Ícone de fechar alerta de notificações
Avatar do usuário logado
Usuário

Usuário

email@usuario.com.br
Prorrogamos a Black: Super com preço absurdo

O mito confortável das múltiplas inteligências

Modelo seduz muitos educadores, mas não oferece avanços na hora de explicar ou prever capacidades cognitivas e o funcionamento do cérebro

Por Felipe Novaes, para a Revista Questão de Ciência
Atualizado em 7 dez 2025, 12h05 - Publicado em 7 dez 2025, 12h00

O texto abaixo foi publicado originalmente na Revista Questão de Ciência

Em 1983, um psicólogo de Harvard lançou uma ideia que prometia mudar tudo o que sabíamos sobre a mente. Frames of Mind, de Howard Gardner, apresentava um mapa novo da inteligência humana.

Não havia uma só inteligência, dizia ele, mas muitas: musical, espacial, interpessoal, corporal, intrapessoal. Cada pessoa seria dotada de um tipo próprio de brilho — uma centelha singular que os testes de QI jamais conseguiriam capturar.

A mensagem era bela. Professores e pais a receberam como uma libertação: finalmente, uma teoria que reconhecia todas as crianças como talentosas, cada uma a seu modo. Em poucos anos, a ideia atravessou continentes. Escolas, governos e editoras abraçaram-na com entusiasmo quase missionário. Gardner tornou-se referência mundial, não apenas em psicologia, mas em educação e políticas públicas.

Mas há algo de curioso nessa história: quatro décadas depois, a teoria das múltiplas inteligências (MI) continua viva — sem uma única evidência empírica que a sustente.

Como explicar o sucesso de uma ideia que a ciência nunca confirmou?

A MI e seus equívocos

Howard Gardner não é um charlatão. Sua proposta nasceu de uma inquietação legítima: a psicologia, dizia ele, descrevia mentes em gráficos, mas esquecia as pessoas reais.

Continua após a publicidade

No início dos anos 1980, os testes de QI eram vistos — mais na cultura popular do que na prática científica — como símbolos de uma meritocracia fria e impessoal. Gardner retratou essa psicologia psicométrica como uma ortodoxia reducionista, embora essa imagem fosse, em parte, uma distorção conveniente.

Na realidade, o campo já estava longe de ser o monólito que ele descreveu. Décadas antes, psicometristas como Raymond Cattell, John Horn e John Carroll haviam proposto modelos hierárquicos e multifatoriais, nos quais o fator geral (g) coexistia com habilidades específicas — como raciocínio fluido e conhecimento cristalizado. Mesmo críticos do fator geral, como Robert Sternberg, trabalhavam dentro de padrões empíricos, não contra eles.

Relatórios da American Psychological Association já alertavam sobre viés cultural e limites éticos, e ninguém na psicologia séria afirmava que o QI media “o valor” de uma pessoa. Gardner, porém, ignorou deliberadamente essa literatura, preferindo combater uma caricatura. Gardner chega a chamar de “vilões” os pesquisadores que adotam o modelo de inteligência geral.

A teoria das múltiplas inteligências oferecia algo que o público ansiava: uma visão generosa da diferença humana. Ela dizia, essencialmente, que ninguém é “burro”, apenas inteligente de outro jeito. Na superfície, parecia uma correção humanista a um sistema frio e competitivo. E, pedagogicamente, teve efeitos reais: inspirou educadores a enxergar talento fora das notas, a valorizar a arte, o corpo, a empatia.

A MI ganhou força não por refutar a ciência, mas por interpretá-la como uma ofensa. E, a partir daí, uma boa metáfora educacional começou a ser tratada como descoberta científica.

Continua após a publicidade
Compartilhe essa matéria via:

A falha de uma ideia confortável

A questão, então, era simples: se as inteligências de Gardner realmente existiam, elas deveriam ser mensuráveis. E se podiam ser medidas, também podiam ser comparadas. Foi aí que o encanto começou a desaparecer.

A teoria das múltiplas inteligências propõe facetas independentes (musical, espacial, interpessoal, etc.). Quando essa independência é testada, o padrão observado é o contrário: as pontuações nessas áreas se correlacionam.

Em análises fatoriais de grande escala, essas correlações formam uma estrutura hierárquica com um fator geral no topo — o g — e, abaixo dele, habilidades amplas como Gf (fluida) e Gc (cristalizada). Esse resultado é replicado de forma robusta em diferentes baterias e populações.

Do ponto de vista preditivo, as medidas alinhadas a g explicam desempenho escolar e ocupacional melhor do que qualquer bateria “MI”. MI não oferece ganho incremental de predição quando g e domínios amplos já estão no modelo.

