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Richard Dawkins: o profeta de Darwin

Para alguns, ele é uma divindade da ciência. Para outros, trata-se do diabo encarnado. A SUPER conversou com essas duas faces do Dr. Dawkins.

Por Alexandre Versignassi Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 9 nov 2020, 16h01 - Publicado em 15 dez 2015, 18h30

– Professor, primeiro eu entrevisto o senhor, depois a gente abre para o público fazer perguntas, tá? A coisa toda deve durar uma hora e meia.

– Humpf – ele respondeu. É muito.

– Tu-tudo bem – eu disse, controlando a gagueira nervosa. Mas não foi o mau humor britânico de Richard Dawkins que me fez tropeçar nas palavras. É que, se não fosse aquele senhor de 74 anos, eu provavelmente estaria morando na rua. Comecei minha vida de jornalista fazendo divulgação científica, e toda a literatura dessa área se divide entre antes e depois de O Gene Egoísta, o livro que esse cara escreveu em 1976, quando ainda era um zoólogo anônimo. Além de explicar a Teoria da Evolução de forma cristalina o bastante para convencer a bancada evangélica do Congresso de que o darwinismo está certo, O Gene Egoísta apresentou dois conceitos marcantes: um era o dos “memes” – os análogos culturais dos genes.

Um meme, Dawkins definiu, é qualquer traço cultural que se reproduz numa população. Uma moda de corte de cabelo, por exemplo, é um meme: algo abstrato que vai “infectando” as pessoas como se fosse um vírus.

O outro conceito marcante que Dawkins lançou ali roçava na ficção científica. Dizia que nós, seres vivos, somos meros robôs a serviço dos verdadeiros donos do mundo: os genes. Você morre, mas os genes dos seus olhos azuis podem sobreviver nos seus filhos e netos, certo? Logo, quem está mesmo no jogo da evolução não é você, são seus olhos azuis – os genes responsáveis por olhos azuis, na verdade. E isso vale para qualquer gene, claro. Indivíduos, nas palavras de Dawkins, seriam só “máquinas de sobrevivência” que os genes desenvolveram.

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Se Darwin “matou Deus” ao mostrar que a vida complexa surgiu basicamente do nada, Dawkins “matou o homem”, porque tirou os indivíduos, nós, do centro do palco da evolução, elevando o DNA, a matéria-prima dos genes, ao papel principal. O sucesso do livro, por outro lado, matou o Dawkins cientista. Ele virou escritor em tempo integral, e foi entrando gradualmente em outra seara: a das religiões. Ateu, como boa parte dos cientistas, nunca se conformou em simplesmente não acreditar num Deus. Passou a vociferar contra todas as crenças.

O auge dessa briga veio com o livro Deus, um Delírio, de 2006, em que ele clama pelo fim das religiões – opinião que tornou-o inimigo público de todos os padres, pastores, xamãs, monges e crentes em geral planeta afora. Em maio, às vésperas do lançamento de seu 12º livro, Fome de Saber, uma autobiografia em dois volumes, Dawkins esteve em São Paulo para falar no seminário Fronteiras do Pensamento.

A Editora Abril, que publica a SUPER, aproveitou e convidou-o para um bate-papo coletivo, no auditório da empresa, comigo no papel de mediador e entrevistador. E a conversa com o professor emérito de Oxford, olha só, não durou uma hora e meia não. Foram quase três horas, em que Dawkins detona Jesus, provoca psicanalistas, esculacha as cotas raciais, dá dicas de ficção científica e reflete que, poxa, já está na hora de ele experimentar LSD de uma vez.

Primeiro, eu gostaria de agradecer a Deus pela oportunidade de falar com o senhor.

(risos) Ei, eu tenho senso de humor! Posso te contar uma história? Uns anos atrás, o jornal britânico The Guardian pediu para fazer uma entrevista conjunta, comigo e o [biólogo] David Attenborough. Nós rimos o tempo todo. O fotógrafo do jornal deve ter tirado umas 200 fotos, e 99% delas só podiam ser da gente ali, tranquilos, dando risada. Mas a que eles imprimiram mostrava nós dois agressivos, encarando um ao outro, como se estivéssemos a ponto de brigar feio! O que é que tem de errado com vocês, jornalistas?

