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O feto aprende

Não é só o corpo que se forma durante a gravidez. A personalidade, a inteligência e os traumas também estão em gestação.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h52 - Publicado em 30 jun 1998, 22h00

Denis Russo Burgierman

Imagine como seria passar nove meses trancado em uma sala escura e morna, dormindo 16 horas por dia. O lugar, apertadinho, sem ser desconfortável, é envolvido por uma marcação de tambor constante, que não pára nem durante a noite, e por um barulho esquisito de líquidos borbulhando. Você ouve, sem poder entender, conversas abafadas do lado de fora, nas quais predomina sempre uma voz feminina clara, que parece vir de todos os lados ao mesmo tempo. Não há muito o que fazer lá dentro além de brincar com o saco transparente que te embrulha e beber o líquido quase sempre doce à sua volta.

Você já passou por isso, é óbvio – durante a sua gestação. E hoje se sabe que esse período marcou você para sempre, moldando o seu jeito de ser, os seus medos e o seu humor. A velocidade daquela batida de tambor, o carinho ou o desprezo expressos nas vozes difusas, o gosto do líquido e outros estímulos mais sutis são tudo o que um feto conhece até o parto. Se essa experiência for agradável, tudo vai evoluir para uma criança tranqüila e sensível. Se não, a gravidez pode provocar distúrbios psicológicos graves, até mesmo esquizofrenia e autismo.

O filho entende a mãe

Desde o começo da gestação, os sentimentos e os humores maternos afetam o filho, que está exposto aos mesmos hormônios que ela. Fetos rejeitados são candidatos sérios a distúrbios de comportamento.

A sala escura onde você ficou trancado é o útero de sua mãe e a batida de tambor é o coração dela. Os borbulhos que você ouviu vêm do intestino materno. As vozes abafadas são as conversas lá fora, que chegaram até você a partir do quarto mês da gravidez, quando seus ouvidos começaram a funcionar. A voz que predomina é a da sua mãe, porque alcança seus ouvidos por dois caminhos diferentes: vinda de fora, propagada pelo ar, e transmitida pelo corpo, direto das cordas vocais dela até você.

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“Para a criança, essas coisas não são simples estímulos”, diz a psicóloga Vera Iaconeli, professora da Universidade Paulista (Unip) e especializada em psiquismo fetal. “Aquilo é a vida, é tudo.” Por isso, se a gestação for desagradável, a criança já vai sair do quarto escuro com uma impressão ruim da própria existência. Segundo estudos recentes, filhos indesejados pela mãe têm maior chance de nascer esquizofrênicos ou autistas. As duas doenças têm em comum o fato de se caracterizarem pela fuga do mundo real. São uma forma de se proteger da hostilidade dos outros.

Percepção sensorial

Mas como é que os filhotes percebem que são indesejados? Telepatia? Não. É que eles estão ligados à mãe pelo cordão umbilical. Se ela fica assustada, libera substâncias que também vão agir neles. Ansiedade, nervosismo e depressão também são transmitidos quimicamente por hormônios. “Toda situação de estresse atinge o feto”, resume a neuropsiquiatra infantil Theodolinda Mestriner Stocche, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto (SP).

Um experimento do obstetra austríaco Gerhardt Reinold na década de 80 comprova o efeito da química materna sobre o filho. Reinold pediu a mulheres grávidas que se deitassem, enquanto examinava o interior de seus úteros pelas imagens de ultra-som. Ele sabia que aquela posição acalmaria os fetos, mas não contou às mães. Daí fez a maldade de dizer a elas que seus filhos, segundo o ultra-som, tinham parado de se mexer. Elas ficavam apavoradas, achando que havia algo errado, e, quase imediatamente, os fetos também se inquietavam no útero, afetados pela adrenalina liberada pela mãe. É claro que nenhum deles saberia identificar o que sentiam como medo, mas não há dúvida de que eles passaram por um susto.

Emoções transmitidas

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Desconfortos passageiros, como o criado por Reinold, não provocam danos irremediáveis, é claro. Mas quando a gestante passa o tempo todo deprimida por não querer a criança, culpando-a pela guinada do destino que uma gravidez pode representar, aí o feto sentirá o golpe, como se soubesse de tudo. “Ele certamente vai perceber que algo não anda bem e sofrerá”, afirma a neurologista Maria Valeriana Moura Ribeiro, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no interior de São Paulo.

