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O futuro do plástico

A humanidade já produziu 9 bilhões de toneladas dele. 80% vão parar em lixões e nos oceanos, onde levam séculos para se decompor e contaminam o planeta: cada pessoa ingere 20 g de microfragmentos de plástico, o equivalente a uma pecinha de Lego, por mês. Mas avanços científicos prometem mudar isso.

Por Bruno Garattoni e Tiago Cordeiro
Atualizado em 15 dez 2022, 15h18 - Publicado em 15 dez 2022, 15h17

Texto Bruno Garattoni e Tiago Cordeiro
Foto Studio Oz
Design Juliana Krauss

OO bebê consegue ouvir durante a gravidez, principalmente o som da circulação sanguínea da mãe. Também sente os toques na barriga dela, e o sabor dos alimentos que ela come. Mas, fora isso, é como se o feto estivesse em outro planeta.

Porque ele está separado do nosso mundo pela placenta: órgão que se forma a partir da quarta semana de gravidez e funciona como um filtro poderosíssimo, controlando o fluxo de nutrientes e impedindo que vírus e bactérias entrem. Mesmo estando dentro do corpo da mãe, onde há dezenas de trilhões de micróbios, o bebê se desenvolve num ambiente 100% estéril. Exceto por uma coisa ainda mais onipresente: plástico.

Em setembro, um estudo publicado por cientistas chineses detectou, pela primeira vez, a presença de microplásticos (partículas com menos de 5 milímetros) na placenta humana (1). Eles analisaram as placentas de 17 gestantes, e todas continham quantidades “muito abundantes” de microplásticos. Eram onze tipos, em especial o PVC, que é usado em canos (e estava presente em 43% das amostras), e o polipropileno, dos canudinhos e potes de margarina (14,5%).

Foto de uma pessoa se servindo em uma mesa onde os alimentos e bebidas são pedaços de lego.
(Studio Oz/Superinteressante)

Eles interferem com a placenta, e podem afetar o bebê. Em março, pesquisadores da Universidade de Manchester demonstraram como o Bisphenol A (BPA), ingrediente presente em vários tipos de plástico, faz isso (2). O BPA está em garrafas plásticas, potes para guardar comida e até nas latas (elas são forradas com plástico por dentro).

Quando a gestante ingere fragmentos dessa substância, ela se espalha pelo corpo e chega à placenta – onde inibe um gene chamado ESRRG, que controla o crescimento do feto. Com isso, o bebê pode nascer menor – e sob maior risco de desenvolver pressão alta, diabetes e doenças da tireoide ao longo da vida.

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Estamos expostos ao plástico antes mesmo de nascer. E, ao chegar a este mundo, somos bombardeados por ele. Literalmente. Em 2020, cientistas da Universidade Cornell, nos EUA, coletaram amostras de ar em 11 pontos do país – e descobriram que, nelas, “chovem” mais de 1.000 toneladas de microplásticos por ano, o equivalente a 120 milhões de garrafas PET (3).

E o estudo foi feito em reservas ambientais isoladas. Nas grandes cidades, o teor de plástico provavelmente é bem maior. Ele está em todos os lugares – até na neve dos Alpes e do Ártico (4).

Mas suas principais fontes são a água e a comida. Um estudo da Universidade de Newcastle (5) analisou a quantidade presente em alguns alimentos, como peixes, mariscos, sal, cerveja, água, mel e açúcar – e concluiu que cada adulto ingere em média 20 gramas de microplásticos, o equivalente a uma pecinha de Lego, por mês.

E o cálculo não considera outros alimentos ou fontes, como os microplásticos presentes em cremes dentais ou liberados por panelas com o revestimento antiaderente danificado – que podem soltar mais de 9.000 pedacinhos a cada uso (6). Ou seja: não estamos apenas sendo soterrados pelo plástico. Ele já está dentro de nós.

