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O mundo não vai acabar. Mas vai.

As mudanças climáticas não vão pôr fim à civilização em dias, como nos filmes-catástrofe. Mas tragédias como a do Rio Grande do Sul são sintomas do aquecimento global. E precisamos aprender a reconhecer o fim do mundo real se quisermos combatê-lo.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 9 Maio 2024, 12h00 - Publicado em 7 Maio 2024, 10h07

O Rio Grande do Sul está enfrentando o pior desastre natural de sua história. Até a data de conclusão deste texto, eram 75 mortos, 103 desaparecidos e 88 mil desalojados. Dos 497 municípios do estado, 332 foram atingidos de alguma forma.

O volume de chuvas inédito – em uma semana, já caiu metade de toda a precipitação prevista para 2024 – é, em grande parte, culpa de uma sequência de frentes frias que deveriam ter cruzado os céus gaúchos só de passagem, mas acabaram estacionando em cima do estado e derramando toda a água ali. 

O trânsito de nuvens na atmosfera congestionou porque, em pleno outono, uma onda de calor atingiu o Sudeste e o Centro-Oeste e bloqueou o caminho dessas frentes para latitudes mais altas. Houve máximas próximas dos 40 °C em algumas cidades, situação que a empresa de meteorologia MetSul definiu como “bizarrice climática”.

E essa onda não foi a primeira, é claro. O outro surto de temperaturas extremas que o centro-sul do Brasil encarou no meio de março, dias antes do início do outono, foi um marco na série histórica.

A cidade de São Paulo bateu um recorde de temperatura para o mês: 37,4 °C em 16 de março. Um dia depois, o município do Rio registrou sensação térmica de 62,3 °C. Parte do crédito por esse caos, você sabe, é do El Niño, uma mudança na circulação dos ventos e das águas no Pacífico que ocorre de maneira cíclica e sempre acentua o verão brasileiro. 

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Mas a culpa também é nossa. O calor é consequência da emissão desmedida de gases de efeito estufa pelo ser humano desde o início da era industrial, no século 18. A temperatura média global no El Niño de 1998 foi 0,64 °C acima da média. Em 2005, 0,69 °C. Em 2010, 0,71 °C. Em 2016, 0,99 ºC. O Menino está cada vez mais quente.

O aquecimento global não é mais o futuro; é o presente. Sabe-se há anos, por simulações de computador, que o Rio Grande do Sul é um território particulamente propenso ao aumento de chuvas extremas – é hora de esquecer o negacionismo e pensar em prevenção, lá e em todo o Brasil.

O sexto relatório do IPCC – o mais completo relatório sobre mudanças climáticas disponível, elaborado por 801 pesquisadores de 195 países com a leitura de 14 mil artigos científicos – prevê para o nosso país quedas de 10% a 20% nas chuvas da Amazônia, calendários de polinização dessincronizados, aumento das populações de mosquitos como o Aedes, clima inadequado no Centro-Oeste e no Nordeste para o plantio de soja, milho, café e outros cultivos fundamentais para a economia, reservatórios de água mais vazios no Sudeste e muitos, muitos desastres naturais: de 1928 a 2016, houve 238 eventos extremos, como ressacas e marés altas anômalas, só no litoral de São Paulo. 61,4% deles aconteceram após o ano 2000. 

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Pouca gente, porém, parece desesperada. Uma reportagem do Jornal Hoje exibida em 18 de março descreveu o último final de semana do verão como “caprichado”, e mostra uma banhista feliz com o prospecto de tomar uma dose cavalar de radiação UV: “amo calor, amo verão, espero que nunca acabe”. (Agradeço ao podcast Vida de Jornalista por me chamar a atenção para esse excerto, que, nas palavras do apresentador Rodrigo Alves, segue a cartilha “sorvetinho, água de côco, praias lotadas e a alegria do brasileiro”.) Por que sofremos de uma incapacidade crônica de entender a gravidade das mudanças climáticas? 

Parte da culpa é do tempo. Quase todos os filmes que mostram o fim do mundo cometem o mesmo erro de verossimilhança: retratam apocalipses-miojo, que ficam prontos rapidinho, em semanas. Mas é sempre bom lembrar que os dinossauros não bateram as botas do dia para a noite. A queda do meteoro gerou uma sequência de desastres ecológicos que durou milênios.

Calcula-se que a extinção em massa mais grave da história da Terra – a do Permiano, há 251 milhões de anos, antes da evolução dos dinos –, durou no mínimo 200 mil anos. Sem dúvida houve hiatos de calmaria aqui e ali, e certos recantos da Terra em que os impactos foram mais ou menos perceptíveis. Mas o resultado final ainda foi o sumiço de 95% das espécies marinhas e 70% das terrestres. 

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Deslizamentos de terra e enchentes como no Rio Grande do Sul (2024), no litoral norte de São Paulo (2023) e em Petrópolis (2022) geram comoção no noticiário, mas logo desaparecem da memória de todos, com exceção dos diretamente afetados. É muito difícil entender fatos afastados no tempo como capítulos de um mesmo processo gradual de degradação ecológica. Mas eles são: com um aumento de 1 °C na temperatura média global, que já aconteceu, chuvas extremas têm 6,7% mais água e inundações se tornam 30% mais comuns. 

Além de uma percepção inadequada do tempo geológico, há o problema de que somos péssimos em fazer sacrifícios em curto prazo para colher benefícios em longo prazo. Dilapidar a legislação ambiental é pauta de vários deputados e senadores, para não falar nos eleitores e eleitos que negam o aquecimento global.

O Rio Grande do Sul prova que o prejuízo colhido em longo prazo supera qualquer vantagem política egoísta dessas ações no presente. Nossos cérebros não evoluíram para entender como ameaça o que não nos afeta de imediato. São obstáculos psicológicos, acima de tudo, que precisamos transpor para combater as mudanças climáticas. Nossos cérebros não evoluíram para entender como ameaça o que não nos afeta perceptivelmente. 

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É sempre bom lembrar que, quando falamos em “fim do mundo”, queremos dizer algo mais específico que o fim da Terra em si (esse só virá daqui 5 bilhões de anos, quando ela será engolida pelo Sol). Estamos falando do planeta em sua configuração atual de oceanos e continentes, com as temperaturas médias, mínimas e máximas que conhecemos, com certas regiões frias e outras quentes, e com culturas e etnias variadas que floresceram da maneira como são, em partes, porque o ambiente circundante fornecia estes ou aqueles recursos. 

A Terra nem sempre foi assim, é claro. A temperatura média era 5 °C mais alta no Jurássico, quando os dinossauros se tornaram a forma de vida dominante. Não havia calotas polares, e a concentração cinco vezes maior de gás carbônico na atmosfera permitia a existência de plantas gigantescas. Era um mundo exuberante; o problema é que não é o nosso mundo. Toda mudança climática põe a seleção natural em curso, surgem nichos ecológicos novos e espécies para ocupá-los. A vida dá um jeito. 

Em suma: não é o mundo que vai acabar se deixarmos as mudanças climáticas rolarem soltas. Só o mundo como o conhecemos. E o que é o mundo senão o que você conhece? Pense em cada casa, escola, restaurante etc. que estão debaixo d’água no Rio Grande do Sul: nós somos os lugares em que vivemos, as memórias que cultivamos, as pessoas que amamos e até nossos objetos favoritos. O aquecimento global pode parecer um problema abstrato, mas já estamos experimentando suas consequências reais. Para as vítimas de tragédias ambientais, o mundo já acabou. E agora elas precisam reconstruí-lo. 

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