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Ciência

O mistério dos buracos negros

Uma foto histórica os trouxe à luz. Mas eles ainda escondem os maiores segredos sobre o tempo e o espaço em sua escuridão.

por Bruno Vaiano | design Carol Malavolta | ilustração Estevan Silveira | edição Alexandre Versignassi Atualizado em 21 set 2022, 11h19 - Publicado em
21 Maio 2019
19h52

Reportagem originalmente publicada pela Super em 2019

Para escapar da atração da gravitacional da Terra e chegar ao espaço aberto, é preciso alcançar uma velocidade de 11,2 mil metros por segundo (m/s), o suficiente para ir de São Paulo a Londres em 14 minutos. Só para comparar: de avião, quase à velocidade do som, a viagem dura 12 horas.

Parece muito rápido – é muito rápido –, mas o foguete Atlas V modificado que tirou a sonda New Horizons do chão atingiu 81,5 mil m/s, o que dá sete vezes mais. E olha que a gravidade da Terra não é lá essas coisas. Se o objetivo for mais ambicioso – digamos, sair do Sistema Solar –, é preciso acelerar no mínimo até os 42 mil m/s. O que diminui o tempo hipotético da viagem até Londres para três minutos.

Velocidade de escape é um conceito antigo: sabemos como calculá-la desde a publicação dos Principia de Newton, em 1687, uma época em que nem se imaginava a existência de foguetes (e em que os físicos eram chamados de filósofos naturais). Outro conhecimento mais idoso do que se imagina é a velocidade da luz: o primeiro a estimá-la foi o dinamarquês Ole Rømer, em 1676. Ele chegou a 227 milhões de m/s, não tão longe assim do valor aceito atualmente, de 299 milhões. Ou seja: a luz é 3,6 mil vezes mais rápida que um foguete Atlas V envenenado. Ela chega a Londres em três centésimos de segundo (0,03).

Em 1783, um século depois, esses dois conceitos – velocidade de escape e velocidade da luz – mexeram com a imaginação de um reverendo britânico chamado John Michell, que ensinava geologia em Cambridge. Ele se perguntou: o que aconteceria se existisse uma estrela com tanta gravidade, mas tanta gravidade, que sua velocidade de escape fosse maior que a velocidade da luz? Essa aberração não apareceria no telescópio: seria completamente preta. Retinta. Engoliria o próprio brilho.

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Foi um palpite muito à frente do tempo dele. Hoje, sabemos que as tais “estrelas” existem, têm nome – buraco negro – e até um retrato, revelado em abril de 2019 pelos mais de 200 cientistas de 60 instituições envolvidos no projeto Event Horizon Telescope (em português, “Telescópio do Horizonte de Eventos”, ou só EHT). A foto é a mais significativa da astronomia até hoje – e não é só porque o dito-cujo engole toda a luz que se aproxima. É que a estranheza de um buraco negro supera exponencialmente o que Michell podia imaginar só com a física disponível na época de Newton. Lá dentro, o tempo deixa de existir. E as leis da física que conhecemos dão pau. Vamos mergulhar dentro de um buraco negro. Solte os cintos. Eles não farão a menor diferença.

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A Teoria da Relatividade Geral

O tecido do cosmos.
O tecido do cosmos. (Estevan Silveira/Superinteressante)

Michell baseou seu palpite sobre as “estrelas escuras” na teoria da gravitação disponível na época, que era a de Newton. Desde 1915, porém, existe uma teoria cujas equações explicam o fenômeno da gravidade com ainda mais precisão: a Relatividade Geral, de Einstein. É nela que se apoia todo o conhecimento atual sobre buracos negros. Para entender Einstein, o primeiro passo é conhecer os dois componentes básicos do Universo: o cenário que abriga as coisas e as coisas em si.

O cenário consiste nas três dimensões do espaço (para cima e para baixo, para frente e para trás, para a esquerda e para a direita) e em uma quarta dimensão: a do tempo. Essa dupla, o famoso tecido do espaço-tempo, é o alicerce do cosmos. A folha em branco onde tudo ocorre. Algo importante de se saber sobre o espaço-tempo é que você pode até optar por ficar parado no espaço – basta deitar no sofá –, mas não existe a opção de parar no tempo. Pelo menos não para nós: a única coisa capaz de fazer o tempo parar de vez é um buraco negro, e você já vai entender por quê.