Em dois estudos, publicados este ano por cientistas italianos e holandeses, 75% das amostras de leite materno analisadas continham microplásticos – e o sangue de 77% dos voluntários também (7). As consequências disso para a saúde ainda não estão claras. Estudos em animais sugerem que a ingestão de microplásticos pode provocar disfunções metabólicas e reprodutivas – e, em testes de laboratório, os fragmentos causaram danos a células humanas (8).

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Foto de objetos de plástico boiando na água.
Clique aqui para abrir o infográfico. (Studio Oz/Superinteressante)

É nesse cenário que, em março, a ONU assinou o primeiro acordo internacional de combate aos resíduos plásticos (9). Ele inclui mais de 70 países e é o maior pacto ambiental desde o Tratado de Paris, criado em 2015 para tentar frear as emissões globais de CO2. Mas, por enquanto, nada concreto ficou definido.

Os países signatários têm até 2024 para, aí sim, definir um cronograma de metas e obrigações. No fim de novembro, a União Europeia propôs uma série de novas leis, que tornam obrigatória a reciclagem de garrafas e limitam o uso de plástico em embalagens (os minifrascos de xampu em hotéis, por exemplo, ficariam proibidos).

Com essas medidas, dizem as autoridades, seria possível reduzir em 15% o uso de plástico até 2040. A nova legislação ainda terá de ser votada e regulamentada em cada país do continente.

Enquanto isso, o plástico segue emporcalhando o planeta. A cada ano, a humanidade fabrica 400 milhões de toneladas dele, que se somam aos 9,2 bilhões já produzidos. Segundo dados da ONU, apenas 10% do plástico é reciclado (outros 14% são incinerados para gerar energia, liberando CO2 e substâncias químicas). Todo o resto vai parar em lixões e nos oceanos, onde leva centenas de anos para se decompor.

A solução é óbvia: deveríamos reciclar muito mais. Só que isso não é apenas uma questão de vontade, e você já vai entender o porquê. A esperança está em descobertas científicas que prometem revolucionar a reciclagem de plástico – e, talvez, torná-la quase tão comum quanto a do alumínio (no Brasil, 98,7% das latas são recicladas). Mas, antes: como um material tão útil e versátil, que redesenhou a vida no século 20, pôde se tornar um problema tão monstruoso?

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Da parkesina ao PET

A palavra “plástico” vem da Grécia antiga. Era um adjetivo, plastikos, classificando qualquer material fácil de moldar. Foi só a partir do século 19 que ele começou a virar substantivo. Em 1856, o inventor inglês Alexander Parkes inventou a parkesina: nitrato de celulose, feito a partir de polpa de madeira tratada com ácido nítrico. Nascia o primeiro plástico.

Seu objetivo era relativamente modesto: substituir o marfim em objetos domésticos, como botões, puxadores de gavetas e suportes de escovas. Parkes fundou uma empresa, a Parkesine Company, para comercializá-lo. Não deu certo. O produto era caro e visivelmente inferior ao marfim, além de bastante inflamável.

Parkes acabou tendo de vender a empresa. Mas a ideia foi adiante, e deu origem ao celuloide usado em filmes fotográficos e de cinema. Parkes morreu em 1890, com mais de 60 patentes em seu nome. (Hoje, a parkesina tem outras aplicações: as armações de óculos geralmente são feitas de nitrato de celulose.)

Em 1907, o químico belga Leo Baekeland desenvolveu o primeiro plástico totalmente sintético: o baquelite, que é produzido com dois ingredientes simples e baratos, o fenol e o formaldeído (também conhecido como formol), em uma máquina que Leo chamou de Bakelizer.

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Foi um salto e tanto. O baquelite (cujo nome científico, impronunciável, é polioxibenzimetilenglicolanidrido) era estável, maleável, versátil e, o mais importante, resistente à eletricidade e ao calor. Baekeland criou uma empresa para produzir e comercializar o material, a General Bakelite Company. Nas décadas seguintes, rádios, telefones e interruptores, entre uma infinidade de produtos, foram feitos de baquelite.

