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Um ano no espaço – e na Terra

Ele passou um ano inteiro na Estação Espacial Internacional, enquanto seu irmão gêmeo era monitorado em Terra. Objetivo: descobrir o que o espaço faz com o corpo humano - e o que faz cada pessoa ser como é

Por Marcos Ricardo dos Santos e Bruno Garattoni
Atualizado em 28 ago 2020, 13h34 - Publicado em 10 out 2016, 15h08

Em 2016, a Nasa recebeu uma multidão de candidatos a astronauta. Foram 18.300 (quase o triplo do número de inscrições da última turma, em 2012), todos competindo por míseras 14 vagas. Segundo a agência, a procura se deve ao interesse por sua próxima missão: mandar o homem a Marte até 2030. Só que Marte é longe. Ir e voltar vai demorar três anos. E nunca um ser humano ficou no espaço durante tanto tempo consecutivo. Ninguém sabe o que poderá acontecer com ele.

A Roscosmos (agência espacial russa) teve uma ideia inusitada, que a Nasa topou: mandar o astronauta Scott Kelly, 52, passar um ano inteiro na Estacão Espacial Internacional (ISS), e ao mesmo tempo monitorar o irmão gêmeo dele, o ex-astronauta Mark Kelly, em Terra. “Ele é uma cobaia no espaço e eu sou uma cobaia na Terra”, resumiu Mark. Como os dois têm o mesmo DNA, é possível identificar exatamente o que o espaço fez com Scott (porque são coisas que não acontecerão com Mark). E isso promete trazer respostas para uma das grandes questões da ciência, que afeta todo mundo: o que é determinado pela nossa genética e o que é causado pelo ambiente em que vivemos?

Paradoxo dos gêmeos

A experiência de Scott e Mark Kelly remete ao chamado paradoxo dos gêmeos. É uma experiência que envolve a dilatação do tempo, um dos principais elementos da Teoria da Relatividade. Einstein mostrou que a velocidade pode deformar o tempo. Se um gêmeo viaja pelo espaço, a grandes velocidades, e o outro fica na Terra, o tempo passa mais devagar para aquele que está no espaço. A Estação Espacial Internacional se desloca a 27 mil km/h (relativos a um ponto fixo na Terra). Isso significa que, ao longo de 342 dias, tempo que ele passou no espaço, Scott ficou 8,6 milissegundos mais jovem. Tecnicamente, viajou no tempo – mesmo que apenas um pouquinho.

Em compensação, seu organismo envelheceu bem mais que o do irmão. Tudo por causa da exposição aos raios cósmicos. Você está protegido pelo campo magnético e pela atmosfera da Terra, que absorvem boa parte deles. Os astronautas, não. Eles são bombardeados por radiação. E ela, além de aumentar o risco de câncer, tem outro efeito ruim: acelera o envelhecimento do corpo, porque danifica os telômeros do organismo.

O que um ano faz

Os telômeros são as pontinhas dos cromossomos, e têm a função de mantê-los inteiros. Conforme você vai vivendo, as suas células vão se reproduzindo, para repor as que ficam danificadas. O problema é que, cada que vez que isso acontece, os telômeros dão uma encurtadinha minúscula. Até que, depois de muitos anos, chega uma hora em que eles ficam pequenos demais. Aí, o seu corpo não consegue mais repor as células direito. E você envelhece até morrer.

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Nos astronautas, esse processo é mais rápido, porque a radiação faz com que os telômeros encurtem mais depressa. Não se sabe o quanto – o estudo com Scott e Mark será o primeiro a tentar medir isso com exatidão. Mas acredita-se que o efeito da radiação seja forte. Em um estudo publicado pela Universidade de Nevada, o oncologista Francis Cucinotta calculou que a viagem de um astronauta até Marte poderia reduzir sua expectativa de vida em 15 a 24 anos.

Mais alto – e mais míope

Quando Scott chegou à Terra, estava mais alto que o irmão: cresceu quatro centímetros. Sem a pressão da gravidade terrestre, a coluna dele esticou e ficou com mais espaço entre as vértebras. Mas esse efeito durou pouco: em menos de dois dias, Scott recuperou a altura normal. Ao mesmo tempo, ele parecia bem mais gordinho. É que o corpo humano é 60% água – e, no espaço, essa água vai mudando de lugar.

Como há pouca gravidade, ela tende a se concentrar na parte superior, principalmente no tórax e na cabeça. Para tentar evitar isso, os astronautas usam um traje especial de borracha, o “chibis” (nome russo para um tipo de passarinho), que foi inventado nos anos 1970. O astronauta enfia as pernas numa calça de borracha, que bombeia o ar para fora e diminui a pressão nas pernas, puxando os líquidos do corpo para baixo. É desconfortável, e não adianta muito. Tanto que quem passa períodos prolongados no espaço sofre do chamado “efeito Charlie Brown”: os astronautas sempre parecem ficar com o rosto mais arredondado, como o do personagem.

