Estupro
Uma em cada cinco mulheres será violentadasexualmente durante a vida. Será que a cência podeexplicar a mais repulsiva das agressões?
Giovana Girardi
Cena 1 – (Paris, França):
Após brigar com o namorado, Alex decide voltar sozinha para casa no meio da madrugada. Diante de uma avenida de alta velocidade, ela resolve usar uma passagem subterrânea para pegar um táxi. No túnel escuro, ela caminha até ser surpreendida por um homem espancando um travesti. Alex fica paralisada, não sabe se tenta terminar a travessia ou volta por onde entrou. Os segundos de incerteza são cruciais e o homem a vê. E se interessa. Ela ainda tenta fugir. Mas é agredida, humilhada, estuprada e espancada quase até a morte.
Cena 2 – (São Paulo, Brasil):
Joana conhece Cristiano em uma festa. Eles dançam, trocam beijos e telefones. Alguns dias depois ela resolve passar na casa dele. Mas, em vez de curtir a garota, Cristiano, embalado por dois amigos, topa dividi-la em um “ménage à quatre”. O plano parece simples. No meio da transa, os dois amigos sairiam nus de dentro do armário, tentariam participar da brincadeira e, quem sabe, convencê-la a transar com eles também. Mas Joana não gosta da idéia, resiste às investidas dos dois intrusos, tenta se desvencilhar, grita, apanha, mas não consegue evitar – é estuprada pelos três ao mesmo tempo.
Cena 3 – (Freetown, Serra Leoa):
Forças rebeldes invadem a cidade. A apenas 40 quilômetros dali, a pequena vila de Mamamah é alvo fácil dos revolucionários, que executam a maioria dos moradores e raptam as adolescentes. Mariatu, de apenas 16 anos, é pega após seus pais serem mortos. É estuprada repetidas vezes por todos os homens do grupo. Dezenas de garotas da tribo têm o mesmo destino. Quando tenta resistir, Mariatu é punida com jejum e espancamento. É forçada a acompanhar as forças rebeldes e eventualmente vira “esposa” de algum deles. Quando engravida, é abandonada.
Os exemplos que você acabou de ler foram retirados, respectivamente, dos filmes Irreversível e Cama de Gato e do site da Anistia Internacional. Seja no cinema ou nos apelos das organizações humanitárias, o relato é da mesma situação cruel, fria e revoltante que atinge milhões de mulheres – segundo a Organização Mundial da Saúde, uma em cada cinco mulheres foi ou será estuprada. São agressões cometidas por maridos, namorados, amigos. Por estranhos que não fazem distinção entre mulher bonita ou feia. Por soldados e rebeldes em situações de guerra. Mas por quê? Como a ciência explica esse comportamento que existe desde os primórdios da humanidade e nos deixa em condições tão próximas da de animais? Selecionamos alguns dos principais tópicos dessa discussão.
Por que alguns homens buscam sexo forçado?
Duas correntes distintas buscam respostas para essa pergunta. De um lado estão os que afirmam que estuprar é uma conseqüência da sexualidade masculina. Do outro, defensores da teoria de que ao violentar uma mulher os homens estão impondo seu poder sobre o universo feminino.
Em 1975, a feminista americana Susan Browmiller lançou o livro Against our Will (“Contra nossa Vontade”, sem tradução em português). A obra se tornou um marco na defesa dos direitos femininos. Até então, quando eram estupradas, as mulheres tinham de provar que haviam tentado resistir. Caso contrário, elas poderiam ser acusadas de consentir com o ato. Além disso, a forma como a vítima estava vestida e sua vida sexual pregressa eram consideradas atenuantes para o agressor, como se o fato de ter vários parceiros significasse que ela toparia qualquer um.
Susan propôs uma explicação controversa das motivações de estupro. Para ela, a agressão nada tinha a ver com desejo sexual, mas sim com violência, poder e opressão masculina sobre as mulheres. “O estupro não é nada mais que um processo consciente de intimidação pelo qual todos os homens mantêm todas as mulheres em estado de medo”, escreveu.