Já as coisas em si são matéria e energia. Na verdade, elas são duas faces da mesma moeda: a quantidade de energia contida em um objeto é igual à sua massa multiplicada pela velocidade da luz ao quadrado. É a famosa fórmula E = mc2. Os 90 kg de matéria deste repórter, por exemplo, equivalem a 2,2 trilhões de quilowatts hora (KWh), ou o suficiente para abastecer o Brasil por quatro anos. A conversão de matéria em energia é o segredo do poder das bombas atômicas. Mas esse é outro assunto.

O importante para nós é que, como a matéria e a energia estão “apoiadas” no tecido espaço-tempo, elas são capazes de afundá-lo ligeiramente – da mesma maneira que a espuma de um travesseiro se comprime graças ao peso da sua cabeça quando você deita. Se houvesse bolinhas de gude na superfície do travesseiro, elas rolariam na direção da sua cabeça, porque sua cabeça é uma bola com mais massa que as bolinhas. A gravidade é exatamente isso: a curva gerada por algo com massa no tecido do espaço-tempo.

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(Fabrício Miranda/Superinteressante)

Imagine uma gota d’água caindo do céu. Einstein sacou que a gota cai porque está rolando encosta abaixo no vale que a Terra forma no tecido do espaço-tempo. Inclusive, nós sabemos exatamente quanto uma gota d’água acelera conforme cai: 10 m/s2. Em português claro, isso significa que, ignorando a resistência do ar, a gota fica 36 km/h mais rápida a cada segundo que se passa.

É bom reforçar que absolutamente nada no Universo está imune a essa curvatura (isto é, à gravidade). Nem um raio de luz. Se o espaço que o raio de luz está percorrendo está torto, então o raio de luz também fica torto. E ponto final. Outra consequência importante da Relatividade Geral é que, quando o espaço é distorcido, o tempo também é distorcido. Afinal, vamos repetir: eles estão entrelaçados. São a mesma coisa. A presença de um campo gravitacional próximo a algo faz o tempo passar mais devagar para esse algo.

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Como os buracos negros desafiam a Relatividade

Vamos, então, revisar as conclusões dos últimos parágrafos: 1. Quanto mais massiva é uma coisa, mais ela afunda o tecido do espaço-tempo. 2. Isso faz o tempo passar mais devagar para os objetos que estão próximos. 3. Nem a própria luz escapa da curvatura. Dá para concluir, então, que se um astro for capaz de gerar gravidade infinita, ele fará o tempo passar infinitamente devagar – isto é, fará o tempo parar. Além disso, a curvatura no espaço será tão íngreme que nem a luz vai escapar. A esse vertedouro de luz e tempo damos o nome de buraco negro.

O problema é gerar a tal gravidade infinita. O efeito da relatividade, no nosso cotidiano, é sutil. Mesmo o Sol, o gigante das nossas redondezas, faz o nosso relógio passar apenas algumas frações de segundo mais devagar. O quão massivo e compacto um astro precisaria ser para parar o tempo? Para se tornar um buraco negro? A resposta está nas próprias equações de Einstein: ele precisa ser infinitamente massivo e compacto. Ele precisa ser o que os físicos chamam de singularidade.

Em 1916, um físico austríaco chamado Karl Schwarzschild – que estava no front russo da 1ª Guerra Mundial fazendo cálculos de balística para os canhões de artilharia – leu o artigo de Einstein com as equações da relatividade geral e chegou a um resultado peculiar: se você espremer um objeto muito massivo em um espaço muito diminuto, chega uma hora que ele entra em colapso.

“Colapso é quando a gravidade da coisa se torna tão intensa que nem a própria coisa a suporta. Ela desaba sobre si mesma. É compactada até ocupar o menor espaço que algo pode ocupar: espaço nenhum. Uma singularidade é um ponto desprovido de dimensões. Ela não tem altura, largura, comprimento. Nada. Mede zero centímetro de diâmetro. Quando você espreme toda a matéria de uma estrela em uma singularidade, a densidade ali (isto é, a quantidade de alguma coisa em um dado espaço) se torna infinita. E aí o resultado é o bug no tecido do espaço-tempo descrito lá em cima. Um buraco negro.

