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LHC, depois da festa vem o quê?

Dois anos atrás, o laboratório mais fenomenal da história esteve em festa. Afinal, encontrou a partícula de Deus. De lá para cá, o LHC esteve fechado, curtindo a ressaca. Este mês, ele reabre com um desafio bem maior: encontrar o Diabo.

Por Luiz Romero
Atualizado em 31 out 2016, 19h05 - Publicado em 6 dez 2015, 13h00

Olhe para a janela agora. Tudo o que existe lá fora é feito de quatro coisas. Só quatro: quarks, léptons, partículas de energia pura e bósons de Higgs. Acabou. Você, o ar, as ondas que transportam mensagens de WhatsApp, a luz do sol, os seus pensamentos. Tudo. Não sobra nada no mundo palpável que não seja quark, lépton, partícula de energia ou bóson de Higgs – bóson este que ascendeu à fama da noite para o dia em 2012, quando teve sua existência comprovada pelos cientistas que operam o LHC, sigla em inglês para ”Grande Colisor de Hádrons”.

A festa pela descoberta foi tão grande que recentemente, quando a SUPER esteve no LHC, que estava fechado para reparos havia dois anos, ainda existiam garrafas de champanhe pegando poeira em alguns cantos. Não faltava mesmo motivo para estourar espumante. A comprovação do Higgs fechava uma busca que começou há 2.500 anos, quando um filósofo grego, Demócrito, propôs o seguinte: se você cortasse alguma coisa em pedaços cada vez menores, com uma lâmina infinitamente afiada, uma hora iria chegar numa partícula tão minúscula que não tem mais como ser dividida: o ”átomo” (”indivisível”, em grego). Era a primeira vez que alguém teorizava a ideia de uma partícula fundamental, uma coisa pequena que servia de tijolo para todas as coisas grandes, como se o mundo fosse um Lego. E é mesmo, descobriu-se bem depois. A diferença é que não existe só uma partícula fundamental, mas várias. Mesmo a coisa que a gente conhece como ”átomo”, batizada assim em homenagem a Demócrito, é feita de peças bem menores, estas sim indivisíveis, como havia proposto o pré-socrático.

Até o fim do século 20, a ciência tinha encontrado 16 delas. Começa pelas partículas com massa. São seis tipos de lépton (”leve” em grego). Nesse grupo entram as partículas com pouca massa, como o nome indica. O lépido elétron, por exemplo, é um lépton, e seus cinco primos menos célebres (múon, tau e três tipos de neutrino) completam a lista dos pesos-leves. Depois vêm os pesos-pesados: seis tipos de quark (que não quer dizer nada em grego: é o som do canto da gaivota). Quarks se combinam para formar os hádrons (”robustos”, em grego). Alguns desses hádrons você deve conhecer: o próton e seu marido, o nêutron. Esse casal gay (duas entidades com nome masculino que moram juntas) compõe o núcleo de todos os átomos, menos o de hidrogênio, que é feito de um próton solteiro, sem nêutron – não nos pergunte por quê, é da natureza dele.

Mas não estamos aqui para fazer fofoca subatômica. Voltando: os seis léptons e seis quarks formam as 12 partículas fundamentais com massa. Mas muito mais ”massa”, no sentido de ”legal”, são as partículas de energia. Porque elas não têm massa, mas, mesmo assim, são duras de roer. Quando você dá um soco na mesa, por exemplo, a força que faz sua mão doer não veio dos prótons e nêutrons dos átomos de carbono que formam a madeira. Veio dos fótons, as partículas de energia pura que preenchem as órbitas dos átomos. Os fó- tons têm a propriedade de criar campos de força, no caso, campos eletromagnéticos, que mantêm os ímãs firmes na geladeira e as nossas bússolas apontando para o Norte. É fácil ver um fóton: é ele que ilumina a sala quando você acende a luz. Junte o fóton com mais três de seus primos (glúon e dois tipos de bóson, W e Z), responsáveis por campos de força que só agem no mundo subatômico, e temos as quatro partículas de energia pura que compõem a família dos 16 tijolinhos fundamentais.

