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O mistério do tempo

Quanto tempo dura o presente? O futuro já aconteceu? O físico Paul Davies explica porque o tempo é, e continuará sendo, a questão mais espinhosa da ciência.

Por Paul Davies
Atualizado em 9 nov 2017, 16h22 - Publicado em 1 Maio 1988, 01h00

A forma como experimentamos a realidade se baseia numa suposição elementar: a de que o tempo pode ser dividido entre passado, presente e futuro. E que o ritmo incessante do tempo empurra para a frente o momento atual, aquilo que chamamos “agora”. O tempo passa sem parar e converte o futuro em passado. O momento presente, situado no meio de ambos, é apenas um instante infinitamente curto. Consideramos que os acontecimentos do mundo estão “ocorrendo” – e não apenas que eles “existem”. Além disso, eles ocorrem de forma ordenada. Um momento se segue sistematicamente a outro. É inconcebível a ideia de adormecer na terça e acordar na segunda. Ao meditarmos sobre o tempo temos três zonas nas claramente diferenciadas: passado presente e futuro. Segundo a crença geral o passado é composto de eventos que já aconteceram – portanto, já não existem. O que resta deles são as imagens que guardamos em nossa memória. Nada pode modificar o passado.

Da mesma forma que o passado, o futuro consta de acontecimentos que não existem – e ninguém tem condições de saber nada sobre eles. A fronteira entre, o passado e o futuro é presente. E uma fronteira móvel. A medida que o tempo vai avançando, o futuro se converte em presente e, em seguida, quase imediatamente, em passado. Os acontecimentos atuais se distinguem dos futuros em um ponto: eles são reais. A realidade do mundo exterior é a realidade do momento atual. Quando falamos do passado ou do futuro, sabemos que não está ao nosso alcance interferir nessas regiões. Por outro lado, o presente é o momento no qual podemos ter uma troca recíproca com o mundo. Essa interação momentânea se dá em duas direções:

1) Do mundo exterior nos chegam impressões captadas pelos sentidos.

2) Em face do mundo exterior podemos agir, de acordo com decisões conscientes. Tais ações parecem ocorrer agora, ou seja, no presente.

(Salvador Dalí/Moma/Reprodução)

Tudo isso é tão simples, quase banal. E, no entanto, chega a causar confusão em determinadas ocasiões. Por exemplo: o que queremos dizer quando afirmamos que estamos vivendo conscientemente o presente? Com frequência não vivemos o presente, porque estamos ocupados com outra coisa. A forma como percebemos o tempo depende decisivamente do que passa por nossa cabeça a cada momento. Se estamos envolvidos com algo muito interessante, o tempo passa voando: muitos momentos do presente nem sequer são percebidos. Por outro lado, quem espera por algo e está plenamente concentrado nessa espera sentirá os segundos passarem com extrema lentidão. Não há a menor dúvida de que uma hora na sala de espera do dentista passa muito mais devagar do que uma hora no cinema.

Mas quanto dura o presente? Ele não marca de modo algum uma linha divisória rígida entre o passado e o futuro. Essa linha é mais tênue e o que a move é nossa consciência, que reage lentamente. Muitos eventos acontecem tão depressa que nos parecem repentinos. Por exemplo, um filme de cinema composto de uma seqüência de imagens imóveis. Só porque projetadas sucessivamente com grande rapidez nos dão a impressão de movimento contínuo. Já os processos que ocorrem no mundo da física subatômica estão totalmente fora da nossa capacidade de percepção, de velozes que são.

Quem quiser separar o tempo em passado, presente e futuro encontrará outras dificuldades no plano da física moderna, em que nada se parece com o conceito de agora. Isaac Newton, no século 17, escreveu sobre o tempo “absoluto verdadeiro e matemático que transcorre uniformemente.” Ele tentou descartar o fator subjetivo, introduzindo a ideia de medição matemática precisa do tempo, com relógios. Nas fórmulas de movimento de Newton, o tempo certamente existe, embora apareça como uma magnitude, não como uma quantidade variável. Não há nada que caracterize um presente que se encontra em movimento. Das fórmulas de Newton se deduz uma conseqüência lógica. Se supusermos a existência de um sistema físico fechado – isto é, ilhado -, e contemplarmos seu estado em um momento qualquer, também ficará fixada para sempre a totalidade dos estados futuros.