Há um problema aí: singularidades são todas do mesmo tamanho –  que é tamanho nenhum. Mas elas não possuem todas a mesma massa. Um buraco negro que resultasse do colapso gravitacional de um elefante teria só cinco toneladas, um buraco negro feito com o Sol teria um número de toneladas com 27 zeros. Como fazer para diferenciá-los? Isso depende de algo chamado horizonte de eventos.

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Horizonte de eventos é o perímetro de segurança em torno da singularidade. Se você o atravessa, não escapa mais. Dali em diante, a velocidade de escape é maior que a da luz. O horizonte de eventos, para quem vê de fora (como nós), parece ser uma esfera preta – uma parede entre o lado de cá, onde você está em segurança, e o lado de lá, do qual você jamais poderia sair. Isso é porque todos os raios que atravessam esse perímetro inevitavelmente são arrastados na direção da singularidade, em vez de alcançar seus olhos. E aí você não vê nada. Ninguém jamais saberá o que há além do horizonte de eventos. Se alguém entrasse, não poderia nem mandar um WhatsApp para contar a história: 3G é radiação eletromagnética, radiação eletromagnética é luz, luz é engolida.

Quanto mais massa tem um buraco negro, mais atração gravitacional ele exerce ao seu redor e maior é o seu horizonte de eventos. O buraco negro de um elefante teria um horizonte de eventos microscópico. Já um buraco negro feito com o Sol seria rodeado por um perímetro negro de seis quilômetros de diâmetro. Medindo o horizonte de eventos, você mede também a massa do buraco negro: eles são proporcionais.

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(Carol Malavolta/Superinteressante)
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Apesar da escuridão aparente da perspectiva de quem vê de fora, o horizonte de eventos é uma linha tão imaginária quanto o Equador. Quando você passa dele, tempo e espaço continuam existindo: o problema é só que eles se tornaram um tobogã íngreme, que leva inevitavelmente à singularidade que jaz no centro da bola.

Quem penetrasse no horizonte de um buraco negro pequeno seria imediatamente esticado e então esquartejado pela gravidade, pois a singularidade está logo atrás da cortina do horizonte de eventos. A diferença entre a atração gravitacional a que estariam submetidos o pé e a cabeça do astronauta azarado que caísse lá dentro seria tão imensa que ele se fragmentaria até virar uma fila indiana de átomos. O nome disso é espaguetificação.

Mas quem penetrasse no horizonte de eventos de um buraco negro com milhões ou bilhões de vezes a massa do Sol precisaria viajar um longo tempo em condições razoavelmente normais até alcançar a singularidade e morrer de forma lendária. Seria como estar nadando em um rio e sem querer pegar  uma corrente que arrasta você para uma cachoeira. Você pode até não saber que está nesse fluxo letal – mas uma hora ele fica tão rápido que você se dá conta de que é impossível escapar.

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Singularidades e o horizonte de eventos

Schwarzschild sabia exatamente o quanto você precisava comprimir um objeto para ele entrar em colapso e virar um buraco negro. É o chamado raio de Schwarzschild. Para a Terra, esse raio é do tamanho de um amendoim. Para o Sol, dá 3 km. É um grau de compactação absurdo – por isso, nem a Terra, nem o Sol (nem nenhum elefante) se tornarão buracos negros um dia. Mas há um fenômeno na natureza capaz de alcançar tal grau: a morte de uma estrela com mais ou menos 20 vezes a massa do Sol.

Estrelas são bolas de gás hidrogênio, e deveriam, em princípio, desabar sob a própria gravidade. Elas só não desabam porque o calor e a pressão lá no miolo são tão intensos que os átomos de hidrogênio pedem arrego: de quatro em quatro, fundem-se para formar átomos mais pesados, de hélio (que é o próximo elemento da tabela periódica, na ordem). Essa fusão libera energia. E põe energia nisso: o Sol, que nem é tão grande assim, funde 620 milhões de toneladas de hidrogênio por segundo. Essa energia irradia de dentro para fora e compensa a atração gravitacional. Assim, a estrela se mantém viva, quente e redonda.