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A concentração de fluidos na cabeça também faz com que os astronautas tenham a sensação constante de nariz entupido, o que leva à perda de paladar – como quando estamos resfriados. Por isso, os astronautas geralmente gostam de comer comida apimentada no espaço (mesmo aqueles que normalmente não apreciam pimenta). Porque a ardência da pimenta se torna um dos únicos sabores que eles conseguem sentir.

A redistribuição da água no corpo também tem consequências mais sérias. Causa efeitos fortes, e possivelmente irreversíveis, sobre a visão. Até hoje, mais de 300 astronautas foram analisados nesse quesito. 23% dos que estiveram em missões curtas e 49% dos que participaram de missões médias (de seis meses) ficaram com problemas para enxergar de longe ou de perto. Em vários casos, a mudança foi permanente. Durante seu ano no espaço, Kelly reclamou de dificuldades para enxergar. Os cientistas da Nasa acreditam que isso seja causado por um aumento na quantidade de líquido que rodeia o cérebro, o que exerce uma pressão adicional sobre o nervo óptico, deformando os globos oculares.

O coração também atrofia. Como todo astronauta, Scott se exercitou bastante no espaço, em média 2 horas por dia (correndo numa esteira, preso por cordas que simulam a força da gravidade, e numa espécie de bicicleta ergométrica). Mesmo assim, acredita-se que ele tenha ficado com o coração menor. Não se sabe qual a consequência desse efeito, que já foi observado em outros astronautas (quando eles voltaram à Terra, o coração recuperou o tamanho e o formato normais depois de algum tempo). Mas há o receio de que astronautas possam sofrer algum tipo de disfunção cardíaca em missões ultralongas – como uma viagem a Marte.

A ausência de gravidade também afeta o cérebro. Um estudo da Universidade do Texas, realizado com 27 astronautas que ficaram em média 108 dias no espaço, descobriu que muitos deles tiveram sintomas de hipertensão sanguínea intracraniana. Causa problemas de visão, zumbidos no ouvido e alterações na hipófise, uma glândula cerebral relacionada aos hormônios sexuais. Scott e o irmão realizaram um conjunto de testes para medir suas capacidades lógicas, psicomotoras, de abstração e reconhecimento. Eles repetiram os testes antes, durante e depois da viagem – e os resultados estão sendo comparados entre eles, com os testes de outros astronautas e com pessoas comuns, que nunca saíram da Terra. “O objetivo é saber se a performance cognitiva é afetada pela permanência prolongada em ambiente espacial, e após o retorno à Terra”, diz o médico Mathias Basner, da Universidade da Pensilvânia, que está fazendo o estudo para a Nasa.

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Mesmo se os astronautas não tiverem lesões cerebrais, missões longas podem causar alterações psicológicas profundas. E isso já foi comprovado na prática.

Com a cabeça na Lua

Em 1999, três astronautas (um austríaco, um japonês e uma canadense) foram à Rússia participar de uma simulação: ficariam 110 dias trancados em um módulo na Terra que simulava a Estação Espacial, junto a outros quatro cosmonautas russos – que já estavam confinados havia seis meses. Menos de um mês depois da chegada deles, em uma festinha de Ano-Novo regada a vodca, todo mundo surtou: o russo Vasily Lukyanyuk tentou beijar à força a canadense Judith Lapierre, e dois dos outros russos brigaram e trocaram socos. As agências espaciais colocaram panos quentes e Judith continuou na missão (já o japonês, revoltado, saiu).

Por falar em bebida, os russos também são conhecidos pela tradição de levar álcool ao espaço, o que pode acalmar – e acirrar – os ânimos. “Em missões prolongadas, nós tínhamos bebidas alcoólicas”, revelou o cosmonauta Alexander Lazutkin, que esteve na estação espacial MIR em 1987. Mas só era permitido beber com autorização da base em Terra.

Scott foi acompanhado por um russo. Mas era um russo pacato: Mikhail Kornienko, de 55 anos. Tanto Scott quanto Mikhail são ex-pilotos militares – e poderiam ter se enfrentado numa eventual guerra entre EUA e Rússia. Ao longo do ano em que passaram juntos, as relações entre os países pioraram bastante, atingindo seu pior ponto desde a Guerra Fria. Scott é diplomático e diz que o assunto não foi comentado a bordo. O russo, nem tanto. “Se nós pudéssemos mandar nossos dois presidentes [ao espaço] por duas semanas, os problemas na Terra seriam resolvidos”, declarou.

