Mosquitos , perigo no ar
Eles medem poucos milímetros, são feios de doer e implacáveis na busca por sangue humano. Para esses predadores, somos seis bilhões de presas.
Rafael Kenski e Adriano Sambugaro
Uma lenda diz que, certa vez, na Índia, Buda resolveu meditar em um lugar infestado de mosquitos. Em meio ao zumbido infernal e às picadas, nem os seus discípulos acreditaram que ele seria capaz de manter a serenidade e o respeito que tinha por todos os seres vivos. Dessa vez, pensaram eles, até o iluminado perderia a paciência e acabaria matando ao menos um desses insetos. Para espanto de todos, Buda resistiu. Meditou e saiu de lá impávido, sem dar um peteleco sequer em mosquito algum. Em compensação, ele nunca mais voltou àquele lugar.
Não é à-toa que nem o paradigma da paciência oriental tenha sido capaz de suportar os mosquitos. Desde que os primeiros humanos caminharam sobre a Terra, os homens travam uma batalha de vida ou morte contra esses pequenos insetos, que tornaram regiões inabitáveis, exterminaram povos e chegaram a mudar o rumo de guerras. Os casos recentes de dengue no Rio de Janeiro lembraram aos cariocas o que já era óbvio para os parentes de um milhão de pessoas que morrem de malária todos os anos: com sua sede de sangue e com os parasitas que carregam, os mosquitos são os mais antigos e poderosos inimigos da espécie humana. Qualquer descuido no controle desses insetos – também conhecidos como pernilongos ou muriçocas – é punido com mortes e doenças.
“O mosquito serve apenas a si próprio. Ele não ajuda a aerar o solo como as formigas, não ajuda a polinizar as plantas como as abelhas, nem serve de alimento essencial para outros animais”, diz Andrew Spielman, imunologista da Universidade de Harvard, Estados Unidos, e um dos maiores especialistas em doenças tropicais do mundo. Spielman é um dos autores do livro Mosquito: A Natural History of Our Most Persistent And Deadly Foe (“Mosquito: uma história natural do nosso inimigo mais mortal e persistente”), em que descreve a história da nossa luta contra esses insetos além de revelar as estratégias que eles usaram para sobreviver à custa do nosso sangue. “Eles não têm nenhum outro propósito além de perpetuar a própria espécie”, diz Spielman.
Vale tudo na luta dos mosquitos para se reproduzir. Na espécie neozelandesa Opifex fuscus, por exemplo, o macho estupra as fêmeas assim que elas nascem. Ele sobrevoa águas paradas em busca de pupas – uma espécie de casulo onde eles ficam antes de se tornarem adultos – e as ataca, provocando o nascimento do inseto. Se o recém-nascido for fêmea, ele força a cópula enquanto ela, com as pernas ainda presas na pupa, não tem como se defender.
No Culex pipiens, a mais abundante das 2 400 espécies do inseto, a reprodução é mais pacífica. (Você provavelmente já esmagou muitos Culex contra a parede – eles são os famosos “mosquitos caseiros” que costumam zumbir no seu ouvido durante as noites de verão.) Para achar uma parceira, os machos dessa espécie formam nuvens próximo de um ponto de referência, como uma antena, uma chaminé ou mesmo na sua cabeça. A fêmea é atraída para o centro da nuvem e vários machos voam até ela, mas apenas um a agarra com firmeza suficiente para levá-la até o chão e copular. Uma vez que isso acontece, ela consegue guardar esperma suficiente no corpo para pôr ovos durante toda a sua vida. Falta apenas conseguir o alimento necessário para produzir os ovos. Enquanto algumas espécies se alimentam de frutas ou do néctar de flores, a maioria sai à caça de uma refeição especial: o sangue de animais como você e eu. A reprodução é o único motivo pelo qual os mosquitos picam e, portanto, apenas as fêmeas procuram o sangue humano.
