Um buraco negro engoliu algo misterioso a 800 milhões de anos-luz da Terra
É a colisão mais exótica já detectada pelo LIGO: ninguém sabe se o objeto engolido é um buraco negro muito pequeno ou uma estrela de nêutrons muito grande.
800 milhões de anos atrás, em um lugar do cosmos tão distante que faz o diâmetro da Via Láctea parecer uma caminhada até a padaria, um buraco negro com 23 vezes a massa do Sol engoliu um astro menor e desconhecido, com “apenas” 2,6 vezes a massa do Sol. A colisão aconteceu após os dois dançarem uma valsa lenta, em que o objeto engolido descreveu lentas espirais em torno do buraco negro por milhões de anos.
O impacto foi tão intenso que perturbou o próprio tecido do espaço-tempo – o alicerce em que o cosmos está apoiado. Gerou ondas gravitacionais.
Para entender ondas gravitacionais, é preciso primeiro compreender de fato o que é a gravidade. E ela é o seguinte: se você deitar em uma cama coberta de bolinhas de gude, todas vão rolar na sua direção. Afinal, quanto mais pesado é um objeto, mais o colchão afunda. O Universo é como um colchão, só que feito de um tecido diferente: três dimensões de espaço e uma de tempo. E o Sol é você: algo tão massivo que afunda bem esse tecido. É por isso que as bolinhas de gude – como a Terra ou Júpiter – ficam presas em volta dele.
Ondas gravitacionais, por sua vez, ocorrem quando um fenômeno cósmico é tão violento que faz a superfície do colchão subir e descer periodicamente, como o mar.
O que nos leva de volta à colisão ali no começo do texto. 800 milhões de anos depois, viajando à velocidade da luz, as ondas geradas pela deglutição do objeto não identificado alcançaram os observatórios LIGO e Virgo, aqui no planeta Terra. Era dia 14 de agosto de 2019. A palavra “observatório” talvez faça você imaginar um telescópio, mas o LIGO e o Virgo na verdade não têm lentes – nem geram imagens. Eles são interferômetros, e funcionam graças à maneira como as ondas gravitacionais perturbam raios laser isolados em tubos de 4 km de extensão, hermeticamente fechados.
Normalmente, o LIGO e o Virgo detectam três tipos de colisões: buraco negro com buraco negro, buraco negro com estrela de nêutrons e estrela de nêutrons com estrela de nêutrons. Cada uma delas mexe com o laser de uma maneira que já é familiar aos físicos envolvidos no projeto. Desta vez, porém, o objeto de 2,6 massas solares que colidiu com o buraco negro não era nem uma estrela de nêutrons nem um buraco negro. Na verdade, ninguém sabe o que ele era.
“Podemos dizer, com confiança, que nunca vimos nada do tipo”, disse à National Geographic a astrofísica Vicky Kalogera da Universidade Northwestern, que coordenou a equipe responsável pela análise da colisão de código GW190814 – publicada nesta semana no periódico Astrophysical Journal Letters.
A estranheza é simples de entender para nós, leigos: o objeto é leve demais para ser um buraco negro, mas pesado demais para ser uma estrela de nêutrons. “Se for uma estrela de nêutrons, é uma massa interessante para uma estrela de nêutrons. E se for um buraco negro, é uma massa interessante para um buraco negro”, diz Kalogera. “De qualquer forma, ele chamou nossa atenção logo de cara.”
Tanto um buraco negro quanto uma estrela de nêutrons se formam quando uma estrela muito maior que o Sol chega ao fim de sua vida. Sem combustível para queimar, elaentra em colapso graças à própria gravidade. Você pode se inteirar dos detalhes desse processo no nosso documentário sobre buracos negros, disponível no YouTube.
De maneira resumida, a parte da explicação que interessa para nós é a seguinte: as camadas externas da estrela desabam tão rapidamente em direção ao núcleo que batem nele e quicam de volta. São ejetadas no espaço aberto em uma violenta explosão. Lá no meio, sobra apenas um caroço. Se esse caroço tiver mais de 2,5 vezes a massa do Sol, ele não aguenta a própria gravidade e começa a encolher até se tornar um ponto sem dimensões – com tamanho nenhum.
Tal ponto é chamado pelos físicos de singularidade, e por concentrar toda a massa do núcleo da estrela em um espaço nulo, tem densidade infinita. Eis um buraco negro. A existência da singularidade, porém, é só uma previsão da Relatividade Geral: é impossível observá-la, porque a singularidade é tão intensa que aprisiona toda a luz que incide sobre ela (o buraco não é chamado de “negro” à toa).
Por ser algo muito diminuto, a singularidade também está sujeita às equações da física quântica, que são incompatíveis com as de Einstein. Ou seja: os físicos ainda não possuem um arcabouço teórico que realmente dê conta de compreender o que acontece dentro de um buraco negro. Eles são um bug no cosmos.
Com essa digressão, porém, nos distanciamos do ponto central, que é: se o caroço for um pouco mais leve que 2,5 massas solares, ele não colapsa completamente. Ele trava em um grau de compressão intermediário, e se torna uma estrela composta basicamente de nêutrons – que são as partículas sem carga elétrica presentes no núcleo dos átomos.
Os objetos do nosso dia a dia (inclusive nós mesmos) são feito de átomos inteiros, que têm nuvens de elétrons para separá-los dos núcleos uns dos outros. Já a estrela de nêutrons é feita basicamente com o material dos núcleos, sem nada para espaçá-los – o que a torna extremamente densa. Um pedaço de estrela de nêutrons do tamanho de uma caixa de fósforos pesa 2,1 · 1013 kg – o mesmo que 4 bilhões de elefantes africanos.
Se ficar provado que uma estrela de nêutrons com 2,6 massas solares existe, os físicos vão ficar preocupados, porque nada nas contas indica que a existência de tal estrutura é viável – com tanta massa, ela deveria colapsar e atingir o próximo estágio de compressão, o de buraco negro. Por isso, as apostas, no momento, são de que o objeto misterioso seja um buraco negro muito pequeno.
Mesmo que a identidade do objeto seja revelada, porém, ainda restará um mistério: a assimetria entre o engolido e o engolidor. A maior parte dos sistemas binários – que contêm dois objetos de grande porte disputando o centro das atenções gravitacionais, como as duas estrelas do planeta Tatooine de Star Wars – tem objetos de porte parecido. É muito incomum encontrar um buraco negro coexistindo com algo de massa quase dez vezes inferior à sua. Assim, investigar as origens dessa dupla que acaba de colidir será algo enriquecedor para nossa compreensão de fenômenos cósmicos raros.