Em outras palavras: o estado de um sistema em um momento qualquer determina, de uma vez por todas, toda a sua história. A imagem newtoniana do mundo reduz o tempo a uma questão contábil. O tempo está aí, para pôr etiquetas nos acontecimentos. No universo newtoniano não pode ocorrer nada verdadeiramente novo, pois as informações necessárias para construir o futuro já existem no presente. O livro cósmico está totalmente escrito desde há muito e aquilo que denominamos tempo nada mais é que um meio de numerar suas páginas.

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Naturalmente, a física não parou em Newton. Einstein, no início do século 20, ensinou que dois acontecimentos podem ocorrer simultaneamente para um observador, enquanto outro observador que se mova em relação ao primeiro perceberá os dois acontecimentos um depois do outro. Um terceiro observador poderá até ver os dois acontecimentos numa ordem sucessiva e inversa à do segundo observador. Naturalmente que na vida diária não existe nada parecido – porque neste âmbito as distâncias e as velocidades são demasiado pequenas para que se possa notar a relatividade. Mas ela existe e suas conseqüências são de grande alcance.

(Salvador Dalí/Moma/Reprodução)

De tudo isso pode se tirar uma única conclusão: não existe nenhum momento atual que seja válido universalmente. Não existe nenhum agora que seja igual de um extremo do Universo a outro. O conceito de presente é uma questão puramente pessoal e só tem significado como ponto de referencia para o observador, dependendo de seu estado de movimento. Acontecimentos em lugares muito distantes entre si podem estar no futuro para determinado observador e no passado para outro. Se assim é, torna-se insensato dividir ordenadamente o tempo em passado, presente e futuro. A Teoria da Relatividade parece nos levar a uma imagem do Universo na qual o tempo, da mesma forma que o espaço, se encontra diante de nós em toda a sua dimensão.

Nessa imagem, passado, presente e futuro são apenas etiquetas psicológicas sem significado algum do ângulo das ciências naturais. Os acontecimentos simplesmente estão aí. Se o tempo é deslocado do espaço desse modo, perde naturalmente qualquer propriedade de fluência. E mais: em lugar da experiência psicológica de um mundo dinâmico, que continua se desenvolvendo constantemente, tem-se uma imagem de quietude na qual “o mundo não transcorre, mas simplesmente existe”, como disse o matemático Hermann Weyl. O movimento do presente em direção ao futuro não aparece em nenhuma das fórmulas da física. Assim, Einstein pôde insistir que passado, presente e futuro são apenas ilusões.

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Apesar disso tudo, não há como duvidar de que os acontecimentos se posicionam numa ordem sucessiva e que essa ordem tem uma direção. Do contrário não poderia existir a causalidade, que é a determinação de um acontecimento por outro. A causalidade só é possível se existir uma relação antes/depois.

Um exemplo simples: quando se dispara um tiro contra um vaso de cerâmica e este se rompe em mil pedaços, não pode haver dúvida: o vaso ficou em pedaços depois de ter sido atingido pelo disparo. Visto a partir da causa, o efeito se encontra no futuro. Isso se comprova imediatamente ao projetar-se de trás para a frente um filme que se tivesse feito esse episódio: teríamos a impressão de que o vaso voltou à sua forma original. Ora, isso nada tem a ver com a realidade.

O tempo, portanto, tem uma direção e esse fato impregna todo o Universo. Há mais de um século os cientistas discutem de forma acalorada a que isto se deve. Os físicos descrevem freqüentemente a direção do tempo com a figura de uma seta que aponta para o futuro a partir do passado. Infelizmente, essa comparação produziu muita confusão. É legítimo falar de uma orientação do Universo no tempo, que assinala desde o passado até o futuro. O difícil é denominar com ela a direção do fluxo do tempo. Essa diferença fica clara ao se pensar na agulha de uma bússola. Ela assinala o norte apenas porque os homens assim o convencionaram. Seu significado é o de que o campo magnético da Terra está orientado, que existe uma assimetria, que a direção sul-norte não é o mesmo que norte-sul.

Quando dizemos que uma seta de tempo mostra a direção do passado até o futuro, só estamos querendo indicar que no Universo existe uma assimetria ou direcionalidade e que a direção rumo ao passado é distinta da direção rumo ao futuro. Essa assimetria não pressupõe que o tempo efetivamente voe como uma seta ou flua em direção ao futuro. Mas será que o presente existe de verdade como algo realmente objetivo, ou é apenas uma invenção psicológica? Há muito tempo os filósofos brigam por causa dessa questão.