Isso não é exatamente o que vamos fazer agora, hehe. Mas então: vários cientistas ateus não têm problema nenhum com religião. Dizem coisas do tipo: “Se existe um Deus, ok. fico feliz por estar aqui, ajudando a descobrir as leis que ele criou”. O que você acha desse ponto de vista?

Acho que é covardia intelectual. Porque a ciência toda – em particular a biologia evolutiva – explica como você pode chegar a coisas complexas se começar com algo simples. A vida começou com pura simplicidade. O Universo, mais ainda. A ciência moderna detalhou como você consegue escalar pequenos degraus, começando com o que há de mais simples, até chegar ao nível de complexidade de um cérebro humano.

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Engenheiros humanos podem criar coisas complexas: foguetes, aviões, computadores. Mas os engenheiros humanos não surgiram do nada. Eles aparecem como o produto final de um processo longo, lento e gradual de mudanças: uma seleção natural cumulativa. Ter descoberto isso é um triunfo da ciência. Então, se o seu cientista hipotético diz “Ah, quando eu trabalho com ciência, estou entendendo como Deus fez tudo”, isso não passa de uma desculpa. É uma covardia intelectual, uma traição a todo o espírito da ciência.

Falando na complexidade da vida, você acha que ela é um fenômeno distribuído amplamente pelo Universo? Ou seria algo tão complexo que só deve ter acontecido em um ou outro planeta?

Acho as duas possibilidades excitantes, mas acredito que a vida começou muitas vezes pelo Universo. Talvez em um bilhão de planetas. Mesmo assim, trata-se de um número pequeno. Estimam que exista pelo menos 1022 planetas no Cosmos [100 bilhões de trilhões – o número 1 seguido de 22 zeros]. Um bilhão é 109, um número pequeno, se comparado com 1022. Tão ínfimo que a chance de os habitantes de um planeta com vida encontrarem os de outro praticamente não existiria. É difícil de entender isso porque os nossos cérebros não estão acostumados a lidar com números na casa dos bilhões e bilhões.

Muita gente interpreta os conceitos de Sigmund Freud e Carl Jung como ciência pura, como coisas tão incontestáveis quanto o heliocentrismo. Isso não seria tão “perigoso” quanto uma religião, pela sua filosofia?

Tem uma história adorável que o Peter Medawar, grande biólogo, contou. Um psicanalista freudiano dizia que Charles Darwin odiava tanto o próprio pai que desejava destruir seu “pai divino” [Deus]. Medawar, então, comentou, com ironia: “Todo esse ódio dele pelo pai, o Dr. Robert Darwin, fica evidenciado pelo fato de que Charles o chamara de ‘o homem mais gentil e mais sábio que conhecia’.

Pronto. Estava aí a prova do quão profundamente esse ódio estava reprimido”. Esse é um resumo satirizado da visão freudiana de mundo. De acordo com ela, tudo pode ser explicado, mas, quando as evidências apontam para o oposto da sua explicação, basta dizer que algo foi “reprimido”. O perigo aí está no fato de que temos algo que aparenta ser uma ciência, mas não é. É um sistema fechado, que não admite qualquer tipo de refutação.

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Você é contra cotas para negros em universidades, e outras formas de ação afirmativa. Qual seria, então, uma forma melhor de combater o racismo?

É difícil ser contra ações afirmativas, né? Elas apelam para o nosso senso de justiça… A lógica é: os negros do passado foram escravizados, então os negros de hoje devem dar o troco, via ações afirmativas, às custas dos brancos de hoje.

Mas isso é um tanto injusto, porque os brancos do século 21 não foram os responsáveis pela escravidão. Não somos responsáveis pelo que os nossos ancestrais, de qualquer cor ou sexo, fizeram. O que precisamos é acabar com todo tipo de discriminação.

Gosto da história de Georg Solti, que foi um grande maestro da Filarmônica de Chicago. Quando alguém ia fazer um teste para tentar uma vaga na orquestra, ele exigia que o candidato tocasse atrás de uma cortina, para não discriminar ninguém pela cor ou pelo sexo. Os candidatos tinham que entrar descalços, para que ele não pudesse identificar se a pessoa estivesse usando saltos ou não. Admiro isso.