Até a década passada, achava-se que só depois dos seis meses de gestação os futuros rebentos seriam sensíveis a esse tipo de estímulo. Afinal, é só no término da gravidez que as áreas do cérebro responsáveis pela memória começam a funcionar. Mas, com a sofisticação da aparelhagem de ultra-som, ocorrida nos últimos cinco anos, foi possível observar com precisão as reações intra-uterinas. Hoje, o obstetra consegue enxergar, com cores e imagens tridimensionais, até o movimento ocular do futuro bebê. Com tantas informações novas, descobriu-se que ele reage aos estímulos hormonais a partir do segundo mês de gestação.

Há quem vá ainda mais longe. O médico Eliezer Berenstein, do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, acha que existe memória desde a concepção. “Mesmo antes que haja neurônios, as células devem ter alguma maneira de registrar quimicamente o que lhes aconteceu”, acredita ele. “Assim, ajudariam o embrião a não repetir experiências ruins.”

Ele está escutando tudo

Depois do quarto mês, o feto já reage a sons e ao toque e começa a criar o vínculo afetivo profundo com a mãe.

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Não são só químicos os estímulos intra-uterinos que podem influir na personalidade de quem vai nascer. A partir do quarto mês, já há vários sentidos desenvolvidos, inclusive a audição. No século passado, os médicos achavam que o útero era uma cápsula acusticamente isolada do mundo. A criança ficaria então protegida de qualquer barulho que prejudicasse o seu desenvolvimento.

Nos anos 70, obstetras colocaram microfones no interior do corpo de gestantes e concluíram que os sons chegavam, sim, até lá dentro, mas que os barulhos internos da mulher eram tão fortes que pareciam abafar qualquer ruído externo, a não ser que o volume fosse muito alto. Hoje se sabe que o inquilino do útero fica bem mais protegido dos ruídos internos do que se imaginava (na verdade, os resultados anteriores tinham sido obtidos com microfones de má qualidade) e se encontra mais exposto aos sons que vêm de fora.

Conversas de carinho

Nos últimos anos, surgiram experiências com hidrofones (microfones que funcionam em meios líquidos). A conclusão foi de que as conversas de fora podem, sim, ser ouvidas, mas atenuadas pela gordura e pelos tecidos da mãe – um grito lá fora soa como um lamento em voz baixa. Os resultados apontaram outra novidade: vozes graves, como a masculina, chegam mais fortes que sons agudos, como a voz feminina.

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“Quem sabe, não é um recurso da natureza para habituar a criança também à voz do pai?”, se pergunta Berenstein. “A maioria dos homens não sabe o que fazer durante a gravidez e, com medo de parecerem desajeitados ou ridículos, evitam conversar com o filho em gestação”, constata o obstetra. Ele costuma aconselhar seus pacientes a falar constantemente com o futuro filho, demonstrando carinho. É claro que ele não vai entender o sentido das palavras, mas, assim como um pequerrucho qualquer, percebe e se incomoda quando os pais estão bravos ou tristes e gosta de ser tratado com afeto.

A voz da mãe chega com relativa clareza até os ouvidos do filho. “Ele se habitua a ela”, diz a psicóloga Iaconeli. “Por isso, mesmo um recém-nascido reconhece a fala materna e se acalma com ela, o que prova que a relação foi construída durante a gestação.”

Massagem precoce

Outro sentido bem desenvolvido aos quatro meses é o tato.

“É importante massagear a barriga, tocá-la sempre, fazer o feto sentir que recebe atenção”, explica Berenstein. “Na década passada, achava-se que os bebês de proveta eram mais inteligentes”, conta. “Depois descobrimos o que causava essa impressão: como a gestação deles é assistida mais de perto por motivos médicos, recebem mais estímulos e se desenvolvem melhor.”

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O ideal é que toda gestação mereça o mesmo cuidado. O psicólogo francês Jean-Pierre Lecanuet, um dos maiores especialistas mundiais nos sentidos do feto, admitiu à SUPER que “muitas das coisas que estamos descobrindo agora são uma simples confirmação daquilo que alguns pais sempre souberam”. Ou seja, que seus filhos precisam de carinho antes mesmo de vir à luz.

Pré-escola dentro do útero

Nos últimos três meses de gravidez, o bebê já percebe muito do que acontece ao seu redor. Alguns pesquisadores acham que ele até começa a apreciar música e a se acostumar com a linguagem.

