A arma química que virou medicamento
Como o gás mostarda deu origem às quimioterapias. E o que isso tem a dizer sobre o lado meio cheio do copo da humanidade.
Primeira Guerra Mundial.
Às 17h do dia 22 de abril de 1915, uma nuvem amarelo-esverdeada cobriu as trincheiras dos Aliados nos arredores de Ypres, uma cidade na Bélgica. Eram 160 toneladas de gás cloro, lançadas das trincheiras alemãs. Esse gás transforma a água da mucosa dos pulmões em ácido hidroclorídrico. A intoxicação gera dores insuportáveis, tirando os soldados de combate, e pode matar. Foi o primeiro uso de arma química na história.
O uso de gás cloro, então, se tornou comum nos dois lados do front. Tão comum que máscaras de gás passaram a fazer parte do uniforme dos soldados. Como elas eram eficazes, esse gás deixou de representar uma ameaça tão grave (ao menos quando as máscaras funcionavam). Mas isso só até os alemães estrearem outra arma, em 1917: o gás mostarda.
O gás mostarda não precisa ser inalado para causar problemas. Ele queima a pele, causando bolhas enormes e cheias de pus, que podem causar infecções fatais. E não ataca só a pele exposta: penetra nas fibras das roupas.
Os dois lados também adotaram pesadamente o gás mostarda, e a Primeira Guerra virou um festival de armas químicas. Em 1918, ano do armistício, cilindros de gases tóxicos representavam 35% da munição da Alemanha e da França, 25% da britânica e 20% da americana.
Em 1925, os países que tinham usado armas químicas assinaram o Protocolo de Genebra, que estabeleceu o uso delas como crime de guerra. Mesmo assim, boa parte dos envolvidos mantiveram estoques do gás mostarda, além de financiar pesquisas em busca de antídotos.
Uma dessas pesquisas, na Universidade de Yale, focou num efeito específico do gás mostarda: a redução no número de glóbulos brancos, que tornava as infecções mais severas.
“Como nas leucemias e em outros casos de linfomas ocorre uma multiplicação desenfreada das células brancas, veio a ideia de empregar um derivado do gás, a mostarda nitrogenada, como tentativa de tratamento dessas doenças (…). Corria o ano de 1942, estava inaugurada a era da quimioterapia do câncer”, escreve o oncologista Drauzio Varella em seu novo livro, O Exercício da Incerteza (que traz esta e outras grandes histórias da medicina; altamente recomendável).
“32 anos mais tarde, quando fui trabalhar no Hospital do Câncer, já dispúnhamos de diversas classes de medicamentos quimioterápicos, com farmacologia razoavelmente estudada”, completa Drauzio.
É isso. Um composto empregado pela primeira vez como agente assassino acabaria, por linhas tortas, dando origem a um tratamento salvador de vidas. Uma amostra do que as melhores mentes entre nós são capazes de fazer pelo progresso da humanidade. Cada uma das edições da Super é dedicada a elas.