A tese de Susan fez muito sucesso entre as feministas, mas não convenceu a todos os pesquisadores. Para muitos, Susan é extremista ao imaginar uma conspiração masculina contra as mulheres. O round mais recente dessa batalha foi protagonizado pelo biólogo Randy Thornhill e pelo antropólogo Craig Palmer, ambos americanos. A dupla lançou, em 2000, o livro A Natural History of Rape (“Uma História Natural do Estupro”, sem tradução em português), que defende a existência de uma ligação direta entre estupro e sexo. Em outras palavras, que o estupro é natural.
Thornhill e Palmer deixam claro aceitar que estupradores podem ser motivados pelo desejo de vingança, de humilhação ou de infligir dor a uma mulher. Mas afirmam que as feministas deixam de lado um componente fundamental para entender o estupro: a excitação sexual do agressor.
Ao classificarem o estupro como natural, os pesquisadores não estão dizendo que ele é bom. Não faltam exemplos de comportamentos humanos considerados naturais e que não são exemplo de nobreza – a violência é um deles. A partir dessa premissa, o estupro poderia ser considerado uma espécie de desdobramento da sexualidade masculina, o que pediria atenção diferente das mulheres. Thornhill e Palmer sugerem, por exemplo, que elas sejam advertidas de que se vestir de modo mais atraente pode, sim, aumentar o risco de agressão.
A visão dos pesquisadores tira do sério boa parte das mulheres. Na prática, faltam pesquisas que meçam se o comportamento masculino muda em relação à vestimenta da mulher. Sabe-se que muitas são violentadas quando não estão vestindo qualquer atrativo especial. Um levantamento do Hospital Pérola Byington, que atende quase todas as vítimas que prestaram queixa de agressão sexual na Grande São Paulo, mostra que a maioria dos ataques ocorre no começo da manhã ou no fim do dia, quando as mulheres estão indo ou voltando do trabalho ou da escola. Ou seja, vestidas com roupas comuns.
Para os estudiosos contrários à tese feminista, o grande problema da “guerra dos sexos” é que, com o discurso de poder, muitas mulheres podem ter ficado ainda mais sujeitas à violência sexual. O alerta saiu exatamente da boca de uma feminista, Camille Paglia. “As feministas têm treinado suas discípulas para dizer: o estupro é um crime de violência, mas não de sexo. Essa bobagem açucarada tem exposto mocinhas ao desastre, já que não esperam estupro de garotos bacanas de boas famílias, que se sentam ao lado delas nas salas de aula.” A fala de Camille alerta para a realidade: estupros acontecem igualmente entre pessoas que se conhecem e pessoas que não se conhecem. E agressores podem ser bêbados mal vestidos com barba por fazer ou rapazes com roupa da moda e fala educada.
Estuprar é da natureza humana?
Essa é a mais controversa discussão entre os estudiosos de estupro. Quando Thornhill e Palmer lançaram seu livro, receberam críticas de todos os lados por defender que o estupro pode ser considerado intrínseco ao comportamento humano. Não que isso seja algo aceitável ou que atenue o comportamento, ressaltam. Os autores se defenderam dizendo que partiram de uma premissa básica: o estupro pode resultar em gravidez. Sendo assim, nas origens da humanidade a agressão pode ter servido como estratégia masculina para a reprodução. Homens incapazes de conseguir consentimento feminino para o sexo e livres de punição pelos seus atos podem ter recorrido ao estupro. E os filhos que nasceram desses relacionamentos teriam propagado genes ligados ao estupro.
Para a dupla, existem duas possíveis explicações para enquadrar o estupro dentro da teoria da evolução humana de Darwin. A primeira é uma adaptação favorecida pela seleção natural, uma vez que o estupro aumentaria as chances de sucesso reprodutivo com o aumento do número de acasalamentos. Esse comportamento é observado em algumas espécies de animais, como a mosca-escorpião. Quando não são escolhidos pelas fêmeas, os machos utilizam um tipo de pinça para imobilizá-las e copular à força (veja quadro sobre estupro no mundo animal na página XX). A segunda hipótese é que se trate de um subproduto de outras características da sexualidade masculina: o desejo por sexo e por múltiplas parceiras e a capacidade de usar a violência para atingir um objetivo.
