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Como transformar um artrópode em ator de cinema

O biólogo Steven Kutcher tem uma profissão única: doma baratas, borboletas e aranhas – que são aracnídeos, e não insetos – para estúdios de Hollywood.

Por Felipe Germano
Atualizado em 4 set 2020, 12h14 - Publicado em 4 jan 2019, 15h42

A jovem Becky abre a torneira do chuveiro. Ela coloca as mãos na água, para medir a temperatura. E, ao entrar no banho, é interrompida por batidas na porta.

– Há outras pessoas nesta casa, mocinha – diz um homem, impaciente, também querendo usar o banheiro.

– Pai, vai embora!

Enquanto ele resmunga descendo as escadas, a mocinha joga seu roupão no chão e vai para debaixo do chuveiro. Eis que uma gigantesca sombra aparece no box de plástico. Não se trata de Norman Bates, de Psicose, mas de algo quase tão mortal quanto: uma carnuda e peluda aranha. Surge uma  música de tensão – e ela vai crescendo conforme o artrópode caminha em direção a Becky.

Ela pega o xampu. A câmera mostra as oito patas se aproximando. Cai sabão nos olhos dela. O animal acelera o ritmo. Ela levanta o rosto para que a água tire a espuma. O animal para. A música diminui. Becky se enxágua sorrindo, ainda sem perceber sua companhia. Dura pouco. A música estoura novamente. A aranha pula. Diretamente em seu rosto.

A cena acima aparece em Aracnofobia, um filme de 1990 que entrega logo no título sua proposta: causar terror com aranhas inteligentes e humanos desprevenidos. Até por isso dá para dizer que a estrela da passagem acima não é Cori Wellins, que interpreta Becky – mas o anônimo animal que contracena com ela.

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A cena de quase 30 anos atrás não usa robôs ou computação gráfica, quem está no set é um animal de verdade. O segredo de sua competência como ator estava atrás das câmeras. Era Steven Kutcher, o mestre dos insetos de Hollywood.

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“É um emprego que ninguém imagina que existe, mas percebe que é necessário depois de horas tentando fazer uma barata atravessar uma sala”

Steven Kutcher, 76, treinador de insetos

Anônimo

“O Brasil deve ser incrível” diz Steven, um simpático senhor de 76 anos. “Às vezes me pego pensando na diversidade da Amazônia. É inacreditável.” Ele reclina na cadeira de seu escritório, em Los Angeles, e quase esbarra em uma das dezenas de caixas organizadas na parede do recinto. Olha para uma, puxa para si, e diz sorrindo: “Estou fascinado por essa aqui”. Dentro do recipiente há uma gigantesca tarântula. “É a Rosie, um animal maravilhoso”, diz, fazendo carinho no artrópode.

Steven Kutcher ganha a vida com esses animais que habitam não só seu escritório, mas também o restante da casa (algumas espécies de formiga ficam, por exemplo, na geladeira – para hibernar no calor californiano). Seu trabalho é garantir que insetos façam exatamente o que o diretor quer, depois do “Ação!”. “É um emprego que ninguém imagina que existe, mas percebe que é necessário depois de horas tentando fazer uma barata atravessar uma sala”, conta.

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A necessidade e a peculiaridade do trabalho fizeram dele um dos anônimos mais requisitados de Hollywood. Onde há câmeras e insetos, há Steven. E a infestação Kutcher é simplesmente inevitável. Você mesmo provavelmente foi pego por ela. Nos últimos 40 anos ele trabalhou nas mais diversas produções: de cults como De Volta Para o Futuro 2 a trashs como Loucademia de Polícia 6. Sabe o mosquitinho que dá origem a toda história de Jurassic Park? Pois então, obra do Steven (não só do Spielberg). A vespa que voa em câmera lenta enquanto Michael Jackson canta Stranger in Moscow é trabalho dele também. Kutcher fez até uma cena em Goonies, envolvendo sanguessugas, mas que acabou sendo cortada do filme.“Trabalhei com David Lynch, MC Hammer, Tim Burton, Alice Cooper… Quando aparecia alguém tóxico, eu podia simplesmente negar o convite e ir embora. Isso não tem preço.”

A vida de inseto de Steven, no entanto, começou bem antes de qualquer filme. “Infelizmente, quando eu era criança, minha relação com meu pai não era muito boa. Depois a gente fez as pazes, mas, durante a minha infância, o momento que eu me libertava era quando eu estava no mato”, conta. “Comecei a entender como os animais agiam, e brincava de encontrá-los. Eu lembro que enchia jarros com vagalumes, e os via brilhar durante a noite.” A teia de acontecimentos seguiu sem muitos imprevistos. Mais tarde, virou biólogo pela Universidade da Califórnia e especializou-se em entomologia (o estudo de insetos). Provavelmente seguiria uma vida acadêmica comum, não fosse um bico universitário.

“Um dos meus professores me perguntou se eu estava a fim de ganhar algum dinheiro: um estúdio precisava de alguém que entendesse de  insetos para um filme.” Por que não?