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De um lado, estão os que defendem um presente real; são os chamados teóricos A, cujo expoente foi o alemão Hans Reichenbach (1891-1953). Seus oponentes são os teóricos B, entre os quais se destacam Afred Ayer e Adolf Grünbaum. O grupo A utiliza os conceitos de passado, presente e futuro e a rica variedade de tempos das línguas modernas – como o pretérito imperfeito, perfeito e mais-que-perfeito.

O segundo modo de tratar a sucessão do tempo defendida pelo grupo B, baseia-se em um sistema de datas. Os acontecimentos são marcados segundo a data em que ocorreram. Desse modo se consegue ordená-los de forma clara. Ou seja, dado que o momento atual esta sempre avançando no tempo, os acontecimentos do futuro chegam ao presente e passam deste até o passado. Um único acontecimento, contudo, não pode estar simultaneamente no passado, no presente e no futuro.

Diante de toda essa argumentação, alguém poderá alegar: digam o que disserem os físicos, hoje minha xícara de café quebrou em mil pedaços ao cair da mesa; isso ocorreu às 4 da tarde e representa uma mudança para pior em relação à situação anterior a essa hora. Ora, dirá o teórico do grupo B, a mudança é apenas uma ilusão. Tudo o que você disse é que a xícara estava inteira antes das 4 da tarde, que depois das 4 estava quebrada e que às 4 houve um momento de transição. Essa forma neutra de descrição contém exatamente a mesma informação, porém não afirma que o tempo tenha passado. E absolutamente desnecessário dizer que o estado da xícara variou desde inteiro até quebrado. Tudo o que há são dados sobre o tempo e o estado da xícara, simplesmente.

Que diz disso o teórico A? Ele afirma, por exemplo, que só se pode compreender o movimento dos ponteiros do relógio se existir algo como o tempo, a não ser que o movimento dos ponteiros esteja relacionado com outra coisa, como o movimento da Terra. Daí, então, teremos de perguntar: o que ocorre com a rotação da Terra? Com o que se relaciona? E assim por diante, numa série de perguntas aparentemente sem fim. Mas o que haveria no final dessa cadeia?

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O último relógio seria o próprio Universo. Ao dilatar-se cada vez mais no espaço, o Universo fixa um tempo cósmico. Há alguns anos, os físicos começaram a estudar o movimento do Universo com a ajuda da Mecânica Quântica – chegaram a uma descoberta interessante: o tempo cósmico está totalmente fora das fórmulas. Resultado: qualquer variação só pode ser medida por meio de correlações (relações de mudança). No final desse raciocínio vamos relacionar tudo com a magnitude do Universo. Assim, desaparece qualquer idéia de um presente em movimento. E o que sempre afirmaram teóricos B.

De toda forma, continua existindo o fato de que sentimos que o tempo passa. Einstein, como vimos, denominou esse sentimento de ilusão. Há exemplos claros de ilusões do movimento. Quando giramos depressa ao redor de nós mesmos e paramos de repente, temos a impressão de que tudo à nossa volta continua girando. Na realidade tudo está parado. Será que a sensação de que o tempo passa é uma ilusão semelhante a essa? De seu lado, os físicos mais destacados da atualidade procuram esclarecer se é falsa a proposição de Newton segundo a qual o futuro está contido no presente. O motivo estaria relacionado com o descobrimento do caos determinista.

Com esta expressão os cientistas se referem aos sistemas físicos dinâmicos, cuja evolução pão se pode visualizar antecipadamente. A Meteorologia, por exemplo, tem muito a ver com esses sistemas – o que talvez seja uma boa explicação para o grande número de equívocos nessa área. Um segundo campo de investigação é a própria teoria quântica e o papel nela desempenhado pelo observador. Segundo ela, a natureza, ao nível atômico, é necessariamente indeterminada. Não é possível predizer qualquer fato partindo de fatores conhecidos. Se um observador dos átomos efetuar neles uma medição, com esse próprio ato modificará o que desejava medir. Na física quântica, o possível se converte em real por meio da mera observação. Isso pode ter algo a ver com o chamado fluxo do tempo. Aqui, é claro, se está em pleno território das especulações. Ainda não sabemos se algum dia poderemos demonstrar que elas são verdadeiras. A resposta, por ora, só pode ser esta: o tempo dirá.

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