rende descobertas úteis para pesquisas aplicadas na área de biotecnologia). Mas, se algo perigoso aparece, “você não tem alternativa a não ser suspender a sua pesquisa ou enviar essa amostra para um laboratório em outro país. A maioria deles está no hemisfério norte”, diz o virologista Rafael Elias Marques, do CNPEM. “Não podemos responder a nossas perguntas por falta de infraestrutura.”

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Calcula-se que haja entre 500 mil e 600 mil vírus desconhecidos no Brasil. Se quiser usar instalações estrangeiras para investigar qualquer um deles, entre na fila – literalmente: há um gargalo enorme na oferta de laboratórios NB-4. Há apenas 60 deles pelo mundo.

Além de patógenos que nem descobrimos, há uma porção de vírus e bactérias latinos, caribenhos, africanos e asiáticos já conhecidos que acabam deixados de lado pela ciência mainstream praticada na Europa e nos EUA. Nenhum pesquisador gringo, em sã consciência, diria que os micróbios hermanos no lado sul do mapa merecem menos atenção. Mas é fato que, no cômputo final, a grana dedicada a doenças como dengue, zika ou febre amarela é menor, simplesmente porque os países mais afetados não têm tantos recursos para pesquisá-las. A OMS lista, ao todo, 20 doenças que considera negligenciadas.

O Brasil pode não ser um gigante da ciência mundial, mas tampouco somos cafés com leite: temos a 14ª maior produção de artigos científicos do mundo, logo atrás da Coreia do Sul, e nossos ecossistemas são uma caixa-preta de vida microscópica. Além disso, embora o Órion seja complexo, não é um desafio de engenharia tão grande quanto o Sirius em si. O que leva à pergunta: por que ainda não havia um NB-4 por aqui? Resumindo, a explicação é burocracia demais e interesse político de menos.

“Isso entrou em pauta no Brasil pela primeira vez há décadas, motivado por vários setores da sociedade: acadêmicos, militares, agropecurária”, explica Antonio José Roque da Silva, diretor do CNPEM. “E o agro chegou a construir o equivalente ao nível máximo de segurança biológico para animais, por causa da febre aftosa [doença viral transmitida por água e alimento que ataca bois e porcos].” Ou seja: quando um setor central para a economia se viu acuado por um vírus, a vontade política apareceu. Para José Roque, a Covid foi um susto equivalente, e deu o empurrão que faltava para convencer as autoridades a tirar o NB-4 do papel.

Se a pandemia forneceu o pretexto, o CNPEM deu as condições administrativas. Ele tem vantagens em relação às universidades públicas por se tratar de uma organização social (OS). Uma OS é uma empresa privada sem fins lucrativos que recebe dinheiro do Estado para realizar atividades de interesse público. Elas podem empregar funcionários pelas regras da CLT em vez de realizar concursos públicos, e o processo equivalente a uma licitação para comprar equipamentos é mais simples.

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Essa flexibilidade permitiu tirar projetos como o Sirius do papel, e já deu frutos em outros órgãos. Por exemplo: o mais próximo que o Brasil tem de um prêmio Nobel é uma medalha Fields, a honraria mais alta da matemática. E o medalhista saiu justamente do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), que se tornou referência mundial em matemática – sob o regime de OS.

Infográfico explicando a origem do nome e os andares do prédio do Órion.
(CNPEM/Divulgação e Arte/Superinteressante)

Como funciona um NB-4

Explicada a burocracia, vamos à engenharia. Como, exatamente, se constrói um ambiente tão seguro – e como os 60 NB-4s do mundo fazem para evitar que um Last of Us da vida se transforme em realidade? A explicação começa pelo ar.

Volta e meia a previsão do tempo fala em áreas de alta ou baixa pressão atmosférica. As áreas de baixa pressão têm mais espaço para as moléculas de nitrogênio e oxigênio do ar flutuarem por aí. As de alta pressão, por sua vez, são o contrário: o ar fica mais apertadinho. Do mesmo jeito que os passageiros de um ônibus sempre fluem da área cheia para a vazia (até que a lotação se distribua de maneira uniforme pelo coletivo), o vento “venta” das áreas de pressão mais alta para as de pressão baixa.