Enquanto essas peças da natureza eram descobertas nos laboratórios, ao longo do século 20, os físicos foram montando uma grande teoria para explicar como uma interage com a outra, formando tudo o que a gente conhece. O nome dessa teoria é ”Modelo Padrão”. Só que o tal modelo só faria sentido se houvesse um 17O jogador em campo: o bóson de Higgs, previsto no papel em 1964 pelo inglês Peter Higgs. Como um fóton, o Higgs criaria um campo de força. Um campo enorme, preenchendo todo o espaço à nossa volta. Esse campo teria um poder: conferir massa a certas partículas de energia pura, transformando-as em quarks e léptons. O bóson de Higgs, reza a teoria, teria surgido logo no início do Universo, e foi ele que supriu de massa toda a matéria que existe. Não fosse ele, você seria um raio de luz, veja só que bonito. Graças a essa propriedade um tanto divina, o apelido ”partícula de Deus” colou. Mas o Deus aí só existia no papel. Faltava alguém achá-Lo.

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E o LHC encontrou, em 2013. Vale explicar de que jeito, para ficar claro como um acelerador de partículas funciona. E para ficar mais nítido ainda como o LHC vai funcionar melhor quando reabrir, este mês, depois de anos de reparos, para um desafio bem maior, que você já viu no subtítulo desta reportagem: encontrar a ”partícula do Diabo”.

PANCADARIA

Quando um carro bate em outro de frente a 120 km/h, não sobra muita lataria para contar a história. Se a batida for entre duas motos à mesma velocidade, pior ainda: a energia tem menos ferro para onde se dissipar, e portanto o estrago é maior. Agora imagine uma batida entre coisas muito menores, e muito mais rápidas que motos. É isso que o LHC faz.

Ele lança um pelotão de prótons num circuito oval (circular, na verdade) com 27 km de circunferência. A curvatura é tão sutil que a coisa funciona como uma reta infinita, onde os cientistas do Cern (Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear, na sigla em francês) conseguem acelerar prótons a quase 1 bilhão de km/h, quase a velocidade da luz, a maior possível no Universo, de 1,08 bilhão de km/h.

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Quando você bate uma coisa tão pequena a uma velocidade tão absurda o resultado é a aniquilação total. Os prótons deixam de existir: transformam-se em energia pura. E é tanta energia, tão concentrada, que transforma a região do mundo microscópico onde aconteceu a pancada numa sopa de energia, queimando a uma temperatura na casa dos bilhões de graus, ainda que só por uma fração de segundo. A coisa dura pouco, mas é fenomenal, porque recria à imagem e semelhança a época imediatamente após o Big Bang, quando a sopa de energia começou a condensar-se nas partículas que conhecemos hoje.

Como aconteceu no Big Bang, a energia das pancadas dentro do acelerador condensa na forma de partículas. Às vezes ela dá à luz um elétron, às vezes um quark… Em 2012, quem surgiu no parto foi um bóson de Higgs, que saía do papel para entrar na história. Em 2013, os cientistas confirmaram a descoberta. Pronto. Era a prova final de que o Modelo Padrão estava certo mesmo. Agora toda a natureza estava dominada pela ciência.

Toda? Não. E os cientistas sabiam desde muito tempo. Comprovar que são mesmo 17 as partículas que formam tudo o que a gente vê era só o começo, porque elas só explicam 18% das partículas que formam o Universo. Os outros 82% estão na forma de ”matéria escura”, algo que existe, mas ninguém sabe do que é feito – se a coisa for mesmo composta de partículas, certamente não são as 17 que a gente conhece, como resume o físico português João Varella, do Cern: ”A matéria escura é diferente daquela que compõe estrelas e planetas; diferente da dos átomos que formam o nosso corpo”.

E agora? ”Agora a grande missão da física de partículas é entender a matéria escura”, completa uma colega italiana de João no Cern, a física Gaia Lanfranchi, para em seguida revelar sua frustração: ”Nós temos uma teoria que foi testada e comprovada. Mas ela não explica a matéria que forma a maior parte do Universo”. Tanto trabalho para tão pouco.

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Os físicos sabem que a matéria escura existe porque desde os anos 70 eles aprenderam a ler as pistas que ela deixa pelo cosmos. O giro das galáxias é uma delas. A velocidade com que elas giram é tão grande que deveria, a princípio, ejetar boa parte das suas estrelas e planetas para o vazio do espaço intergaláctico. É óbvio que isso não acontece – nosso Sistema Solar, por exemplo, continua firme. E se não acontece é porque existe mais massa entre o céu e a Terra do que sonha a nossa vã filosofia. Sim, porque massa é o que produz atração gravitacional. E o único jeito de explicar como as galáxias não se rompem é imaginando que existe uma atração gravitacional extra, bem maior que a gerada pelos corpos celestes que aparecem nos nossos telescópios. Quem ofereceria essa massa extra? A tal matéria escura.