Quando o bebê chega aos seis meses de gestação, tem boa parte dos sentidos de um adulto. O sistema auditivo está completo, ele já percebe diferenças de claridade, tem tato no corpo inteiro, além de paladar e olfato. Por isso, alguns acontecimentos traumáticos nessa fase podem ficar em sua memória inconsciente. “No final da gestação, o feto é mais esperto do que o recém-nascido”, diz Vera Iaconeli.

É que, boiando no líquido amniótico, ele consegue se mover com mais facilidade do que depois de nascer, quando seus membros lhe parecem pesados demais.

Prazer e aversão

“Nessa fase, o bebê suga, chupa o dedo, mexe as pálpebras, soluça, brinca com o cordão umbilical”, enumera Maria Valeriana, da Unicamp. “Às vezes, ele também chora.” Os modernos aparelhos de ultra-som descobriram que, além de tudo isso, ele começa a sorrir quando algo o agrada e demonstra claramente quando sente aversão. Se a mãe come um quitute diferente, com um toque muito amargo, o líquido amniótico fica amargo também e a fisionomia do feto deixa claro que ele não gostou nada da receita exótica.

O ultra-som também revelou, pelo movimento ocular, que o feto sonha. “Ele passa 16 horas por dia dormindo e sonha durante 65% desse tempo”, diz o neurologista Rubens Reimão, especialista em distúrbios do sono. Não se sabe bem com o que ele sonha. Provavelmente, repassa o que passou durante as breves vigílias. “O final da gestação é a época em que se estabelece a maior quantidade de sinapses, as transmissões entre um neurônio e outro”, prossegue Reimão. “E, para que elas se formem, é preciso estímulo. O sonho é um momento de atividade intensa do cérebro, que favorece a criação das sinapses.” É uma etapa fundamental para a inteligência – quanto mais estímulos, melhor.

Ensino acelerado

Quer dizer então que o feto cursa uma espécie de pré-escola na barriga da mãe? Em termos, sim. “Já foi mostrado que o recém-nascido prefere e se acalma com músicas que ouviu durante a gestação”, diz Berenstein. “Acredito que a sensibilidade musical possa começar a se formar dentro do útero.”

Há histórias impressionantes, como a do maestro canadense Boris Brott, que, quando criança, estranhava a facilidade com que aprendia trechos de algumas obras. Comentou isso com a mãe, que era violoncelista, e ela lhe disse que esses trechos eram exatamente aqueles que ela tocava enquanto estava grávida e não voltou a executar depois. Também é possível que a habilidade lingüística comece a ser adquirida na fase final da gestação. As mães que conversam com o feto estariam habituando-o ao ritmo e à musicalidade da língua. “Há relatos de crianças que passaram a gravidez em um país estrangeiro, onde a mãe falava outro idioma, e depois tinham dificuldade em aprender a língua pátria”, conta Maria Valeriana.

Ainda não se sabe o quanto se pode aprender no útero. Mas não há dúvida de que, ao sair da sua salinha escura depois de nove meses, você já nasceu sabendo ser o que é. Ao menos um pouco.

Aos dois meses

O feto percebe o mundo fora do útero.

Os nervos começam a chegar aos pés, mãos e genitais. O bebê vai ter as primeiras sensações táteis e começa a sentir o contato com a mãe.

neurônios, mas muitos estão isolados uns dos outros. O bebê não ouve nem vê, mas já sofre com a ansiedade materna.

Aos quatro meses

O cérebro começa a decifrar os sentidos.

Boa parte das células nervosas já está formada e transmite impulsos nervosos, como os produzidos pelo tato e pela audição.

Já há nervos em quase toda a pele. O feto já sente prazer com a massagem de carinho que a mãe faz na própria barriga.

Aos seis meses

Quase todos os sentidos funcionam.

O bebê tem receptores táteis em toda a pele e em grande quantidade. Já chora e quase sorri.

O cérebro recebe impulsos nervosos vindos de todas as partes do corpo, transmitindo todos os tipos de sensações.

Os primeiros estímulos visuais permitem que o feto distinga claro e escuro.

O bebê já sente o gosto e o cheiro do líquido amniótico que o envolve.

A audição está totalmente pronta e as vozes lá fora vão habituá-lo à língua.

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