Os vírus não têm asas: vão aonde o ar levá-los. É por isso que um laboratório NB-4 – e, em menor grau, um NB-3 – é organizado em uma sequência de salas que formam um degradê de pressão atmosférica. Quanto maior o risco em um ambiente, menor a pressão lá dentro; um sistema de ar-condicionado e ventilação mantém esse gradiente. Mesmo que algum desavisado abra uma porta na hora errada, sempre haverá uma corrente que puxa o ar de fora para dentro.

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Assim, a principal proteção em instalações desse tipo não é a borracha nas portas ou as roupas herméticas usadas pelos pesquisadores – o único acesso ao ambiente externo é a luz que entra pela viseira transparente no capacete –, e sim essa barreira invisível, que mantém as partículas virais sempre com uma passagem só de volta para dentro do laboratório.

Falando na roupa, ela é um pouco como um escafandro do século 19. Um tubo flexível, conectado a uma central no andar de cima, bombeia ar para dentro do traje o tempo todo. Esse tubo permanece sempre conectado ao teto, da mesma forma que um trólebus com o fio de alimentação elétrica.

O lookinho da Nasa segue a mesma lógica das salas. A pressão é mais alta lá dentro do que no ambiente. Isso ajuda caso o traje fure. Enquanto o tubo estiver bombeando ar limpo lá dentro – como você pode imaginar, o pesquisador parece um bonecão inflável da Michelin –, o ar vai sair pelo buraco, e nenhum patógeno será capaz de entrar remando contra essa maré gasosa.

Tirar a roupa é uma dor de cabeça. Primeiro, o pesquisador entra de traje e tudo embaixo de um chuveiro químico, que tem uma ducha no topo e jatos auxiliares disparando das laterais. O banho consiste em uns 3 minutos de higienização com um agente desinfetante, seguido de 4 minutos de água para enxaguar (o tempo exato varia conforme o protocolo usado). Note que a pressão na área do chuveiro já é um pouquinho mais alta que a pressão dentro do laboratório.

O pesquisador sai da área das duchas, fecha a porta, tira a roupa especial (a praxe é vestir algo como um camisolão hospitalar por baixo) e segue para a próxima sala – onde se toma um banho comum, com água e sabão. Depois, ele segue para um vestiário e põe sua roupa regular. Só então ele está autorizado a sair para a área de acesso do laboratório. A primeira sala, onde a pressão é a mais alta de todas.

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Explicamos tudo no infográfico da página 37, que detalha também outra particularidade de um NB-4: ele precisa obrigatoriamente ter quatro andares, um subterrâneo e três acima do solo. No subsolo, fica o maquinário de tratamento de resíduos líquidos, que descontamina todo o esgoto do laboratório. O térreo abriga o laboratório em si. Os andares superiores, por sua vez, contêm a infraestrutura que filtra o ar e mantém o arco-íris de pressões sob controle.

Seguir os protocolos de segurança exige prática, e é por isso que o CNPEM contará com duas instalações de treinamento. Uma delas não ficará no Órion em si (até porque o prédio ainda não existe, e é preciso treinar os pesquisadores desde já, de modo que eles saibam o que fazer quando tudo estiver pronto). Trata-se de uma “maquete” em tamanho real de um laboratório NB-4, instalada no prédio do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio) – a um estacionamento de distância do Sirius, o acelerador de partículas, no mesmo campus. Ela já está em um estágio avançado de construção.

Infográfico mostrando cada um dos níveis do laboratório e o que acontece em cada um deles.
(Arte/Superinteressante)

Onde entra o Sirius

O Sirius tem forma e tamanho de um estádio e é o que os físicos denominam “fonte de luz síncrotron”. O que essas engenhocas fazem é acelerar elétrons – as mesmas partículas que orbitam os átomos e chacoalham na fiação da sua casa – até uma velocidade próxima à da luz. No ponto mais rápido desse autorama subatômico, eles dão 580 mil voltas por segundo em um anel de 518 metros de circunferência, isolado detrás de um paredão de concreto de 1,5 m.

Ao longo do circuito, há dezenas de ímãs muito potentes, e é o campo magnético deles que força os elétrons a permanecerem no trajeto curvo. Cada vez que fazem uma curva, eles perdem um pouco de energia, liberada na forma de radiação eletromagnética, ou seja: luz. Luz de altíssima energia, invisível aos olhos humanos, como raios X. Há 38 curvas ao longo do trajeto, o que significa 38 torneiras de radiação – as chamadas linhas de luz – onde se podem instalar estações de trabalho.