Os cientistas imaginam que a matéria escura é ”escura” por ter uma propriedade fantasmagórica: não interagir com luz. Um Sol feito de matéria escura seria invisível, só que a Terra continuaria girando em torno dele, já que ela exerce gravidade normalmente. Observações confirmaram que a imagem de certas galáxias distantes chega distorcida para nós. É que a gravidade de algum corpo feito de matéria escura atrai a luz dessas outras galáxias, criando o efeito, como se fosse uma lente – os astrônomos chamam isso de ”lente gravitacional”. Nos últimos anos, detectou-se tanta lente gravitacional no céu que a conclusão não tem como ser outra: existe muito mais matéria escura do que matéria normal. Quatro vezes mais. Tudo feito de alguma coisa que ninguém faz ideia do que seja.

GÊMEAS INVISÍVEIS

Se a resposta surgir, provavelmente virá do próprio LHC. Por dois motivos. Primeiro porque, entre os cerca de 10 mil cientistas que passam pelo laboratório anualmente, vindos de mais de cem países, estão as mentes mais geniais da física. Segundo porque a máquina enterrada cem metros abaixo do chão é a única no planeta capaz de chegar perto de alguma pista. E agora, em março de 2015, ela passa a operar com quase o dobro da potência original, que foi usada para descobrir o Higgs. Mais potência significa colisões mais violentas. E pancadas maiores significam uma sopa de energia mais densa, ainda mais semelhante ao inigualável Big Bang original. A esperança é que boiem nessa sopa as partículas invisíveis que constituiriam a matéria escura.

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A responsabilidade de resolver esse problema está dividida entre esses dois personagens: os físicos geniais e a máquina potente. Porque os primeiros são capazes de calcular um jeito de resolver o dilema, enquanto cabe à máquina provar que as contas estão certas. ”Teorias não passam de uma série de ideias sobre a natureza descritas de forma matemática”, explica o fí- sico croata Daniel Denegri. ”Mas é preciso provar quais delas estão corretas por meio de experimentos. Eles funcionam como um tipo de julgamento.”.

A teoria preferida dos cientistas para explicar o que é a matéria escura propõe que as partículas do Modelo Padrão teriam irmãs gêmeas invisíveis. No jargão científico, elas seriam as ”partículas supersimétricas” – que, no papel, fazem basicamente tudo o que as partículas conhecidas fazem, menos interagir com campos eletromagnéticos (como a luz). Ou seja, para cada um dos 17 tijolos claros corresponderia um equivalente escuro. Bela ideia, falta só encontrar as supersimétricas, como encontramos o bóson de Higgs. A partir deste mês, começa a torcida. A começar pela dos físicos, como a italiana Gaia. ”Se vamos encontrar algo, é uma questão de fé. Precisamos crer.” Claro que nem toda a fé do mundo resolverá o problema se o LHC não der à luz nem uma mísera partícula escura.

O irônico é que, mesmo se tudo der certo, e acharem as partículas supersimétricas, o trabalho de entender o Universo ainda vai estar no começo. A matéria escura e a matéria normal não respondem por tudo o que existe do lado de fora (e do de dentro) da sua janela. As duas juntas equivalem a só 30% de tudo o que existe de verdade no Universo. Os outros 70% (68,3%, para sermos mais precisos) são feitos de outra coisa: a ”energia escura”, uma força antigravitacional que sabemos que existe, pois empurra as galáxias umas para longe das outras. É tanta força que, se energia escura fosse convertida em matéria, como aconteceu com quarks e léptons depois de eles conhecerem o Higgs, ela teria mais que o dobro do peso da matéria normal e da escura juntas. E, se a matéria escura já é inescrutável o bastante, o segredo da energia escura está ainda mais longe de ser desvendado, e fora dos horizontes do LHC, já que precisaríamos de praticamente outro Big Bang para chegar tão fundo na natureza do cosmos. Ainda bem: não fossem esses mistérios, o Universo não teria a graça que tem.

Leia mais:
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