“O que é crucial é que nenhuma das hipóteses implica que o estupro promove o êxito reprodutivo hoje, apenas que o fez para nossos ancestrais”, explica Thornhill.
Os pesquisadores basearam a abordagem evolutiva numa série de evidências. Uma delas é a faixa etária das vítimas – a maioria se encontra em idade reprodutiva, entre 13 e 35 anos. Os casos de violência contra mulheres mais velhas ou crianças são tratados pela dupla como más adaptações.
Outro fator apontado: estupradores, em geral, não usam mais violência do que a necessária para coagir a mulher. Tampouco provocam ferimentos que possam colocar em risco uma futura gravidez. Thornhill e Palmer também defendem que, de acordo com pesquisas, o sofrimento das vítimas quando há risco de gravidez é maior do que o das mulheres que não têm esse risco por usarem contraceptivo ou estarem fora do período ou idade fértil – para os pesquisadores o sofrimento infligido pelo estupro ocorre porque ele subverte a natureza feminina de poder escolher o pai dos seus filhos.
Esse último item é um dos mais combatidos pelas feministas e grupos que trabalham com vítimas. Para eles, o sofrimento é igual em qualquer circunstância. “Toda penetração não desejada é traumática. Não importa quem agrediu a mulher ou como, ela ficará seriamente machucada”, escreveu Mary Koss, da Universidade do Arizona, no livro Evolution, Gender and Rape (“Evolução, Gênero e Estupro”, sem tradução em português). Mary é considerada pelas feministas uma das maiores autoridades no tema.
O que um estuprador tem de diferente?
A teoria evolucionária de Thornhill e Palmer propõe uma explicação genérica sobre os primórdios do comportamento, por que ele surgiu e por que existe até hoje. Mas não explica, por exemplo, por que não são todos os homens que recorrem ao estupro.
Motivados pela busca de explicações para essas diferenças, um grupo de cientistas canadenses se reuniu para fazer uma revisão de toda a literatura existente sobre o tema. O resultado é o livro The Causes of Rape: Understanding Individual Differences in Male Propensity for Sexual Agression (“As Causas do Estupro: Entendendo Diferenças Individuais e a Propensão Masculina para a Agressão Sexual”, sem tradução para o português), com lançamento previsto para janeiro de 2005. A Super teve acesso com exclusividade ao trabalho canadense.
De acordo com o grupo, liderado pelo psicólogo Martin Lalumière, da Universidade de Lethbridge, estupro e coerção sexual aparecem em homens com conduta anti-social. Eles são indiferentes aos interesses de outras pessoas, tendem a desvalorizar as mulheres e não raramente estão envolvidos em outros tipos de crimes e agressões.
Uma conclusão surpreendente do grupo é que, ao contrário do que muitos estudiosos acreditam, esses homens não têm dificuldade para conquistar mulheres. Muito pelo contrário, apresentam forte tendência ao que se define como “esforço reprodutivo” – ter o maior número de parceiras sexuais possível com relações curtas e rápidas.
Os pesquisadores apontam três tipos de homem que se encaixam nesse perfil: rapazes no fim da adolescência e começo da vida adulta que contam não só com uma impulsividade sexual natural, mas também com uma noção de risco relaxada, agressores que persistem com esse comportamento a vida inteira e os psicopatas. O problema é que esses mesmos traços costumam ser característicos de outros criminosos. O que gera a pergunta: por que nem todos estupram?
A equipe de Lalumière encontrou o caminho para a resposta em testes de laboratório que checam o grau de ereção dos homens diante de relatos de sexo. No estudo, estupradores, criminosos e pessoas comuns ouviram histórias de sexo consensual e forçado. Nos relatos de estupro, o sofrimento da vítima era enfatizado.
Em todos os testes, os estupradores ficaram igualmente ou mais excitados com o sexo forçado que com o consensual. Na comparação com outros homens, o grau de excitação diante dos relatos de violência sexual foi maior. Essa diferença ficava mais marcante quando o estupro envolvia brutalidade extrema.