Baekeland ficou famoso, foi capa da revista Time, e se tornou um dos inventores mais ricos de sua época. Morreu em 1944, com mais de 100 patentes e um legado de peso: 175 mil toneladas de baquelite produzidas, para uso em mais de 15 mil produtos. Foi graças a ele que o plástico entrou nas casas das pessoas.

Mas Baekeland passou seus últimos meses de vida em um sanatório, acossado por manias – aposentado à força pelo filho após vários anos de desentendimentos, ele só aceitava comida enlatada e havia desenvolvido uma estranha obsessão: queria criar um jardim tropical de proporções bíblicas.

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Alheia a isso, a indústria do plástico continuou crescendo. Ela ganhou escala com a descoberta de reservas de petróleo e gás natural (que servem para fabricá-lo), a partir dos anos 1920. As empresas petrolíferas começaram a investir pesado em novas aplicações e tipos de plástico, num ambiente de inovação acelerada que culminou, em 1933, com a síntese industrial do polietileno.

Esse material já era conhecido desde 1889, quando o químico alemão Hans von Pechmann o descobriu sem querer durante experiências com diazometano (um reagente de laboratório). Mas ele era muito difícil de fazer.

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Foram necessários quase 50 anos até que alguém inventasse um jeito consistente de fabricar polietileno – os autores da façanha foram Reginald Gibson e Eric Fawcett, que trabalhavam na empresa inglesa ICI e descobriram a pressão e a temperatura ideais (1.400 bar e 170 °C) para fazer aquele tipo de plástico.

Durante a Segunda Guerra, houve uma escassez generalizada de metais, usados para fazer o máximo possível de aviões, tanques e armas. Com isso, os plásticos ganharam mais um impulso – em especial o náilon, que já vinha sendo utilizado em meias-calças femininas e passou a ser empregado em lonas de paraquedas.

O náilon foi inventado pela empresa americana DuPont, e aperfeiçoado pela alemã IG Farben – a mesma que produziu o gás Zyklon B, usado para matar pessoas nos campos de concentração. E a história do plástico tem outra conexão com o nazismo.

No começo dos anos 1950, o alemão Karl Ziegler e italiano Giulio Natta deram um passo decisivo: inventaram um jeito de fazer polietileno usando catalisadores, sem precisar de tanto calor e pressão – o que barateia muito o processo.

Foto de mamadeiras cheias de leite e plástico e uma tigela com pedaços de lego.
Os bebês são expostos a microplásticos – presentes no leite da mãe. (Studio Oz/Superinteressante)

Ziegler havia sido membro da Schutzstaffel: a SS, uma organização paramilitar nazista, na qual ele chegou a ser condecorado durante a guerra. Mas isso foi deixado de lado, e os dois receberam o Prêmio Nobel de Química em 1963 pela descoberta.

Também no começo dos anos 1960, a fabricação de plástico superou a do alumínio pela primeira vez. E logo depois viria o maior salto de todos: o polietileno tereftalato, ou PET.

Ele já existia desde os anos 1940, quando começou a ser utilizado em roupas – também para suprir uma brecha criada pela guerra, já que dispensava o uso de algodão (permitindo que a agricultura se concentrasse em produzir comida, que também faltava). Sabe quando você olha a etiqueta das roupas, e está escrito que elas contêm poliéster? É um derivado do PET.

Mas foi só em 1973 que o PET encontrou sua grande vocação: as garrafas plásticas. Graças ao trabalho de outro inventor, Nathaniel Wyeth. Ele era funcionário da DuPont, e em 1967 começou a pesquisar o uso do material em garrafas.