As da espécie Culex, por exemplo, atacam durante a noite e, muito provavelmente, são elas que fazem aquele zumbido agudo que perturba o seu sono. O barulho vem das asas batendo entre 250 a 500 vezes por segundo. Você agita os braços para se livrar do predador. Em vão. O esforço só ajuda o mosquito a localizar melhor seu alvo. Ainda que os cientistas não tenham descoberto todas as substâncias químicas que eles utilizam para seguir o rastro da presa, sabe-se que o gás carbônico, produzido por nossa respiração, e o ácido láctico, que liberamos em grande quantidade ao nos exercitar, estão entre elas. Eles também descobriram que esses insetos são fascinados por pés humanos com cheiro de queijo. Ou seja: se você não tinha motivo melhor para manter os pés limpos, que a ameaça dos mosquitos sirva de estímulo para você evitar a todo custo o chulé.
Ao se estapear, seus braços em movimento estimulam a visão do inseto. Os olhos dos mosquitos são compostos de centenas de lentes que não conseguem focar uma imagem. Tudo o que o animal faz é fixá-las em um ponto de luz e usá-lo como referência. Por esse motivo, pessoas com pele clara – que refletem mais luz – são mais atacadas. Eles também fogem de sombras ou objetos escuros, como a do chinelo que você pegou e com o qual tenta pateticamente acertá-lo. O mosquito chega próximo o suficiente da pessoa para sentir o calor do seu corpo e atacar a região mais quente: onde há pele descoberta. “Ele reage automaticamente a estímulos como calor, cheiro e pressão do ar”, diz Spielman. “É como se o mosquito pensasse com a pele.”
O ataque é cirúrgico. Com duas lâminas, ele corta a pele da vítima e espalha uma saliva com substâncias que inibem a reação do seu corpo para estancar o sangramento. Em menos de 90 segundos, um mosquito consegue absorver entre duas a três vezes o próprio peso em sangue. Logo em seguida, arrasta-se até um lugar seguro. Lá, realiza um dos maiores feitos de digestão do mundo animal: durante 45 minutos, elimina os líquidos do sangue sob forma de urina – é verdade: mosquito faz xixi – e, depois disso, acumula energia suficiente para pôr cerca de 240 ovos em águas paradas e sujas. As larvas do Culex têm estratégias para escapar de predadores como besouros e mariposas. Elas conseguem perceber a sombra desses animais e afundar, camuflando-se no fundo da água. O mesmo não acontece com outros mosquitos, como o Aedes aegypti, transmissor da dengue, que precisa de lugares protegidos como buracos de árvore, pneus velhos ou garrafas cheias de água.
Durante a refeição, o mosquito absorve não só o sangue, mas também qualquer parasita que esteja nele, que pode se desenvolver dentro do corpo do inseto. Ao picar uma pessoa com filariose, por exemplo, também conhecida como elefantíase, ele absorve vermes ainda em seus primeiros estágios. No estômago dele, os microorganismos abrem caminho até os músculos das asas, onde começam a crescer. Dirigem-se então para a cabeça, se instalam nas lâminas que furam a pele da vítima e pronto: o verme se projeta na ferida e vai para os vasos linfáticos da presa, onde pode crescer até ficar do tamanho do braço de um homem adulto. Como em algumas pessoas o sistema imunológico reage acumulando líquidos, braços, pernas e genitais incham até tomar proporções gigantescas.
Apesar de causar tanta destruição em animais grandes como nós, os mosquitos, com seu tamanho insignificante, permanecem incólumes às doenças que transmitem. Eles continuam picando outras pessoas, espalhando a doença e até adquirindo novos parasitas, o que facilita ainda mais a dispersão de epidemias. “Não há nada pior que um mosquito velho”, diz Andrew Spielman.
Há 20 000 ou 30 000 anos, quando as sociedades humanas não passavam de pequenas tribos isoladas, as epidemias tinham um impacto localizado: ou dizimavam a população inteira ou davam imunidade (ao menos parcial) aos que sobreviviam. Quando o homem começou a comerciar e a guerrear em lugares distantes, viajantes que não tinham imunidade logo descobriram a dureza que era sobreviver em terras estrangeiras. Durante o Império Romano, por exemplo, qualquer estrangeiro que passasse o verão na Itália corria o risco de ser contaminado pela malária. Os exércitos que tentavam cercar Roma perdiam facilmente metade de seus homens para as doenças. As enfermidades também podiam ser transportadas para lugares distantes. Os mesmos navios que trouxeram os escravos da África para a América levaram os mosquitos que transmitem a febre amarela, a malária e a dengue .