Como criador do termo “meme”, o que você acha dos memes de internet? Ele são um bom modo de entender o conceito?

A internet é um ecossistema de primeira linha para os memes. Quando escrevi O Gene Egoísta, há quase 40 anos, queria terminar o livro dissipando a visão de que só o DNA, só os genes, obedeciam às regras da seleção natural. Eu poderia ter usado vírus de computador como exemplo, mas eles ainda não tinham sido inventados.

Então usei as heranças culturais: sotaques, roupas, moda, músicas. Todas essas coisas espalham-se à medida que as pessoas vão imitando umas às outras. Ao longo da minha vida, vi uma epidemia mundial de bonés de beisebol. Depois, uma epidemia mundial de bonés de beisebol virados para trás. Acontece em animais não-humanos também.

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Na Inglaterra dos anos 1950, quando colocavam garrafas de leite na porta da sua casa, passarinhos da espécie chapim aprenderam a abrir as garrafas para beber o leite. Essa habilidade se espalhou como uma epidemia por toda a Grã-Bretanha, conforme os pássaros foram imitando uns aos outros. A internet, enfim, é um ótimo lugar para os memes se espalharem. Só não gosto da visão restritiva que o termo “meme de internet” ganhou, a de que um meme seria uma imagem com alguma coisa escrita em cima – e é isso que muitos jovens pensam!

O instinto que leva humanos a acreditar em deuses é tão universal quanto o instinto de fazer sexo. O sexo tem uma vantagem evolutiva óbvia, já que transar produz bebês. Mas e a religião? Se o impulso religioso existe é porque alguma vantagem evolutiva ele traz, não?

Sim, o comportamento sexual produz bebês. Mas hoje é usual que sexo não produza bebês. Usamos pílulas, camisinhas… Só que ainda amamos sexo. E existe uma lição nisso: a seleção natural não favoreceu um desejo louco por bebês, mas por sexo – bebês eram só uma consequência automática. Hoje bebês não são uma consequência automática, mas ainda gostamos de sexo. No caso da religião, é parecido. Existe uma predisposição psicológica nas pessoas a obedecer autoridades.

As crianças nascem vulneráveis. Dependem de conselhos dos pais, avós e anciões tribais para sobreviver. As crianças, então, nasceriam com uma predisposição psicológica, uma regra de ouro mental, que diz: “Acredite em tudo o que os mais velhos te falam”, do mesmo jeito que existe uma regra de ouro dizendo: “Goste de sexo”. Esse “acredite nos mais velhos” foi uma boa regra de ouro porque, em média, eles dão bons conselhos mesmo.

Mas é claro que há conselhos ruins. E o cérebro de uma criança não tem como discernir o joio do trigo aí. Se ela escuta o pai ou um sacerdote falarem “Você deveria sacrificar uma cabra na lua cheia para ter uma boa colheita”, ela não tem como saber que esse é um conselho estúpido. Do ponto de vista da criança, essa dica soa tão bem quanto “Não coloque a mão em cobras”. E pior: uma vez que a criança tenha acreditado no conselho estúpido, ela vai passar a mesma orientação para os filhos quando crescer.

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O processo é análogo à ação de um vírus de computador. Os computadores são máquinas construídas e projetadas para obedecer qualquer coisa que o programador mandar. Eles não têm absolutamente nenhum jeito de saber quais programas são bons, como uma planilha de Excel, e quais são ruins, como um vírus. Então os conselhos ruins que vêm dos anciões são como vírus de computador. E as religiões, estou sugerindo, são vírus da mente.

Na ficção científica, qual é a sua representação favorita de vida em outros planetas?*

É a do Black Cloud, um livro de Fred Hoyle [que, além de escritor, era astrônomo, e que cunhou o termo “Big Bang”, em 1949]. Hoyle abandonou o clichê de representar aliens como lagostas com olho de inseto. O ET dele é a “nuvem negra” do título: um corpo gasoso, com cérebro feito não de nervos, mas de ondas eletromagnéticas. Numa cena memorável, a nuvem pergunta para os humanos, via ondas de rádio, o que significa o termo “música”.