Continua após a publicidade

No cérebro, a promessa de “módulos” dedicados a cada inteligência também não se confirmou. Evidências contemporâneas apontam para redes de demanda múltipla e mecanismos de reutilização neural, nos quais as mesmas regiões dão suporte a tarefas variadas — linguagem, raciocínio, controle executivo, percepção espacial. A arquitetura é parcialmente compartilhada, não segmentada por “inteligências” como previsto por Gardner.

Em resumo, onde a MI exige independência mensurável, ganho preditivo e módulos neuronais dedicados, os dados mostram interdependência psicométrica, primazia preditiva de g e redes neurais compartilhadas.

O teatro moral

Se a teoria das MI não sobrevive aos dados, por que ainda domina o discurso educacional? A resposta é menos científica do que psicológica. Ela prospera porque faz as pessoas se sentirem bem.

Nas faculdades de educação, a teoria das MI se tornou quase um código de ética — uma maneira de sinalizar compaixão e rejeitar o que se entende, erroneamente, como elitismo cognitivo. Professores, gestores e formadores a adotam como bandeira moral: a ideia de que todos têm talentos únicos soa democrática, inclusiva, quase terapêutica. E o ambiente escolar, cansado de desigualdades e fracassos, acolheu com alívio essa promessa de redenção pedagógica.

Mas há um preço.

Continua após a publicidade

Estudos mostram que crenças em neuromitos — como estilos de aprendizagem, hemisférios cerebrais dominantes ou inteligências múltiplas — são quase universais entre professores.

Uma pesquisa de 2017 revelou que mais de 80% dos docentes em países desenvolvidos acreditam em pelo menos um desses conceitos e os utilizam em sala de aula.

Quatro anos depois, autores de uma revisão de literatura mostraram que 929 professores de 15 países, encontraram o mesmo padrão: mais de 90% dos entrevistados aceitavam ao menos um neuromito, e 68% continuavam acreditando na teoria das MI — mesmo entre educadores com formação em neurociência.

Entre os mitos mais citados estavam “as pessoas aprendem melhor segundo seu estilo de aprendizagem preferido”, “usamos apenas 10% do cérebro” e, claro, “as inteligências múltiplas são cientificamente comprovadas”.

Os autores resumem o fenômeno de modo implacável: essas ideias são “benignas na aparência, mas danosas na prática”. Os números sugerem que a pseudociência educacional não é um erro pontual — é uma cultura.

Continua após a publicidade

E o problema não é só epistemológico. É distributivo.

Cada minuto e cada recurso investido em estratégias baseadas em múltiplas inteligências é um minuto e um recurso não aplicados em práticas realmente eficazes. A alfabetização, por exemplo, é uma das áreas mais afetadas: professores treinados em teorias não validadas tendem a adotar métodos intuitivos, deixando de lado abordagens com base empírica sólida — como a instrução fônica sistemática, reconhecida por meta-análises da National Reading Panel.

Para o aluno, o custo é invisível, mas devastador: a chance reduzida de aprender. Essa é a ironia cruel das boas intenções.

O mito das múltiplas inteligências floresceu porque parecia ético, mas o resultado é o oposto: perpetua desigualdades, ao substituir a eficácia pelo conforto.

Em nome da gentileza, rebaixou-se o rigor.

A ciência perdeu espaço não para a maldade, mas para o desejo de parecer virtuoso. E talvez não haja nada mais perigoso, no campo da educação, do que uma mentira que tranquiliza.

Felipe Novaes é psicólogo e professor da PUC-Rio. Divulga o melhor da psicologia científica no Garagem Psi. Atua no cruzamento entre ciência, filosofia e cultura, onde dados e mitos se estranham com frequência. Interessa-se por psicologia evolucionista, história das ideias e pela tensão entre razão e pertencimento em tempos de algoritmo.

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

PRORROGAMOS BLACK FRIDAY

Digital Completo

Enquanto você lê isso, o mundo muda — e quem tem Superinteressante Digital sai na frente.
Tenha acesso imediato a ciência, tecnologia, comportamento e curiosidades que vão turbinar sua mente e te deixar sempre atualizado
De: R$ 16,90/mês Apenas R$ 1,99/mês
PRORROGAMOS BLACK FRIDAY

Revista em Casa + Digital Completo

Superinteressante todo mês na sua casa, além de todos os benefícios do plano Digital Completo
De: R$ 26,90/mês
A partir de R$ 9,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$23,88, equivalente a R$1,99/mês.