Diante desses resultados os pesquisadores questionaram se o estupro poderia ser um tipo de desordem psiquiátrica sexual como o sadismo, por exemplo. Mas não parece ser o caso, uma vez que boa parte das relações sádicas é consensual. O mais provável, defende o grupo canadense, é que essa excitação seja mais um reflexo do comportamento anti-social. Em suma, estupradores não são necessariamente atraídos pela violência, mas incapazes de serem inibidos por ela. Afinal, eles não se importam com o sofrimento da vítima.
Todos os tipos de estupro são iguais?
Para o grupo canadense que analisou as características dos agressores sexuais, a soma dos fatores citados pode explicar quase todos os tipos de estupro. “Engajados no esforço reprodutivo, indiferentes às práticas sociais e excitados pelo sexo violento, homens casados, comprometidos ou em uma situação de encontro não vão se importar quando ouvirem um não”, comenta Lalumière. Se esses homens encontram mulheres vulneráveis (desacompanhadas, em locais ermos), estão alcoolizados ou drogados (o que diminui suas condições de avaliar os riscos) e ainda acreditam que não serão denunciados, a chance de estupro aumenta.
No caso de casais, há um agravante: o estupro serviria como estratégia de combate à traição. A idéia pode parecer estapafúrdia, mas pesquisadores evolucionistas como Thornhill e Palmer defendem que, inconscientemente, o marido pode entrar numa “competição de esperma”. Se a parceira tiver feito sexo com outro homem e rejeitar o marido, estuprá-la seria uma forma de se manter na luta pela paternidade.
Em guerra, outras circunstâncias colocam as mulheres em perigo. Elas são vistas como inimigas, os soldados contam com o apoio do grupo e o sexo forçado pode ser encarado com fins reprodutivos. Nesse caso, em sua pior faceta: a limpeza étnica.
Apesar de tudo que já foi descoberto, falta muito a investigar. Cientistas ainda não sabem por que a atração pelo sexo forçado aparece em alguns homens. As discussões sobre formas de tratamento e punição a infratores ainda estão engatinhando – eles quase sempre acabam condenados ao linchamento dentro dos presídios. A ciência tenta, mas falta um bocado para explicar um comportamento que muitos prefeririam esquecer que existe. O assunto é doloroso de abordar. Mas fugir não vai torná-lo menos terrível.
Violência sexual (e selvagem)
Os casos de estupro no reino animal
É comum ouvir que estupro é um comportamento exclusivamente de machos humanos e dominadores. No entanto, dezenas de relatos de biólogos e etólogos (que estudam o comportamento dos animais) mostram que a natureza não é tão bonita como se imagina. Algumas circunstâncias que cercam o sexo forçado entre animais são muito parecidas com o estupro humano – e fazem os animais se aproximarem bastante das teorias de Palmer e Thornhill. São machos que cortejam fêmeas de modo tradicional, mas apelam para a força quando elas resistem; machos que já têm parceiras, mas violentam outras para aumentar seu repertório; estupro da parceira quando há suspeita de infidelidade e machos desprezados ou em desvantagem competitiva com outros. Registros de machos forçando a cópula são registrados em elefantes-marinhos, patos, peixes e até mesmo insetos.
Entre os patos da espécie Anas platyrhynchos o ato é tão agressivo que as fêmeas quase se afogam. Bandos de machos tendem a atacá-las fora do período fértil. Quando estão por perto, parceiros tentam defender suas companheiras. Se não conseguem, estupram-nas também quando os outros vão embora para se manterem na competição.
Observadores de orangotangos nas florestas africanas registram que a prática é extremamente comum e normalmente protagonizada por adultos que não cresceram o suficiente e ficaram com aspecto de adolescentes. Como são preteridos pelas fêmeas, recorrem ao estupro. As cenas são bastante agressivas. As fêmeas demonstram medo, gritam, tentam fugir, mordem, golpeiam e puxam os pêlos dos machos, mas quase nunca conseguem se livrar do ataque.
Para saber mais
Na livraria:
Evolution, Gender and Rape – Cheryl Brown Travis, MIT Press, EUA, 2003
A Natural History of Rape – Randy Thornhill e Craig Palmer, MIT Press, EUA, 2000
Tábula Rasa – Steven Pinker, Companhia das Letras, EUA, 2004