O longa em questão era O Exorcista 2, uma continuação nada consagrada do clássico do terror. “As pessoas realmente detestam esse filme… Mas eu acho divertido”, ri. Pior que o filme só a tarefa, um pesadelo para quem não gosta de insetos: ele teria que cuidar de 3 mil gafanhotos e fazê-los avançar sobre uma pobre vítima do demônio. Steven sabia que o animal não atacaria humanos, mas, sobretudo, sabia que gafanhotos adoram luz. Colocou uma série de  refletores atrás do ator, e na hora do “ação” clicou no interruptor. Tiro e queda, os insetos voaram com tudo para cima dele – e ninguém nem suspeita da iluminação.

Não foram só os gafanhotos que  gostaram dos holofotes. Steven apaixonou-se pelo set de filmagem. Era um caminho sem volta. De lá para cá foram 92 filmes – mais 136 comerciais, 59 séries de TV e 27 clipes. 

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Os truques

A história dos gafanhotos é o exemplo perfeito de como o trabalho de Steven funciona. “A verdade é que dá para treinar um inseto – mas isso leva um tempão. Não é prático”, afirma. “O segredo é entender como eles agem, e usar isso ao seu favor.” Quando Steven quer, por exemplo, que um inseto saia de determinado local, ele aumenta a temperatura do lugar onde o animal está – e o bicho sai correndo. Correntes de ar também ajudam a fazer que com os insetos se movam.

Também há técnicas mais sofisticadas, claro, que Steven foi desenvolvendo ao longo dos anos. Em Homem-Aranha (2002), a gambiarra foi a seguinte. Ele sabia que aracnídeos sempre sobem ao ponto mais alto antes de tecer sua teia. Colocou, então, uma aranha em um pincel. O animal subiu até a parte mais alta das cerdas e começou a descer por um fio que tecia. Steven, então, posicionou o pincel sobre o ator Tobey Maguire. É assim que a aranha desce diretamente na mão de Peter Parker, numa das cenas mais importantes do filme. Grandes poderes, grandes responsabilidades.

76 produções usaram borboletas comandadas por Steven. É o animal mais requisitado para comerciais, mas que aparece em poucos filmes. Hollywood prefere aranhas e baratas mesmo.

Quando só os comportamentos animais não bastam, no entanto, Steven apela para a tecnologia. Ele criou um equipamento que lhe permite determinar exatamente qual o trajeto que o bicho vai seguir. “A gente resolve problemas mudando a pergunta. A questão não é: como vou fazer esse inseto correr esse percurso? A pergunta certa é: como posso criar uma cerca invisível?”. A resposta: Steve amarra um fio de náilon (fino o bastante para não ser captado pelas câmeras) em um pequeno motor que faz a linha vibrar. O rápido e constante movimento de ondas serve como uma barreira para os insetos. Na prática, uma parede invisível. “Essa é uma das minhas invenções favoritas.  Pensei em como os insetos enxergam: pelas vibrações das antenas ou dos pelos.”

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E é assim que ele consegue fazer uma barata atravessar uma sala. Se o diretor do filme quiser que o bicho faça zigue-zagues ou percorra uma pista de autorama, sem problema – é só Steven moldar a cerca invisível de náilon no formato certo que a barata “obedece”.

Mas ei, Steven, desse jeito você não acaba entregando o ouro para a concorrência? 

“As pessoas vivem dizendo para eu não entregar meus segredos.  Mas a verdade é: quem vai se propor a copiar?”. A pergunta faz mais sentido do que parece. Por um motivo simples: a profissão de Steve está em vias de extinção.

Efeito borboleta

Com o desenvolvimento das ferramentas digitais, os estúdios estão preferindo criar suas aranhas e baratas no computador mesmo. Os números deixam isso claro. Na década de 1980, Steven foi contratado para trabalhar em cerca de 50 produções.  Na de 1990 o montante quase triplicou: mais de 140 trabalhos. Mas daí em diante o cenário mudou. Nos anos 2000 as produções caíram pela metade: cerca de 70. E de 2010 até agora foram só 25 trabalhos.

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Isso não significa que Steven vá ficar completamente sem trabalho. Primeiro, porque sempre haverá diretores mais perfeccionistas, aqueles que, nas palavras do pessoal do Choque de Cultura, quando precisa filmar um macaco, usa macaco fantasiado de macaco. Talvez esse seja o caso de Tom Ford, que chamou Steven para controlar moscas em seu premiado Animais Noturnos (2016). Outro nicho de mercado para o nosso entomólogo é o de consultor de comportamento de insetos, para ajudar o pessoal dos efeitos especiais a fazer artrópodes falsos mais realistas. Steven fez esse serviço em filmes como Homem-Formiga. Como era de se esperar, tentou convencer os produtores a usar bichos de verdade, mas não rolou. E, pelo jeito, ficou uma mágoa. “Isso traz uma  sensação… falsa.”

À primeira vista, o uso de animais digitais pode tranquilizar quem teme pelo bem-estar dos bichinhos. “Cheguei uma vez a receber uma carta da Peta [sigla em  inglês da ONG Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais]. E eles me disseram: ‘Sabemos que você não machuca os insetos, mas temos preocupações de se eles se sentem confortáveis com isso’”, diz.

“Isso é uma estupidez. Todos sabem o quão bem eu cuido dos insetos. É o tipo de coisa que eles fazem para ganhar publicidade. Caramba, vamos usar essa energia para proteger os habitats desses animais.”   

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