No começo, deu tudo errado: elas se deformavam rapidamente quando enchidas com líquidos gaseificados. Mas Wyeth perseverou, e seis anos depois finalmente conseguiu bons resultados. Hoje o PET corresponde a aproximadamente 30% de toda a produção mundial de plástico, e é o mais comum dos sete tipos dele [veja quadro abaixo].

Foto de uma garrafa de plástico, sacola, isopor e um dinossauro de brinquedo.
Clique aqui para abrir o infográfico. (Studio Oz/Superinteressante)

No mundo moderno, quase tudo é feito de plástico. Metade de todo o plástico já produzido foi fabricado a partir de 2004. É aí que ele começa a sair do controle e inundar o planeta. Dá para ver isso em fenômenos recentes, como a Grande Ilha de Lixo do Pacífico. Ou melhor: visível, a rigor, ela não é.

A ilha transparente

Em 1997, o oceanógrafo Charles Moore estava voltando de uma regata entre Los Angeles e Honolulu, no Havaí, quando resolveu testar seu veleiro, o Alguita. Pegou uma rota tranquila, com pouco vento, no Giro do Pacífico Norte – ele queria ligar os dois motores diesel do barco, que tinha sido reformado recentemente, e checar se estava tudo bem. Mas, aí, viu pedaços de plástico boiando a esmo no meio do oceano.

Era a primeira observação da Grande Ilha de Lixo do Pacífico, um fenômeno que havia sido teorizado em 1988 por cientistas do governo americano. A ilha fica entre a costa oeste dos EUA e o Japão, e é formada por mais de 1,8 trilhão de detritos, que somam mais de 80 mil toneladas de plástico e se estendem por 1,6 milhão de quilômetros quadrados – o tamanho do estado do Amazonas.

Ela se formou ali porque o Giro do Pacífico Norte é um conjunto de correntes marítimas, que puxam e seguram o lixo. Os resíduos mais antigos datam de 1977.

E, segundo um estudo publicado em 2018 por cientistas holandeses (10), há evidências concretas de que a ilha segue crescendo. Aproximadamente 46% do material veio de redes de pesca que se romperam – sim, elas também são feitas principalmente de plástico.

Só que a ilha não é bem como as pessoas imaginam, com uma gigantesca maçaroca flutuante. Em sua maior parte, ela é invisível a olho nu. Isso porque o lixo vai se fragmentando – e 80% dele já está na forma de microplásticos.

Eles são muito pequenos, e ficam espalhados por uma área gigantesca. Por isso, a ilha é difícil de ver – seja de barco ou por imagens de satélite.

Mas causa um impacto ambiental enorme: afeta mais de 700 espécies. Os animais marinhos podem ficar presos na ilha de lixo, ou ingerir plástico em quantidades nocivas. Além disso, como os pedacinhos de plástico deixam a água ligeiramente turva, reduzem o acesso das algas marinhas à luz do sol, podendo desregular seriamente a cadeia alimentar.

“Não enxergamos o problema dos microplásticos com antecedência. Por muito tempo, nem percebemos o que estava acontecendo”, afirma Malcolm Hudson, biólogo da Universidade de Southampton e especialista no tema. “Mas agora que a população global saltou de 3 bilhões, em 1960, para 8 bilhões, e todo mundo usa plástico, essa questão precisa ser atacada com urgência”, diz ele.

É verdade. Você sabe, e provavelmente tenta fazer alguma coisa: usa menos objetos descartáveis, e separa o seu lixo orgânico do reciclável. Isso é ótimo. Mas não resolve, por duas razões. A primeira é que o plástico só pode ser reciclado algumas (poucas) vezes – cedo ou tarde, ele acaba virando lixo de qualquer maneira. A segunda, e principal, é que nem todo plástico é reciclável.

“O plástico é uma família enorme de materiais. Uma garrafa é muito diferente de uma sacola, por exemplo. Eles não podem ser processados juntos”, diz Hudson. “Muitos plásticos simplesmente não podem ser reciclados, por suas propriedades físicas. Outros contêm substâncias que deixam o processo bem mais complexo”, explica.