Quando acaba o estoque de hidrogênio, a estrela começa a morrer. Estrelas bem pequenas costumam ir dessa para uma melhor de maneira razoavelmente pacífica, sem muito alarde. Já estrelas muito grandes não desistem: começam  a fundir hélio. E, quando esgotam o hélio, fundem carbono. Elas vão subindo na tabela periódica, usando combustíveis cada vez mais pesados, sempre na esperança de alcançar novamente a estabilidade. Até que chega o ferro. Porque vale tudo, só não vale fundir ferro com ferro.

É que a fusão de átomos de ferro não libera energia – ela consome energia. E, se a estrela não tem energia para liberar de dentro para fora, a gravidade ganha o cabo de guerra. A bola desaba sobre si própria, feito um prédio implodido. O nome desse fenômeno é supernova.

Durante uma supernova, as camadas mais externas da estrela são ejetadas a uma fração razoável da velocidade da luz. Sobra só o caroço de ferro. O núcleo da estrela morta. E, se esse núcleo pesar mais do que duas vezes e meia a massa do Sol, nada pode contê-lo: ele vai afundar sobre si mesmo. E dar origem a uma singularidade.

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Assim é o nascimento de um buraco negro estelar – que é, como o próprio nome diz, um estágio natural do ciclo de vida de uma estrela gigante. Buracos negros estelares são, para os padrões cósmicos, bem corriqueiros. Só a Via Láctea tem mais ou menos 100 milhões. E esses monstrinhos nem são tão imensos assim: Cygnus X-1, o primeiro a ser descoberto, em 1964, tem 14,8 massas solares.

É grande? É grande, inegável. O problema é que há outros buracos negros, os supermassivos, que são inconcebivelmente maiores. E muito mais problemáticos. É o caso do M87*, o da foto do EHT, que tem 6,5 bilhões de vezes a massa do Sol. Isso é tão grande que o horizonte de eventos do dito-cujo – o perímetro de não retorno – é do tamanho da órbita de Saturno. Esses são os buracos negros que pairam feito âncoras no centro da maioria das galáxias. Ninguém sabe, aliás, como deu tempo de eles ficarem tão grandes – mesmo considerando os 13,8 bilhões de anos de idade do Universo.

“Esse é um problema em aberto”, diz Lia Medeiros, astrofísica da Universidade do Arizona e colaboradora do EHT. “Porque há um limite para o quanto um buraco negro pode ‘comer’. Quanto mais gás e poeira se acumulam em torno dele, mais atrito há e mais luz ele emite. Só que os fótons, as partículas que compõem a luz, exercem uma pressão. Chega uma hora que a luz é tão intensa que essa pressão empurra o disco para longe do buraco negro.” Ou seja: há um mecanismo que põe o buraco negro de dieta.

As soluções propostas para esse impasse vão das mais simples (eles seriam sempre produto da fusão de diversos buracos negros menores) às mais esotéricas (eles seriam resquícios de um Universo que existiu antes do nosso Big Bang), passando por anomalias (como uma nuvem de hidrogênio tão grande que colapsa direto, sem chegar a ser uma estrela). A resposta mais honesta, portanto, é que ninguém sabe. Só sabemos mesmo que eles estão lá, e que temos uma foto de um. Vamos, então, explicar a foto. 

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Como o EHT fez a foto do buraco negro M87

O buraco negro da foto feita pelo projeto Event Horizon Telescope (EHT) fica no centro da galáxia M87, a 53,4 milhões de anos-luz de distância, no canto superior direito da ilustração. A “cauda” à direita é o jato de partículas ejetado pelo turbilhão do buraco negro. O buraco negro da Via Láctea, Sagitário A*, também será fotografado. A Via Láctea está em primeiro plano.
O buraco negro da foto feita pelo projeto Event Horizon Telescope (EHT) fica no centro da galáxia M87, a 53,4 milhões de anos-luz de distância, no canto superior direito da ilustração. A “cauda” à direita é o jato de partículas ejetado pelo turbilhão do buraco negro. O buraco negro da Via Láctea, Sagitário A*, também será fotografado. A Via Láctea está em primeiro plano. (Estevan Silveira/Superinteressante)

O projeto Event Horizon Telescope (EHT) tem o objetivo de fotografar dois buracos negros supermassivos: o que fica no centro da galáxia M87, a 53 milhões de anos-luz de nós, e o que fica no centro da nossa própria galáxia, a Via Láctea. O nosso supermassivo se chama Sagitário A* e fica mil vezes mais perto, a 25,6 mil anos-luz. Mesmo assim, foi a foto do M87 que saiu primeiro – logo vamos explicar por quê.