Até o final do século XIX, ninguém acreditava que seres tão insignificantes pudessem causar tanto estrago. Alguns exploradores associaram doenças como a malária a lugares com água suja e parada. “Acreditava-se, na época, que esses males eram provocados por ‘miasmas’, emanações ‘insalobras’ do solo e do ar”, afirma o epidemiologista Arary da Cruz Tiriba, da Universidade Federal de São Paulo. A palavra malária, por exemplo, vem da expressão italiana para “mau ar”. Sem a menor idéia de como essas doenças poderiam ser controladas, os europeus do século XIX não conseguiam dominar completamente o interior de suas colônias africanas. Já os negros, que nasceram ali e desenvolveram imunidade ao menos parcial, transitavam por lá sem nenhum problema. Ao tentar achar um motivo para essas diferenças, os britânicos lançaram a hipótese de que os cérebros europeus eram “mais delicados” e, por isso, sofriam com o sol dos trópicos. Por esse motivo, começaram a utilizar os chapéus típicos de exploradores britânicos.
Alguns suspeitavam que o contato com os negros poderia ter alguma influência e construíram casas separadas, aumentando a segregação racial que dura até hoje em várias ex-colônias.
Foi o médico cubano Carlos Finlay, em 1880, quem descobriu que os mosquitos podiam transmitir doenças. Poucas pessoas levaram a hipótese a sério até 1900, quando tropas americanas em Cuba sofreram diversas baixas devido à febre amarela. Uma equipe chefiada pelo médico Walter Reed analisou os casos da doença e conseguiu provas de que a teoria de Finlay estava correta. A partir daí, os esforços se voltaram para combater os mosquitos, o que não só eliminou a febre amarela da capital de Cuba como permitiu que os americanos terminassem o Canal do Panamá, em 1914. A gigantesca obra de engenharia que ligaria o Oceano Atlântico e o Pacífico havia sido iniciada pelos franceses em 1881. Mas a malária e a febre amarela infectaram 30% da mão-de-obra tornando o projeto praticamente inviável. Os americanos retomaram o trabalho e, com a ajuda de membros da equipe de Reed, conseguiram reduzir esse número para 2%.
Apesar desse sucesso, muitas pessoas ainda acreditavam nos miasmas e ridicularizavam os esforços públicos para combater os pequenos insetos voadores. As primeiras evidências de que o combate ao mosquito era realmente eficaz para eliminar doenças em um vasto território veio do Brasil. O médico Oswaldo Cruz formou brigadas para combater os insetos e, mesmo sob protestos da população, conseguiu erradicar, em 1907, a febre amarela do Rio de Janeiro. Em 1940, o médico americano Fred Soper destruiu criadouros e espalhou larvicidas e inseticidas para eliminar do Brasil o Anopheles gambiae, o maior transmissor de malária do mundo. Logo em seguida, Soper foi mandado para combater as doenças nos acampamentos da Segunda Guerra Mundial, onde tornou-se o primeiro a verificar a eficácia de uma nova arma no combate aos insetos, o dicloro-difenil-tricloroetano, mais conhecido como DDT. Esse inseticida mostrou ser tão eficaz no combate aos insetos que logo passou a ser amplamente utilizado em todo o mundo.
No entanto, descobriu-se depois que a substância também afetava peixes, aves e outros animais além dos insetos. Para piorar, os mosquitos tornavam-se resistentes à substância em poucos anos. Por esses motivos, o DDT foi banido em quase todos os continentes.