Das sete categorias de plástico [veja quadro ao lado], somente as duas primeiras – o PET e o polietileno de alta densidade, ou HDPE – são recicladas em escala comercial (11). Nos demais casos, geralmente existe algum problema que complica ou impede isso.

O poliestireno (isopor), por exemplo, é considerado inviável de reciclar, porque seu transporte é caro – cada 1 kg desse material, extremamente leve, ocupa muito mais espaço do que qualquer outro plástico – e ele se esfarela facilmente durante o manuseio.  (Nos EUA, a indústria diz reciclar 10% do isopor, mas há uma pegadinha aí: são aparas, ou seja, sobras do próprio processo de fabricação dele. Não lixo.)

Já o PVC contém cloro, que é liberado na forma de gás tóxico quando esse plástico é aquecido. O polipropileno dos canudos e potes de margarina não sobrevive bem à reciclagem: fica fraco demais. E diversos outros plásticos contêm resinas misturadas – o que torna sua reciclagem economicamente inviável.

Uma investigação das emissoras americanas PBS e NPR, que tiveram acesso a documentos internos de grandes fabricantes de plástico (12), revelou que a indústria sabia disso tudo: mas preferiu iludir os consumidores, dizendo que a reciclagem resolveria todos os problemas ambientais.

“Apostar apenas na reciclagem é uma distração”, avalia Luísa Santiago, diretora da Fundação Ellen MacArthur (que produz estudos sobre questões ambientais, plástico inclusive) na América Latina. “Pode funcionar para um momento de transição, mas não é suficiente”, diz.

Segundo ela, a saída está em redesenhar os produtos, para que deixem de ser descartáveis e se tornem reaproveitáveis. Mas isso, acredita Santiago, só acontecerá se houver leis e normas – e o acordo negociado pela ONU é vital nisso. “Sozinha, a indústria não vai avançar”, afirma.

Há outras formas de lidar com o problema, como o projeto Ocean Cleanup, que foi criado pelo holandês Boyan Slat e já fez as primeiras retiradas de plástico da Grande Ilha de Lixo do Pacífico. Ele usa grandes redes, presas em flutuadores, para capturar os resíduos.

O objetivo é acabar com a ilha de lixo por meio de um trabalho pontual e persistente, “de formiguinha”. Após anos de testes, o projeto começou para valer em 2021, quando realizou 45 coletas – que pegaram 101 toneladas de plástico, ao todo.

Seus criadores preparam um sistema aperfeiçoado, com mais capacidade. Mas eles ainda têm um longo caminho pela frente: afinal, a ilha é formada por 80 mil toneladas de lixo.

O plástico retirado do oceano está parcialmente decomposto, o que torna sua reciclagem especialmente difícil. E aí voltamos aos problemas anteriores: nem todo plástico pode ser reciclado, isso nem sempre é economicamente viável etc. Não com os métodos atuais. Mas, nos últimos anos, surgiram alguns avanços que podem mudar esse jogo. E o maior deles veio da própria natureza.

 

A bactéria mutante

A usina nuclear de Chernobyl é um dos pontos mais contaminados do mundo. Quando seu reator 4 explodiu, em 1986, a radioatividade no local chegou a incríveis 300 sieverts por hora: o equivalente a 3 milhões de exames de raio-X, e suficiente para matar uma pessoa em cerca de 1 minuto. Com o tempo e as obras de limpeza, a radiação foi diminuindo. Ela ainda é tão alta que os pontos mais críticos só podem ser vistoriados com robôs.

Mas foi ali que, em 1991, pesquisadores acharam algo incrível: um fungo radiotrófico, ou seja, capaz de se alimentar de radiação. Ele se chama Cryptococcus neoformans, e a ciência já o conhecia; mas essa sua nova habilidade, não. O fungo pratica a radiossíntese, um processo parecido com a fotossíntese, mas com radiação no lugar da luz solar.