Sagitário A* tem 4,3 milhões de vezes a massa do Sol. Já o buraco negro de M87 é mil vezes mais massivo, com 6,5 bilhões de vezes a massa do Sol. Você deve se lembrar que o tamanho do horizonte de eventos é proporcional à massa. Ou seja: a esfera que envolve M87 também é mil vezes maior.  Acontece que, como ele também está mil vezes mais longe, da nossa perspectiva os dois parecem ter o mesmo tamanho (é a mesma ilusão de ótica que te permite cobrir a Lua no céu com uma moeda de R$ 1). E esse tamanho é pequeno: tanto Sagitário A* quanto M87, vistos daqui, têm o tamanho de um CD na superfície da Lua. 

Fotografar um CD na superfície da Lua já é difícil. Um CD invisível, nem se fala. É que não dá para de fato fotografar um buraco negro: ele é uma entidade desprovida de tamanho, cercado por um perímetro que não deixa a luz escapar. Dureza. O que nós vemos é o disco de acreção. Aquele anel de gás e poeira em torno do buraco negro que, de tanto atrito, emite radiação. Ou seja: só dá para fotografar a moldura do buraco negro. O buraco em si fica escondido na sombra do centro. A sombra, ao contrário do que geralmente se diz, não é o horizonte de eventos em si: como já dissemos, ele é uma linha imaginária, diferente da sombra, que é o preto que você vê de fato.

Para fotografar algo tão distante, é preciso um telescópio bem grande. Sem problema: o EHT tem o maior que dá para fazer. Ele é do tamanho da Terra. Como não dá para de fato construir um telescópio com as mesmas dimensões do planeta, o jeito foi acionar oito telescópios simultaneamente, localizados em vários países [veja o mapa abaixo], e juntar os sinais recebidos por eles em uma coisa só. Para isso, cada equipamento passou 12 horas acionado: é o tempo que a Terra demora para dar meia-volta e todos possam captar seu quinhão de luz para compor a imagem final.

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(Carol Malavolta/Superinteressante)

Quando falamos em telescópio, a primeira imagem que vem à cabeça é de uma luneta gigante, em que dá para enfiar o olho. Mas os telescópios do EHT, na verdade, têm a aparência de antenas parabólicas. É que eles são radiotelescópios, isto é: telescópios feitos para captar ondas de rádio. Aqui, faz-se necessária uma breve pausa: a luz que nossos olhos veem consiste em ondas eletromagnéticas que têm entre 0,004 e 0,007 mm de comprimento. Mas existem ondas eletromagnéticas de vários outros comprimentos, que ganham muitos nomes: rádio, micro-ondas, raios X etc. Todos eles também são luz e podem ser usados para fazer observações astronômicas.

O comprimento de onda utilizado pelo EHT – 1,3 milímetro  – foi escolhido por dois motivos. O primeiro é que a atmosfera da Terra é quase transparente a esse comprimento. O segundo é que ele é ideal para permitir que a sombra preta de fato apareça na foto. Se a imagem fosse feita em outros comprimentos, o monstro ficaria ofuscado pela radiação emitida pelo disco de acreção.

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A foto do M87 saiu primeiro essencialmente porque ele, por ser mil vezes maior, também é um buraco negro mil vezes mais sereno que o Sagitário A*. O gás e a poeira de seu disco de acreção demoram muito mais tempo para completar uma volta em torno dele – então, quando há uma turbulência, ela também ocorre em câmera lenta. “As turbulências podem causar picos de cem vezes mais raios X que o normal. Isso se chama flare”, explica Lia Medeiros. “A gente já viu flares no Sagitário A* acontecerem com um intervalo de minutos, e demora 12 horas para coletar dados suficientes para fazer a imagem.” Em resumo: nosso buraco negro não para quieto para a foto.