No limite do didatismo, isso significa que o Sirius é uma máquina de tomografia gigante, capaz de dar um zoom brutal em vírus minúsculos e gerar visualizações tridimensionais de altíssima definição de qualquer coisa (como os poros de rochas no oceano, algo que a ajuda a Petrobras a explorar petróleo). Uma tomografia do tipo que é feita lá, em um hospital, demora até 48 h. No UVX, um acelerador de elétrons menor, construído em 1998, são 40 minutos. No Sirius, segundos, pois muito mais partículas de luz, os fótons, atingem a amostra.

Três linhas de luz do Sirius vão sair do prédio principal (o que tem forma de estádio) e entrar nas dependências do Órion. Elas vão fornecer resoluções para todos os gostos. A primeira linha de luz, chamada Sibipiruna, vai disparar feixes tão intensos que permitirão dar um close em uma célula infectada por um vírus e entender melhor as proteínas que ele usa para invadi-la. Esse conhecimento dá um belo adianto, por exemplo, na hora de desenvolver vacinas e remédios de vanguarda, conhecidos como anticorpos monoclonais.

Anticorpos são moléculas que nossos glóbulos brancos produzem sob medida para se encaixar em alguma proteína do patógeno e “algemá-lo”. Hoje, já existe tecnologia para encontrar um anticorpo bom no combate a um certo micróbio e então fabricá-lo artificialmente. Essa terapia dá resultado mais rápido do que esperar o sistema imunológico de cada paciente customizar as próprias moléculas. Como esses anticorpos criados “em cativeiro” são todos cópias exatas de um único anticorpo que já se sabe ser eficaz, eles são denominados monoclonais. Conhecer bem o vírus que você quer algemar acelera as pesquisas pré-clínicas (a fase de desenvolvimento de uma terapia, antes dos testes em humanos) e é uma forma de torná-las mais econômicas.

Imagem interna do Sirius com silhuetas de pessoas andando pelo prédio.
(Arte/Superinteressante)

Um segundo nível de zoom – que será permitido por uma outra linha de luz, a Timbó – consiste em aproximar coisas muito pequenas, mas já visíveis a olho nu. Um exemplo é pegar uma amostra de tecido de um órgão e avaliar de perto como o vírus o afetou. Outra é observar um mosquito Aedes aegypti no momento em que ele está carregando o vírus da dengue, para descobrir como o patógeno se porta lá dentro. E, quem sabe, pensar em novas maneiras de mitigar sua transmissão para humanos.

A terceira linha, chamada Hibisco, tem um grau de ampliação menor. O objetivo é acompanhar a evolução de doenças no organismo como um todo. Nela será possível, por exemplo, ver detalhes dos órgãos de um mamífero infectado com um vírus como o Sabiá – e então manter a cobaia viva para gerar outras imagens depois, quando a infecção piorar. Acompanhar o bichinho vivo ao longo de dias é muito importante para esse tipo de estudo, e o Órion facilitará muito a tarefa.

Esse é um avanço que só foi possível porque o Brasil continua formando pesquisadores apesar dos cortes constantes do investimento em ciência básica desde 2016. Projetos assim derrubam o preconceito de que um doutorado em uma área como física de partículas é “só” um exercício intelectual incompreensível.

“Às vezes a gente pensa que existe uma dicotomia entre ciência de ponta, reescrever os livros, e a parte sanitária, a de desenvolver tratamentos para infecções”, diz a farmacologista Maria Augusta Arruda, diretora do LNBio. “O Órion diminui esse vão. Pesquisa básica e aplicada andam juntas. É só pensar em vacinas de RNA. Pareciam ficção científica, mas nos possibilitaram ter um imunizante contra a Covid em meses.” Quando a próxima pandemia vier – e ela virá –, o Brasil pode se orgulhar: teremos uma estrutura única no mundo para fazer nossa parte.

Agradecemos pelas entrevistas de Tatiana Ometto, James Citadini e Lucas Sanfelici, bem como a Reberson Ricci Ius e Matheus de Matos Ferreira, todos do CNPEM.

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