Cupins são baratas? Sim, e isso não é novidade.
Especula-se desde 1934 que os cupins evoluíram como um ramo na árvore filogenética das baratas. Em 2007, a confirmação gerou um rebuliço entre os biólogos.
O texto abaixo – que começa kafkiano – é assinado por Tiago F. Carrijo, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), e Joice Constantini, doutora pela Universidade de São Paulo (USP). Ambos são coordenadores do Wikitermes, site de divulgação científica sobre cupins – onde o texto foi originalmente publicado. Acesse o site ou siga as redes sociais (Facebook e Instagram).
Quando o cupim, no dia 15 de fevereiro de 2018, despertou de sonhos intranquilos, encontrou-se em seu ninho metamorfoseado num inseto monstruoso.
Nessa data, três anos atrás, é como se todos os cupins do mundo tivessem, da noite para o dia, se transformados em baratas. Foi quando a Sociedade Norte-Americana de Entomologia atualizou sua lista de nomes populares de insetos e, para surpresa de muita gente, os cupins foram incluídos na ordem Blattaria. Desde então, de tempos em tempos circula a notícia de que os cupins, a partir de 2018, passaram a ser oficialmente baratas.
Para começo de conversa: sim, cupins são um tipo de barata. Mas isso não é nenhuma novidade e não foi determinado de um dia para o outro. E também não é algo que um especialista ou associação possam decidir sozinhos. O conhecimento científico é construído gradualmente, por meio de discussões em vários lugares do mundo, que duram anos.
As evidências do parentesco entre cupins e baratas já entraram no radar há bastante tempo. Ainda em 1934, o zoólogo Lemuel Roscoe Cleveland e colaboradores levantaram a hipótese: “São enormes as evidências de que as baratas do gênero Cryptocercus são os ancestrais dos cupins, ou são os parentes mais próximos desses ancestrais (que hoje são extintos)”.
Três grupos de insetos aparentemente muito diferentes – os louva-deuses, baratas e cupins – há muito tempo são agrupados pelos cientistas em um grupo só chamado Dictyoptera. Nas últimas décadas, raramente houve discordância quanto a eles formarem um grupo natural – ou seja, um grupo de organismos que compartilham um ancestral comum. Até porque esses três tipos de insetos compartilham uma característica bem específica: colocam seus ovos em cápsulas de secreção chamadas ootecas. (Atualmente, vale dizer, apenas uma linhagem de cupins ainda faz isso; outras abandonaram a prática.)
Acontece que as relações dentro do grupo Dictyoptera (ou seja, entre cupins, louva-deuses e baratas) nunca tinham sido uma unanimidade. Pelo contrário, várias hipóteses sobre a natureza exata do parentesco entre eles foram propostas ao longo dos anos – algumas mais aceitas, outras menos.
Foi há 14 anos que ocorreu o mais acalorado debate sobre se cupins são ou não baratas. Em 2007, o entomólogo Daegan Inward e colaboradores publicaram um artigo intitulado “Morte de uma Ordem: uma filogenia molecular confirma que cupins são baratas eussociais”.
Esse trabalho utilizou o código genético e a anatomia para construir uma filogenia (uma árvore de parentesco) do grupo Dictyoptera. E eles chegaram em uma hipótese robusta de que os cupins seriam um grupo interno de baratas (entenda na árvore abaixo).
Essa árvore começa no tempo que viveu o ancestral comum de Dictyoptera (na bolinha 1). Com o passar do tempo, indo da esquerda para a direita no gráfico, o primeiro evento evolutivo foi uma divergência entre dois grupos. Um deles deu origem aos louva-deus, enquanto o outro ramo deu origem ao ancestral comum de todas as baratas e cupins (bolinha 2). Considerando todos os descendentes desse ancestral, é bem provável que ele fosse muito parecido com uma barata atual. Mas essa espécie não existe mais.
Esse ancestral 2 deu origem à várias linhagens de baratas diferentes – existem mais de 6 mil espécies no mundo, e elas têm todo tipo de tamanho e aparência. Muitas delas tem cores vivas e sequer seriam identificadas como baratas por leigos. O problema é que o ancestral 2 também deu origem a todos os cupins. E o grupo das baratas (ou seja, a ordem Blattaria) deve incluir todos os descendentes do ancestral número 2.
Agora repare na bolinha número 3. Ela representa o ancestral comum compartilhado entre os cupins e o grupo “Baratas C”. Esse resultado, que os pesquisadores alcançaram no trabalho de 2007 usando técnicas modernas, é basicamente o mesmo que o Cleveland havia alcançado em 1934.
Mesmo após esse artigo, ainda houve quem tentasse salvar a ordem original dos cupins, chamada Isoptera. No mesmo ano de 2017, pesquisadores de todo o mundo assinaram o artigo “Salvem Isoptera” (Lo et al., 2007) – e que valeu uma réplica (Eggleton et al. 2007). Mas não teve jeito: vários outros trabalhos foram publicados nos últimos 10 anos, sempre confirmando que cupins são um grupo dentro das baratas.
O único desacordo ainda existente se refere nomenclatura taxonômica do grupo dos cupins. Algumas classificações consideram que eles pertencem à infraordem Isoptera; outras os colocam como uma epifamília Termitoidae. Denominações taxonômicas à parte, não há discordância em relação ao posicionamento de cupins dentro da ordem das baratas (Blattodea ou Blattaria).
Ou seja: esse debate já está resolvido há quase 15 anos entre os pesquisadores que trabalham com cupins.
Sendo assim, por que a Sociedade Norte-Americana de Entomologia só divulgou essa informação para um público mais amplo 2018? A questão é que essa sociedade não lista apenas os nomes científicos, em latim, de cada espécie. Eles possuem um banco de dados com nomes comuns (ou nomes populares) dos animais. E foi esse banco de dados que finalmente foi atualizado para incluir os cupins dentro da ordem das baratas.
Resumindo: com essas nem tão novas descobertas, os biólogos possuem evidências suficientes para afirmar que os cupins são um grupo de baratas. Mas os cupins também continuam sendo cupins, pois evoluíram um conjunto de características únicas (como o comportamento social) que nos permite diferenciá-los das demais baratas.
Da mesma forma, humanos não deixaram de ser humanos quando descobrimos que somos primatas e compartilhamos um ancestral comum com os chimpanzés. Nós e as outras espécies extintas do gênero Homo temos peculiaridades, como a postura ereta ou, no caso específico do sapiens, a linguagem – e isso não muda por causa da nossa posição na árvore da vida ou nosso grau de parentesco evolutivo com quaisquer outras espécies.
Na prática, o que mudou depois do artigo de 2007 foi a nossa compreensão da maneira como esses grupos de insetos “aparentados” evoluíram. E, agora, os termitólogos (estudiosos dos cupins) podem falar que estudam as baratas mais legais.
Este é o décimo post do blog Bzzzzz, em que pesquisadores membros do comitê científico da Associação Brasileira de Estudos das Abelhas (ABELHA) e outros cientistas colaboradores vão comentar a vida, os hábitos e a importância econômica de diversos insetos – além de nos atualizar sobre as mais recentes descobertas no campo desses pequenos artrópodes. Até a próxima!