Fotografar os buracos negros não é importante só pela foto em si, mas porque a foto nos permite comprovar as previsões da relatividade geral. No EHT, físicos como a Lia comparam simulações de computador baseadas nas equações de Einstein com o buraco negro de verdade. Assim, testam o poder de predição da ideia que Albert teve há um século. E até agora, apesar de alguns empecilhos técnicos, ele continua acertando. Moral da história? Nós nunca conhecemos tão bem os buracos negros por fora. A questão é: e por dentro?

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A união utópica entre Einstein e a física quântica

Quando um físico está fazendo cálculos e algum resultado dá um número infinito, geralmente é sinal de que há um erro nas contas – e não de que algo infinito de fato existe no mundo real. Por exemplo: imagine um balanço de parquinho. Ele é um pêndulo. Isso significa que, mesmo que você empurre a criança sempre com a mesma força, ela necessariamente vai atingir uma altura maior a cada oscilação. Apesar disso, sabemos por experiência própria que as oscilações não podem aumentar para sempre. Há forças que dissipam energia (como o atrito da corrente do balanço e a resistência do ar) e impedem que o pequeno saia voando.

Descrever um buraco negro como um ponto de densidade infinita é o mesmo que dizer que a oscilação da criança no balanço aumentaria indefinidamente: não está errado – mas talvez esteja incompleto, pois não leva em consideração variáveis que evitariam a aparição de um infinito. “A singularidade está presente nas soluções das equações de Einstein que descrevem buracos negros”, explica Cecilia Chirenti, da UFABC. “Mas o entendimento usual é de que precisaríamos de uma outra teoria, com outras equações, para descrever o que realmente está acontecendo lá dentro.”

Precisamos, mais especificamente, de uma teoria que seja bem-sucedida em explicar fenômenos na escala microscópica – afinal, a singularidade, apesar de tão massiva, tem o menor tamanho que qualquer coisa pode ter. Felizmente, a teoria existe. É a teoria quântica de campos. Só tem um problema: as equações dela são incompatíveis com as da relatividade geral, que explicam a gravidade. Quando são usadas juntas, nas palavras do físico Brian Greene, “elas começam a trepidar e fumegar, como um carro velho”.

Na maior parte do tempo, essa incompatibilidade não dói nada: se os físicos estão estudando um objeto grande, como uma estrela, eles aplicam a relatividade geral. Se o objeto de estudo for menor que um átomo, usam a teoria quântica de campos. O problema aparece nas raras situações em que há algo com massa suficiente para ser assunto da relatividade geral – mas tão pequeno que pertence ao mundo quântico.

É justamente o caso dos buracos negros. Há quem aposte que a sonhada integração entre teorias fornecerá ao estudo dos buracos negros algo análogo ao que o atrito das correntes e resistência do ar dão à oscilação do balanço: limites. As singularidades, tão incômodas, podem dar lugar a algo mais compreensível.

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Um dos avanços mais promissores na busca pela gravidade quântica é a Teoria de Cordas. Grosso modo, ela consiste em descrever cada partícula (fóton, elétron, neutrino etc.) como um minúsculo barbante esticado. As particularidades da vibração de cada barbante corresponderiam às características exibidas por diferentes partículas. A Teoria de Cordas ainda é um trabalho em andamento, cheia de pontas soltas. Mas já tem a virtude essencial: unir satisfatoriamente a física quântica com a gravidade de Einstein – o que a torna uma candidata a Teoria de Tudo. O problema é que, para funcionar, a Teoria de Cordas exige que, na escala microscópica, existam mais dimensões. Dependendo da vertente que você siga, há dez, 11 ou até 26 em vez das quatro familiares.

Como seres tridimensionais, não somos capazes de imaginar a aparência de um objeto multidimensional. Mas os espaços de Calabi-Yau – monstrinhos geométricos como o que você vê representado artisticamente aqui abaixo – são uma tentativa de fazê-lo na superfície do papel. Com ajuda dessa matemática avançada, a Teoria de Cordas é capaz de descrever singularidade como um objeto minúsculo (em centímetros, são 33 zeros depois da vírgula) – o que é um avanço em relação ao tamanho infinitamente pequeno previsto pela relatividade.

