Roberto Guimarães
Os seres transgênicos foram inventados milênios antes da descoberta do DNA. Presentes na pintura e nas religiões politeístas da Antiguidade, criaturas imaginárias (e muito esquisitas) mostram como o progresso científico foi antecipado pela criatividade.
Homem com cabeça de leão, mulher com corpo de peixe. Pesadelo? Não, apenas seres mirabolantes que há séculos freqüentam a mitologia. Muito antes de a Genética ser ao menos sonhada como ciência, as mais diversas culturas inventaram seres híbridos, quase sempre de aspecto assustador. Essas criaturas imaginárias aparecem hoje na literatura, no cinema e nas histórias em quadrinhos. Mas, há milênios, formavam o núcleo de religiões que cultuavam criaturas nascidas do cruzamento entre animais e seres humanos.
Até o surgimento da escrita, as experiências tinham que ser relatadas oralmente ou por desenhos. Como não havia explicação para muitos fenômenos da natureza, o sobrenatural dominava a imaginação. Com a evolução da ciência, os seres fantásticos migraram para as manifestações artísticas. Depois, iriam fixar residência nos laboratórios genéticos.
Eva e Atena, os primeiros clones
Pense rápido: Eva é um clone de Adão? De certa maneira, sim. Afinal, primeiro surgiu Adão e, de um pedaço de seu corpo, a costela, apareceu Eva. Na vida real, os clones são obrigatoriamente do mesmo sexo – e necessitam de um útero onde possam desenvolver-se durante a gestação. Mas é impressionante constatar a presença, no livro inicial do Velho Testamento, o Gênesis, da idéia de que a partir de um pedacinho de uma criatura pode ser possível fabricar uma outra. A ovelha Dolly, vale a pena lembrar, teve sua origem numa célula mamária de sua mãe – como Eva, nascida da costela de Adão. É na mitologia grega, porém, que encontramos os melhores exemplos de seres concebidos de formas inexistentes na natureza. No caso mais famoso, Zeus, o deus supremo, sofre uma terrível enxaqueca e, desesperado, pede que lhe dêem uma martelada no crânio. O impacto rompe sua cabeça e, de dentro dela, surge Palas Atena, a deusa da Sabedoria, já adulta e vestida em trajes de guerreira, de capacete e tudo. Hoje, esta bela história pode parecer uma página de literatura fantástica. Mas, há 2 000 anos, os antigos gregos acreditavam piamente nela.
Os monstros delirantes da ficção genética
Imagine a cena. Sábado de manhã, você acorda com umas dores esquisitas. Passa a mão pelo corpo e percebe que há algo de errado. Tenta se levantar e desaba no chão. Você chega ao espelho após muito sacrifício e percebe que agora é uma barata. É assim que começa A Metamorfose, obra mais conhecida do escritor tcheco Franz Kafka.
Já em Frankenstein, um cientista utiliza tecidos de cadáveres para construir a réplica de um homem em seu laboratório. Como prefere corpos de pessoas jovens, cujos órgãos estão em melhor estado, acaba fazendo sua criatura com tecidos de criminosos, onde há maior incidência de morte prematura. Resultado: a criatura nasce má e se volta contra seu criador.
Os seres extravagantes estão presentes em todas as culturas – do deus-serpente da mitologia maia, no México, ao Homem-Aranha das histórias em quadrinhos, um herói de características monstruosas resultante dos efeitos da radiação nuclear.
O ponto de partida para a criação de um ser imaginário são as criaturas de verdade. A partir dos traços físicos reais, nossa fantasia pode arriscar as receitas mais estrambóticas: patas de ganso, pernas de homem, olhos de leopardo, penas de pavão, escamas de peixe. Uma dica para quem estiver interessado pela fauna do delírio é o Livro dos Seres Imaginários, dos argentinos Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero. Ali desfilam mais de 100 criaturas, imaginadas nas mais diversas épocas e culturas.
Em A Ilha do Tesouro, pintura de 1942 do belga René Magritte, plantas estranhas se metamorfoseiam em pássaros, numa impressionante intuição dos seres transgênicos. No destaque, algumas criaturas surrealistas do pintor holandês Hyeronimus Bosch (1450-1516)
Quimera
Monstro híbrido com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente. Ou, em outras versões, com três cabeças, uma de cada animal. Quimera só pode ser destruída por uma lança com chumbo na ponta. O calor de suas chamas derrete o chumbo e faz com que ela morra. O monstro se incorporou à linguagem cotidiana de uma forma simbólica: a Quimera destrói quem se deixa seduzir por ela.