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Lá e cá

A Estação fica perto da Terra, a 400 km de distância. Scott foi num foguete russo (do qual a Nasa depende, atualmente, para ir ao espaço, já que os ônibus espaciais foram aposentados em 2011). Chegar lá foi rápido, levou aproximadamente 11 minutos. O duro foi conseguir encaixar o módulo de transporte na estação – o que pode demorar horas ou até dias, pois são estruturas pequenas em meio à imensidão espacial. O acoplamento é comandado pela ISS e, no caso do módulo que levou Scott, Mikhail e o também russo Gennady Padalka, levou 5h45 (tempo mais rápido da história). Depois de acoplar, é necessário aguardar mais 2 horas até que a pressão do módulo se estabilize, e só então entrar na Estação.

Ela é relativamente confortável para os padrões espaciais – seu interior é tão grande quanto o de um Boeing 747. “Se formos a Marte, será num veículo menor, com as pessoas amontoadas”, lembra Scott. Durante os 340 dias que passaram na ISS, ele e Mikhail conviveram com outros 13 astronautas: americanos, russos, europeus e japoneses. A rotina é puxada.

Um dia típico começa às seis da manhã (a Estação Espacial adota o horário UTC, equivalente ao do meridiano de Greenwich, na Inglaterra). Ao acordar, um banho de gato: sem água corrente, a solução é um paninho com um gel que serve como sabonete e xampu. Depois disso, o café da manhã. Cada astronauta escolhe seu menu – frutas, nozes, pasta de amendoim, frango, carne, balas e brownies são os mais comuns. A dieta de cada um varia de 1.900 a 3.200 calorias por dia, dependendo do sexo e do tamanho de cada pessoa. Durante o ano em que Scott esteve na ISS, três missões de abastecimento da estação falharam (os foguetes explodiram), o que causou certa apreensão em relação à comida.

Depois do café, eles leem e-mails e notícias até o horário da conferência matinal, às sete e meia. Cada um se conecta à sua respectiva base na Terra – Houston (EUA), Munique (Alemanha), Tskuba (Japão) e Moscou (Rússia) – para planejar as tarefas do dia. Das oito da manhã às seis da tarde (com uma hora de pausa para o almoço) é a jornada de trabalho: hora de fazer experimentos científicos, manutenção nos equipamentos, coleta de dados – sempre em contato e com a supervisão das bases. Só Scott teve de fazer quase 400 testes e experiências.

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Para ele, a parte mais emocionante foram as chamadas “atividades extraveiculares”, em que é preciso sair da nave e enfrentar o vazio do Cosmos. Scott é astronauta desde 1996 e já havia participado de cinco missões (incluindo duas na ISS), mas nunca tinha feito isso. Dessa vez, foram três. Uma para instalar a cobertura do detector de partículas; outra para consertar o sistema de refrigeração da estação; e a terceira para soltar o encaixe do módulo de transporte, que estava preso. No total, foram 18h20 fora da ISS.

Scott também praticava jardinagem. Os astronautas já conseguem plantar (e depois comer) as próprias alfaces. Kelly e os colegas foram além e conseguiram, pela primeira vez, plantar uma flor no espaço. Em novembro de 2015, algumas sementes foram colocadas nos canteiros espaciais e, em janeiro de 2016, nasceu uma zínia – a primeira flor extraterrestre.

O expediente termina às sete da noite. Eles discutem os resultados das atividades e planejam o dia seguinte. Nesse caso, “dia” é modo de falar. Porque, como a Estação Espacial dá uma volta na Terra a cada 90 minutos, seus ocupantes veem o Sol nascer ou se pôr nada menos do que 32 vezes ao dia – para Scott, foram ao todo 10.944 vezes.

Não por acaso, o nascer e o pôr do sol estão entre os temas favoritos dele, que postou mais de mil fotos no Instagram ao longo do ano (veja acima algumas das melhores). Ao voltar, Scott fez questão de registrar seu primeiro pôr do sol terráqueo: na Noruega, onde a cápsula Soyuz foi resgatada. Depois começou a postar fotos de comida: o primeiro bife, a primeira salada, o primeiro jantar à mesa. Como qualquer pessoa faria, mas com uma diferença. Ele agora dá muito mais valor a essas coisas. “É tudo sempre exatamente igual [na ISS]. Depois de seis meses, parecia que eu estava a vida inteira lá”, admite Scott. Conquistar o espaço parece ser um desafio ainda maior do que se imaginava. Porque além de superar dificuldades tecnológicas, distâncias enormes e condições hostis, será preciso vencer algo ainda pior: o efeito disso sobre a mente humana.

Para saber mais:

A Year In Space

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