Este é um espaço de Calabi-Yau: uma aberração de 11 dimensões permitida pela geometria da Teoria de Cordas. Pode ser que haja um desses no lugar da singularidade.
Este é um espaço de Calabi-Yau: uma aberração de 11 dimensões permitida pela geometria da Teoria de Cordas. Pode ser que haja um desses no lugar da singularidade. (Estevan Silveira/Superinteressante)

Já deu para sacar, então, que buracos negros são mais do que bizarrices astronômicas: a tentativa de descrevê-los corretamente leva a física teórica a extremos que só recentemente começamos a desbravar. Vamos dar um aperitivo.

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O paradoxo da informação

O Universo, você já sabe, contém matéria e energia, apoiados no espaço-tempo. Mas esses são os tijolos e o terreno. Faltam as instruções para pôr o prédio de pé. Por exemplo: grafite, carvão e diamante são todos feitos dos mesmos átomos de carbono. O que os torna diferentes é a maneira como estão encaixados.

Se você tirar tudo que há de palpável no Universo – isto é, o prédio –, o que sobra é o desenho na prancheta do arquiteto. As instruções de encaixe. Os físicos chamam esse “quinto elemento” de informação. E a quantificam em bits, como a informação de um computador.

Cada partícula contém vários bits de informação – sua massa, sua carga elétrica, seu spin etc. Se você soubesse todos os dados sobre todas as partículas do cosmos simultaneamente, você poderia usá-los para determinar como estará o cosmos no próximo instante e como ele estava no momento anterior (isto é, ler o passado e o futuro). Isso é uma lei da mecânica quântica: a informação nunca se perde.

A existência de buracos negros, porém, é uma provocação à persistência da informação. Diz-se, em referência a um teorema do físico John Wheeler, que buracos negros não têm cabelo – isto é, carecem de qualquer detalhe que permita diferenciá-los de outros buracos negros. O problema é que conservação da informação e essa calvície monótona batem de frente uma com a outra: se um buraco negro feito de abacaxis e um feito de elefantes são idênticos, torna-se impossível saber qual foi fabricado com o quê. Nesse sentido, a informação se perdeu.

Foi aqui (o ano é 1972) que Jacob Bekenstein, pupilo de Wheeler, propôs um experimento mental simples: o que aconteceria se um único fóton – isto é, uma única partícula de luz –, contendo um mísero bit de informação, caísse dentro de um buraco negro? Fácil: o fóton contém energia. E energia e massa são a mesma coisa, pois E=mc2. Assim, a massa do buraco negro aumentaria um pouquinho. Quando a massa do buraco negro aumenta, a área do horizonte de eventos também aumenta. De fato, as contas de Bekenstein revelaram que cada bit engolido pelo buraco negro faz o perímetro que o circunda aumentar 2,6 · 10-70 m2 – ou seja, um número com 70 zeros depois da vírgula. É pouco, mas é algo. Bingo: a informação está guardada. Dá até para deduzir o número exato de bits; basta saber a área do horizonte.

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Bekenstein salvou mestre Wheeler. Mas é agora que o britânico Stephen Hawking adiciona o mundo microscópico à disputa. E põe tudo abaixo. Para entender como, façamos uma breve digressão. O domínio quântico é incerto e sujeito a flutuações. Mesmo o que aparenta ser vácuo absoluto, se for observado com um zoom de várias casas decimais após a vírgula, está borbulhando. Graças a flutuações aleatórias, pares de partícula e antipartícula (que são opostos complementares, como preto e branco) surgem e se aniquilam instantaneamente o tempo todo, até debaixo do seu nariz. Sim, é impossível perceber. Até por isso essas partículas são chamadas de “virtuais”. Não chegam a fazer parte da realidade. O que eles não podem é sair do estado virtual e passar a existir. Pois existir demanda energia, e energia não pode ser criada do nada.