Minotauro
Corpo de homem e cabeça de touro. Minos, o rei da ilha de Creta, é casado com Pasífae. Para se tornar rei, ele pede a Possidon (deus dos Mares) que um touro saia do mar. Minos promete que sacrificará o touro em seguida e não cumpre o combinado. Irado, Possidon faz com que Pasífae se apaixone pelo touro. Dessa união nasce o Minotauro, ser monstruoso que é confinado em um labirinto e se alimenta de carne humana.
Sereia
Corpo de peixe (ou ave) e rosto de mulher. Criatura imortalizada na Odisséia, de Homero. No relato clássico, seu canto suave e sedutor atraía os navegantes para os rochedos do Mar da Sicília, no Mediterrâneo. Desnorteados com tanta beleza, os marinheiros perdiam a rota, naufragavam e morriam. As Sereias então se atiravam ao mar para se alimentar do sangue quente dos náufragos. Simbolizam os perigos da sedução fácil. Ulisses, o protagonista da Odisséia, teve de pedir aos seus marinheiros que o amarrassem ao mastro do navio e tapassem seus ouvidos com cera para não sucumbir ao canto irresistível das Sereias.
Centauro
Corpo de cavalo e cabeça de homem. Hera, esposa de Zeus, é seduzida por Íxion, rei dos lápitas. Enciumado, o deus dos deuses faz uma nuvem à imagem e semelhança de sua esposa para enganar Íxion. A estratégia de Zeus dá certo. Íxion e a nuvem inspirada em Hera se encontram e se acasalam. Da união dos dois nasce o Centauro, ser que simboliza a vida selvagem, o instinto animalesco.
Admirável mundo novo
Futuro sombrio habitado por seres de laboratório.
No pesadelo totalitário imaginado por Aldous Huxley, a sociedade do futuro é submetida a um governo mundial. Cientistas a serviço dos ditadores se instalam no Centro de Incubação e Condicionamento de Londres para produzir clones humanos.
O Estado não precisa de indivíduos, apenas de peças que façam sua engrenagem funcionar. Por manipulação genética, define-se a capacidade do cérebro dos recém-nascidos. As pessoas se dividem, então, entre uma pequena elite inteligente e um enorme rebanho de bichos humanos para o trabalho braçal.
Meninos do Brasil
Médico nazista fabrica clones de Hitler.
Depois da derrota alemã na Segunda Guerra Mundial, alguns dos mais procurados carrascos nazistas se refugiam na América do Sul. É no sul do Brasil que se instala Josef Mengele, o médico famoso pelas experiências com cobaias humanas. No livro de Ira Levin, Mengele aproveita o exílio para pôr em prática seu grande sonho: clonar Hitler. A partir de pequenas partes que havia guardado do führer, Mengele fabrica vários seres à imagem e semelhança de Hitler.
A ilha do Dr. Moreau
Cientista pirado inser e genes humanos em animais selvagens.
No livro de H.G.Wells, o único sobrevivente de um naufrágio é salvo por uma embarcação que tem uma tripulação muito estranha, formada por animais medonhos. Esses seres transgênicos habitam a ilha do Dr. Moreau, um cientista alucinado que, após ganhar o Prêmio Nobel, expande suas experiências com genes humanos e é proibido de trabalhar. Numa ilha do Pacífico, Dr. Moreau insere genes humanos em animais, com o objetivo de domá-los. A situação fica fora do controle quando um de seus filhotes percebe que está sendo domesticado e se rebela.
Metrópolis
Um clone lidera a revolução operária.
Século XXI. A cidade que dá nome ao filme é dividida em dois ambientes: superfície e subterrâneos. Sob a terra vivem os dominados: operários e trabalhadores braçais em geral. Sobre o chão, os dominadores, donos das fábricas e patrões dos operários. Nos subterrâneos, uma menina chamada Maria é adorada como uma santa pelos operários. A insurreição é deflagrada quando um cientista clona Maria e incita os operários contra os patrões. O filme, de Fritz Lang, é um dos maiores clássicos do cinema.