Décadas mais tarde, em 2016, algo parecido aconteceu – só que com o plástico. Um grupo de pesquisadores estava testando amostras do solo perto de uma usina de reciclagem de garrafas PET na cidade de Sakai, no Japão. Eles encontraram uma bactéria capaz de “comer” esse material, transformando-o em energia para sobreviver (13).

O micróbio foi batizado de Ideonella sakaiensis, e passou a ser estudado em laboratório. O segredo dessa bactéria está numa enzima que ela produz: a PETase, que decompõe esse tipo de plástico. Nos anos seguintes, outras pesquisas descobriram dezenas de PETases, fabricadas por vários micro-organismos. Elas decompõem o plástico em poucos dias – acelerando muito a degradação natural, que leva séculos.

Foto de um girassol plantado numa terra cheia de pedaços de plástico.
Existem micróbios que comem plástico. E eles podem revolucionar a reciclagem. (Studio Oz/Superinteressante)

Mas havia um problema: na prática, aquelas enzimas eram frágeis. Só funcionavam em altas temperaturas, sob pH controlado, e com plástico previamente tratado. Não pareciam muito úteis para uso em escala industrial. Até que, em abril deste ano, isso mudou.

Cientistas da Universidade do Texas criaram uma versão alterada da enzima (14), que se chama FAST-PETase e funciona incrivelmente bem: basta aplicá-la sobre o plástico, deixar o material numa temperatura de 30 a 50 graus (fácil de atingir e manter num galpão ou tonel levemente aquecido, por exemplo), e a natureza faz todo o resto. Um a sete dias depois, dependendo da temperatura ambiente, você tem plástico novo.

Sem precisar derreter o material, usar aditivos nem lidar com substâncias tóxicas. E a enzima não só decompõe o plástico, ela o refaz: repolimeriza as moléculas do material, montando novamente as cadeias de átomos que formam o PET (e o tornam tão flexível e resistente).

A FAST-PETase é produzida por uma versão geneticamente modificada da bactéria Pseudomonas putida, conhecida por sua utilidade ambiental (nos anos 1990, cientistas criaram e patentearam uma variação dela que é capaz de decompor substâncias tóxicas como o tolueno, presente em combustíveis). Em tese, a enzima poderia ser fabricada em grande escala e usada para reciclar garrafas plásticas de uma forma mais rápida, barata e ecológica do que hoje.

Além da PETase existem outras enzimas e micróbios, que decompõem outros plásticos – e podem ser geneticamente alterados para ganhar eficiência. Há uma corrida nessa direção, envolvendo várias startups e universidades.

Depois da descoberta da I. sakaiensis, que se alimenta de PET, já foram localizados um fungo comedor desse material em Islamabad, no Paquistão. E outra bactéria em Leipzig, na Alemanha.

Também há testes com novos métodos de reaproveitamento. A empresa holandesa Ioniqa, por exemplo, inventou uma técnica que permite reciclar as garrafas PET infinitas vezes, como é feito com as latinhas de alumínio. (No método tradicional, isso não acontece: o plástico perde qualidade após cada reciclagem, e você precisa adicionar uma porcentagem cada vez maior de material “virgem”, ou seja, novo, para fazer as garrafas.)

O novo processo foi desenvolvido pela Universidade de Eindhoven, que fundou a empresa, e consiste em adicionar nanopartículas magnéticas ao plástico durante a reciclagem.

Elas aderem aos componentes dele, que então podem ser separados com ímãs. A empresa atraiu o interesse de gigantes como Coca-Cola e Unilever e já está montando sua primeira usina, com capacidade para reciclar 10 mil toneladas por ano.