Eles pegam e transmitem para ela uma sonata de Beethoven. A nuvem pede para tocarem dez vezes mais rápido, e fica acachapada pela beleza da sonata. Os personagens, então, se perguntam: “Como é que essa coisa pode gostar de Beethoven, ainda mais tocado dez vezes mais rápido, se nem tem ouvidos?”. E o cientista da turma responde que isso não tem a menor importância, porque a música pode ser tratada como pura informação matemática.

Realmente, não existe razão para que a música esteja ligada a um fenômeno acústico. Quando nós ouvimos Beethoven, a informação entra pelos nossos ouvidos na forma de som, mas o cérebro lida exclusivamente com os impulsos elétricos que a música estimula nos nervos – os mesmos impulsos que são engatilhados quando vemos alguma coisa ou sentimos uma emoção. É por isso que acho Black Cloud uma ótima obra de ficção: ela expande a mente, e ensina você a pensar de forma científica – coisa que fantasias sobrenaturais, como contos de fada, não fazem.

Algumas religiões pregam o altruísmo como princípio central. Você não acha que ensinamentos assim proporcionam alguma vantagem evolutiva?*

O altruísmo já é programado pelos genes. Genes egoístas criam seres vivos altruístas, que ajudam outros indivíduos para obter vantagens depois. Isso explica o altruísmo na natureza. Mas entre humanos é diferente. Damos dinheiro para a caridade, doamos sangue, queremos ajudar quando vemos alguém sofrendo – tudo sem esperar nada em troca.

Acho que isso acontece porque os nossos antepassados viviam em bandos pequenos. Se você fizesse um favor para alguém, certamente cruzaria com o mesmo indivíduo depois, e isso permitiria a retribuição do favor.

A regra de ouro inscrita nos nossos genes, então, seria análoga àquela do “goste de sexo”, que nos deixa malucos para transar [algo que não tem função evolutiva alguma], e não para produzir bebês [a maior das funções evolutivas]. Essa regra inscrita no DNA seria: “Tenha prazer quando for gentil, sinta-se bem ao cooperar, regozije-se ao ser generoso, fique satisfeito só de fazer algo de bom para outra pessoa”.

Você acha que, algum dia, vamos ser capazes de entender como o processo evolutivo deu à luz o fenômeno da consciência?*

Fico desconcertado pela ideia de “consciência”. Reconheço que eu tenho uma, e presumo que você tenha também, já que não sou um solipsista. Um solipsista é alguém que acredita ser a única entidade consciente do Universo, que acha que as outras pessoas são parte de um sonho ou alguma coisa assim.

Tem uma história ótima, aliás, com Bertrand Russell, o filósofo. Uma vez ele recebeu uma carta de uma senhora dizendo: “Caro Dr. Russell, fico muito contente de saber que o senhor é um solipsista. Existem tão poucos de nós por aí hoje em dia!”.

Enfim, essa questão é profundamente filosófica. Nem temos como saber se aquilo que eu chamo de “vermelho” é a mesma cor que você enxerga como “vermelho”. Mesmo assim, imagino que um dia o fenômeno da consciência terá uma explicação científica, ainda que eu não faça a mínima ideia de qual ela seria.

A Bíblia e outros livros sagrados são recheados de cenas surreais. O que você acha que pode ter servido como inspiração para os autores?*

Bom, a fome tem o mesmo efeito psicogênico de algumas drogas. Não deve ser por acidente que várias religiões impõem períodos de jejum, inclusive. E tem os sonhos também. Várias revelações religiosas da tradição judaico-cristã surgiram em sonhos. Temos o sonho de Jacó [em que ele vê uma escada para o céu, cheia de anjos], os sonhos dos profetas… Nunca tive uma viagem de LSD – talvez eu deva algum dia desses –, mas imagino que as experiências surreais que temos nos sonhos todas as noites sejam um tanto parecidas.

Também acho notavelmente maluco que, embora os meus sonhos sejam totalmente surreais, nonsense absoluto, eu nunca perceba que estou sonhando. É algo estranho de imaginar quando você está acordado.

Se você pudesse ressuscitar alguém e levar para jantar, quem seria?*

Jesus seria um bom candidato. Eu adoraria dar uma cópia em aramaico de Deus, um Delírio para Cristo, e aí ter uma conversa com ele.

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*Perguntas feitas pelo público presente no auditório da Abril – em sua maioria, jornalistas de outras publicações da editora.

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