Nenhum cientista de bom senso acredita que um dia chegaremos a eliminar em definitivo os mosquitos. Eles são tantos e tão variados que é praticamente impossível exterminá-los. Algumas espécies são capazes de voar a milhares de metros de altura; outras são tão resistentes que chegam a sobreviver em locais de temperaturas tão gélidas e secas quanto o ártico ou tão úmidas e quentes quanto uma floresta tropical. Além disso, os cientistas ainda têm muitas questões sem resposta em relação aos mosquitos. Não se sabe, por exemplo, como eles distinguem o ser humano de outros animais, nem por que as espécies transmitem determinadas doenças e são imunes a outras.
Há quem pensa alterar os mosquitos geneticamente para impedir que transmitam doenças. Diversas equipes ao redor do mundo estão tentando modificar a sua programação genética para criar variações que não possam carregar parasitas. Se um grande número desses mosquitos modificados for lançado no ambiente, é possível que os genes se espalhem por toda a população desses animais e eles se tornem incapazes de fazer com que novas epidemias se alastrem.
Por enquanto, as medidas de maior sucesso ainda são alguns inseticidas e a destruição dos lugares em que eles se reproduzem. Até que uma solução definitiva apareça, qualquer descuido pode ser fatal. Que o digam as mais de 120 000 vítimas de dengue registradas no Estado do Rio de Janeiro até o fechamento dessa edição.
Para saber mais
Na livraria
Mosquito – A Natural History of Our Most Persistent And Deadly Foe, Andrew Spielman e Michael D’Antonio, Hyperion, 2001
Na internet
https://www.who.int/health-topics/idindex.htm
https://www.cdc.gov/ncidod/diseases/index.htm
Loucos por sangue
Conheça as principais espécies de mosquitos e as doenças que eles transmitem
DOENÇA – Malária
PRINCIPAL TRANSMISR – Anopheles Tem o corpo amarronzado e três longos aparelhos bucais na cabeça. Pousa com o corpo inclinado
SINTOMAS – Dores musculares e de cabeça, febre, calafrios, náusea, suor excessivo e, nos casos mais graves, deterioração dos rins e convulsões
CAS NO MUNDO – 300 a 500 milhões por ano*
DOENÇA – Febre amarela
PRINCIPAL TRANSMISR – Aedes aegypti Também é chamado de pernilongo-rajado, por ter o corpo todo preto com linhas e articulações brancas. Tem asas claras e translúcidas
SINTOMAS – Febre, dores musculares e de cabeça, tremores, náusea. Em 15% dos casos, pele amarelada, sangramento na boca, nariz, olhos e deterioração dos rins
CAS DO MUNDO – 200 mil por ano*
DOENÇA – Dengue
PRINCIPAL TRANSMISR – Aedes aegypti Também é chamado de pernilongo-rajado, por ter o corpo todo preto com linhas e articulações brancas. Tem asas claras e translúcidas
SINTOMAS – Febre, dor de cabeça, muscular e abdominal, fadiga e sangramento nas gengivas
CAS DO MUNDO – 50 milhões por ano*
DOENÇA – Filariose (elefantíase)
PRINCIPAL TRANSMISR – Culex pipiens Conhecido como mosquito doméstico tropical, alimenta-se durante a noite
SINTOMAS – Larvas no sistema linfático e, em alguns casos, elefantíase nos braços, pernas, seios ou genitais
CAS NO MUNDO – 120 milhões de pessoas infectadas**
DOENÇA – Leishmaniose
PRINCIPAL TRANSMISR – Flebótomos Também chamado de mosquito-palha, tem asas grandes e pernas compridas
SINTOMAS – Há quatro tipos, cada uma com sintomas diferentes, que vão de úlceras na pele a destruição de membranas, mucosas, febres e anemia
CAS NO MUNDO – 12 milhões por ano*
DOENÇA – Oncocercose (Cegueira dos rios)
PRINCIPAL TRANSMISR – Simuliídeos Chamados de borrachudos, têm até 6 milímetros de comprimento e costumam picar durante o dia
SINTOMAS – Lesões oculares, cegueira, vertigem, tosse, elefantíase nos genitais, coceiras e despigmentação da pele
CAS NO MUNDO – 180 milhões de pessoas infectadas**