Outra linha de pesquisa envolve transformar o plástico em gases como hidrogênio e metano, que podem ser usados como combustíveis. Em julho de 2021, cientistas dos EUA conseguiram converter polietileno de alta densidade (HDPE) em diesel e combustível de aviação, em apenas 1 hora e com 90% de eficiência (15)

Em suma: vem aí uma série de inovações que podem aumentar muito a reciclagem. “Agora dá para começar a enxergar uma verdadeira economia circular em torno do plástico”, disse o químico Hal Alper, um dos criadores da enzima FAST-PETase, ao anunciá-la.

Eis a outra chave para resolver o problema. “Economia circular” é um sistema em que os produtos são criados, fabricados e usados já pensando em maximizar a reciclagem. “Precisamos migrar para um sistema de consumo em que o plástico seja projetado para ser facilmente reaproveitável”, diz Malcolm Hudson.

“As soluções mais promissoras são aquelas que permitem acabar com o sistema linear de produção e descarte do plástico”, concorda Luísa Santiago, da Fundação Ellen MacArthur. “Os plásticos desnecessários, ou os de uso único, precisarão ser repensados ou simplesmente eliminados.”

O Brasil, diz ela, é um dos países mais atrasados da América Latina quando se trata de implementar medidas de economia circular. “A indústria ainda mantém os debates em torno apenas da reciclagem.” Enquanto isso, no Chile, a empresa Algramo já vende comida (arroz, feijão, café, açúcar) e produtos de higiene (como detergentes) em máquinas a granel.

Os clientes utilizam embalagens reutilizáveis e levam as quantidades de que precisam. Quando a vida útil do recipiente acaba, eles ganham descontos para fazer a troca. E, aí, o plástico dessas embalagens é reciclado.

A solução para o futuro do plástico está no chamado “3R”: reduzir, reutilizar, reciclar. “Ao longo das últimas sete décadas, mobilizamos praticamente todos os aspectos das nossas vidas em torno dele. Podemos dispensar os copos descartáveis, mas ainda vamos precisar de equipamentos médicos, pneus, embalagens para alimentos”, diz Hudson.

E mais um zilhão de outras coisas. É muito difícil viver sem plástico. Mas podemos, e precisamos, aprender a conviver melhor com ele. 

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Fontes

(1) Identification of microplastics in human placenta. L Zhu e outros, 2022.(2) Sex-specific effects of bisphenol A on the signaling pathway of ESRRG. Z Zou e outros, 2022. (3) Plastic rain in protected areas of the United States. J Brahney e outros, 2020.  (4) Microplastics prevail in snow from the Alps to the Arctic. M Bergmann e outros, 2019. (5) Estimation of the mass of microplastics ingested – A pivotal first step towards human health risk assessment. K Senathirajah e outros, 2021.

(6) Raman imaging for the identification of Teflon microplastics and nanoplastics released from non-stick cookware. Y Luo e outros, 2022.(7) Raman Microspectroscopy Detection and Characterisation of Microplastics in Human Breastmilk. A Ragusa e outros, 2022. Discovery and quantification of plastic particle pollution in human blood. HA Leslie e outros, 2022. (8) A rapid review and meta-regression analyses of the toxicological impacts of microplastic exposure in human cells. E Danopoulos e outros, 2022.  (9) Resolution adopted by the United Nations Environment Assembly on 2 March 2022. UNEP, 2022.

(10) Evidence that the Great Pacific Garbage Patch is rapidly accumulating plastic. L Lebreton e outros, 2018.

(11) Circular Claims Fall Flat Again. Greenpeace, 2022. (12) How Big Oil Misled The Public Into Believing Plastic Would Be Recycled. NPR, 2020. 

(13) A bacterium that degrades and assimilates poly(ethylene terephthalate). S Yoshida e outros, 2016. (14)  Machine learning-aided engineering of hydrolases for PET depolymerization. H Alper e outros, 2022. (15) Deconstruction of high-density polyethylene into liquid hydrocarbon fuels and lubricants by hydrogenolysis over Ru catalyst. H Lin e outros, 2021.

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