Relâmpago: Revista em casa a partir de 9,90/mês

Ecossistema inédito criado por humanos está surgindo em ilha do Havaí

Espécies invasoras, extinções locais e ação humana deram origem a um ambiente único e funcional nas encostas de Oʻahu.

Por Manuela Mourão
28 jun 2025, 19h00

Em Oʻahu, Havaí, uma goiabeira sul-americana cresce ao lado de uma árvore africana, envolta por cipós asiáticos e observada por aves originárias do Japão. É uma cena que pareceria absurda há séculos, quando as florestas havaianas eram lar de espécies endêmicas e isoladas do resto do mundo. Mas hoje essa combinação improvável não apenas existe como também parece prosperar.

Os cientistas têm um nome para isso: freakosystem. Um ecossistema acidental, híbrido e, para muitos, “frankensteiniano” — nascido do entrelaçamento de espécies trazidas por colonizadores, comerciantes e jardineiros ao longo dos séculos. É uma paisagem radicalmente alterada por incêndios, desmatamento, agricultura, turismo e introduções biológicas mal planejadas.

“Você não saberia a menos que as estudasse, mas se você andar por qualquer floresta perto de Honolulu, não encontrará uma única espécie de planta nativa lá”, disse o ecologista Corey Tarwater para a BBC. Pesquisador da Universidade de Wyoming, nos EUA, ele começou a pesquisar os ecossistemas de O’ahu em 2014.

O Havaí é um dos lugares mais modificados do planeta em termos ecológicos. Estima-se que mais da metade das espécies de plantas e animais originais tenham desaparecido. Nos últimos cem anos, muitas florestas foram substituídas por paisagens formadas quase exclusivamente por espécies exóticas. Em algumas encostas de Oʻahu, como as da região de Koʻolau, não se encontra mais nenhuma árvore nativa.

Tentativas de restauração ambiental enfrentam obstáculos brutais. Aves endêmicas, que antes espalhavam sementes, foram dizimadas por doenças aviárias e pela invasão de predadores como gatos e ratos. Em seu lugar, entram aves exóticas como o Zosterops japonicus, que agora faz o papel de polinizador e dispersor em florestas inteiras de plantas não havaianas.

Continua após a publicidade

Um estudo de 2019 publicado na Science, conduzido pelos ecólogos Vizentin-Bugoni e por Tarwater, revelou que aves introduzidas no Havaí há pouco mais de um século estão assumindo funções ecológicas que antes eram desempenhadas por espécies nativas já extintas. Essas aves exóticas – ao dispersar sementes, ocupar nichos vagos e formar bandos mistos – ajudam a manter a dinâmica ecológica das florestas de Oʻahu. 

Para Vizentin-Bugoni, o mais impressionante foi perceber que essas interações entre espécies não nativas seguem padrões tão bem estruturados quanto os observados em ecossistemas considerados “intactos”, como a floresta amazônica. “As plantas nativas agora dependem das aves invasoras para dispersão de sementes”, escrevem no estudo.

O que está acontecendo em Oʻahu não é uma situação isolada — é um espelho do que se passa no mundo inteiro. Estimativas publicadas em 2013 sugerem que entre 30% e 40% dos ecossistemas terrestres do planeta já se transformaram em versões “novas”, repletas de espécies introduzidas, extinções locais e dinâmicas ecológicas inéditas. E a projeção é ainda mais dramática: segundo o pesquisador Jens-Christian Svenning, metade da superfície terrestre pode se tornar um ecossistema inteiramente novo até o final do século.

Continua após a publicidade

No Havaí, esse processo foi extremo. Das 142 espécies de aves que só existiam ali, 95 já foram extintas, um colapso que valeu ao arquipélago o apelido de “capital mundial da extinção”. E a ameaça não vem apenas de predadores introduzidos, como ratos e gatos, mas também de doenças invisíveis. Desde o século 19, mosquitos trazidos por navios têm espalhado a malária aviária, letal para muitas aves nativas.

Compartilhe essa matéria via:

Ainda assim, o que emerge nesse cenário de perda e colapso é algo novo e funcional. Aves exóticas têm se adaptado de forma notável: um outro estudo liderado por Tarwater mostrou que algumas desenvolveram bicos menores para se adequar melhor aos frutos diminutos de Oʻahu. Essas mesmas aves formam hoje bandos mistos que voam juntos pelas florestas, em busca de alimento – um comportamento típico da Amazônia, mas que no Havaí é protagonizado por pássaros do Himalaia, da América do Sul e do Japão.

Continua após a publicidade

Diante dessa realidade, muitos ambientalistas repensam os objetivos da conservação. Ainda faz sentido tentar “voltar no tempo”? Por décadas, ecólogos buscaram restaurar paisagens degradadas a um ponto de referência, muitas vezes anterior à chegada dos europeus. Mas em lugares como o Havaí, onde extinções em massa e espécies invasoras remodelaram tudo, essa restauração virou uma impossibilidade prática.

“A novidade ecológica virou o novo normal”, escreveu a ecóloga Anna Walentowitz, da Universidade de Bayreuth, para o portal britânico.

Ainda assim, nem toda espécie exótica é benigna. Vizentin-Bugoni alerta que algumas plantas, como as que produzem frutos por longos períodos e têm sementes pequenas, são especialmente preocupantes. Isso significa que, mesmo num freakosystem funcional, os riscos de desequilíbrio permanecem.

Continua após a publicidade

Por isso, em Oʻahu, a conservação caminha sobre uma corda bamba. Em vez de erradicar tudo que não é nativo, gestores tentam equilibrar a retirada de plantas invasoras com a manutenção de ambientes minimamente atrativos para as aves que ainda podem ajudar a preservar o que resta. Em áreas onde só há plantas nativas, por exemplo, a falta de frutos torna esses espaços desertos para as aves, o que ironicamente compromete a regeneração natural das próprias espécies nativas.

“A floresta do futuro não será igual à do passado”, conclui Vizentin-Bugoni para a BBC. “Mas talvez ainda seja possível fazê-la funcionar.”

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*
Apenas 9,90/mês*
OFERTA RELÂMPAGO

Revista em Casa + Digital Completo

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*
A partir de 9,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$118,80, equivalente a R$ 9,90/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.