Hawking notou que, quando um par virtual de partícula e antipartícula brota às margens do horizonte de eventos de um buraco negro, uma delas pode cair, e a outra, escapar ilesa. A que ficou de fora é forçada a abandonar o estado virtual e passar a existir. Como coisas que existem obrigatoriamente contêm energia, a partícula recém-nascida extrai do buraco negro a energia necessária para tornar-se real. Quando o buraco negro perde esse bocadinho de energia, ele perde também massa (de novo: E=mc2). E você vê a partícula ladra fugir. Não na forma de partícula, propriamente, mas na de um calorzinho tênue exalado pelo buraco negro: a radiação Hawking. A conclusão é que os buracos negros evaporam até desaparecer. E, ao evaporar, levam junto a informação.

Agora sim, temos um paradoxo. A radiação Hawking é idêntica para todo buraco negro. Assim, ignora solenemente a lei de conservação da informação quântica. E o problema, insistimos, é que a informação quântica não pode sumir. Poucos problemas na física contemporânea geraram tantos palpites e tão poucas certezas quanto esse paradoxo. Há quem diga que a informação desaparece de vez (o que foi a aposta do próprio Hawking por décadas, embora ele tenha mudado de ideia). Outra possibilidade, um pouco mais insólita, é que a informação, quando a singularidade colapsa, seja escoada em outro universo. Um universo-bebê, que foi criado pelo próprio buraco negro. Mas quem explica as consequências dessa viagem não é nenhum físico citado até aqui. É um biólogo do século 19: Charles Darwin.

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Seleção natural cósmica

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Na década de 1990, Lee Smolin, do Instituto Perimeter, no Canadá, debruçou-se sobre a semelhança entre as singularidades no interior dos buracos negros e o Big Bang. Se, de acordo com o modelo cosmológico mais popular entre os astrofísicos, o Universo se expandiu a partir de um ponto infinitamente pequeno – isto é, de uma singularidade –, então por que o Big Bang não poderia ser o avesso de um buraco negro?

Matematicamente, a ideia se sustenta. A singularidade rasga o tecido do espaço-tempo e forma um Big Bang novo, fora deste Universo. A informação que o buraco negro engoliu no nosso Universo é escoada no universo que nasce do outro lado.

Agora é bom explicar onde queremos chegar com isso. É o seguinte: ninguém sabe por que alguns parâmetros do nosso Universo são do jeito que são. Por que a massa de um elétron é 9,1 · 10-31? Se essa massa fosse diferente, talvez não existissem átomos. E aí não haveria estrelas. Nem a Terra. Nem nós. Mude de leve a regulagem de um único parafuso e o cosmos vem abaixo.

Isso levou Smolin à seguinte sacada: um universo cujos parâmetros (como a massa do elétron) o tornassem  mais propício a formar buracos negros daria à luz mais universos-filhos. Afinal, nessa concepção, todo buraco negro, do “outro lado”, gera um Big Bang.

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Esses universos-filhos teriam, por uma mera questão estatística, características ligeiramente diferentes das de seus pais. Essas variações  nos parâmetros de cada partícula – como a já citada massa do elétron, por exemplo – corresponderiam às mutações genéticas na biologia. Alguns universos-filhos nasceriam com parâmetros mais propícios à formação de buracos negros, outros, não. É seleção natural, só que em escala cósmica. A ironia da coisa é que universos bons em produzir buracos negros, que são os que mais se reproduzem, são justamente os bons em produzir estrelas – e abrigar vida.

Outra ironia é que os mesmos buracos negros que criam novos universos  podem, no fim, sacrificá-los. Um dia, daqui uma quantidade inimaginável de anos, quando tudo que já existiu tiver sido tragado por buracos negros, eles terão todo o tempo do mundo para emanar radiação Hawking. Até evaporar.

Ao final da evaporação, restará apenas um mar difuso de radiação, perfeitamente homogêneo. Nessa altura, não haverá mais diferença nenhuma entre as partículas que costumavam compor animais ou pedras, planetas ou estrelas. Todas serão energia pura, e essa energia estará embaralhada de maneira irreversível: da mesma forma que um ovo quebrado não se reconstrói sozinho, o Universo não é capaz de reorganizar o que foi desorganizado.

À radiação, só restará resfriar até alcançar o zero absoluto. É a morte térmica do Universo. Os buracos negros, então, seriam o fim do tempo em um cosmos – mas também o começo de incontáveis outros tempos, em outro lugar, além da imaginação.

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