Na Idade Média, a ciência já sabia: infertilidade é unissex
Machismo à parte, médicos perceberam que a falta de bebês podia ser um problema masculino – e sugeriam remédios bizarros para o problema
Certos problemas congênitos não combinam com a grandeza de um rei da França. A hipospádia com certeza é um deles. Henrique II, que mandou no país dos queijos e vinhos entre 1547 e 1559, sofria dessa disfunção de nome misterioso, que em bom português ocorre quando a saída da uretra fica na base do pênis (ou em qualquer outra posição incômoda que não seja o tradicional topo da glande – há variações).
O problema não torna ninguém infértil, mas “acertar o alvo” ao ejacular fica mais difícil por questões anatômicas óbvias. Para piorar a situação, a esposa de Henrique II, Catarina de Médici, era sobrinha do Papa Clemente VII, e não tinha malícia suficiente para perceber o que exatamente estava dando errado. Resultado? Após 11 anos de casamento, os dois ainda não tinham um rebento – uma exigência básica em uma família real, em que é obrigatório parir o próximo déspota da linha sucessória.
Como era de se esperar, ninguém pensou em culpar o monarca. Foi sua esposa – que na verdade não tinha nenhum problema de saúde – que pagou o pato, e foi submetida a uma interminável e desagradável série de tratamentos médicos e alquímicos (!) da época.
O jogo só virou graças a Diane de Poitiers, dama de honra de 19 anos que percebeu que a suposta infertilidade era culpa do macho do casal. Não foi uma sacada genial – só experiência prática. Ela ficou grávida de Henrique II após ter um caso extraconjugal com o rei, situação que a pôs, para usar um eufemismo, em uma posição privilegiada para fazer o diagnóstico.
Primeiro a cortesã avisou o médico Jean Fernel, que confirmou a hipospádia. Depois, resolveu treinar Catarina de Médici para lidar com o problema debaixo dos lençóis. Deu certo, e o casal tirou o atraso: foram 10 filhos em 12 anos (quem quiser ler a história completa pode acessar este artigo científico).
A história parece um típico exemplo de machismo medieval. Afinal, na época, infertilidade feminina era um ótimo motivo para pedir a anulação do casamento, não só na corte mas em qualquer classe social.
Novos estudos sugerem, porém, que essa virada repentina no jogo – em que o médico dá razão à mulher em vez de acobertar o homem – pode ter sido mais comum do que parece. Catherine Rider, especialista em Idade Média da Universidade de Exeter, na Inglaterra, publicou um artigo científico em que revisa a literatura médica sobre infertilidade da época. E revela diversos casos em que o homem é considerado um possível culpado pela escassez de bebês.
Na Trotula, série de textos sobre ginecologia e obstetrícia escritos no século 12, e que atingiram o auge de sua popularidade mais de 100 anos antes de Henrique II, o autor já afirma que “a concepção é impedida tanto por culpa do homem quanto por culpa da mulher”, e que um “defeito na umidade do esperma (…) ou testículos excessivamente frios e secos” poderiam estar por trás do problema. A tradução do latim para o inglês do tratado foi publicada em 2002 e pode ser acessada aqui.
Para descobrir de qual membro do casal é a “culpa”, o texto propõe um método… curioso. Ambos deveriam urinar em recipientes que seriam deixados ao relento por dez dias. A amostra em que surgissem vermes primeiro indicaria o cônjuge infértil. Se os dois potinhos terminassem a experiência intactos, então a culpa não seria atribuída a ninguém, e ambos poderiam ser salvos pela medicina.
Ser salvo pela medicina, no caso, era uma possibilidade remota. Em tradução livre: “(…) a mulher deverá pegar o fígado e os testículos de um pequeno porco (…) secá-los e reduzi-los a pó, e dá-los em forma de poção a um homem que não é capaz de conceber e ele irá conceber, ou a uma mulher e ela irá conceber.”
Outras obras, algumas mais antigas, reafirmam a possível culpa do homem – e a colocam na boca de terceiros para não ficar chato. É o caso de John de Mirfield, clérigo que trabalhava em um hospital de Londres e escreveu seu próprio tratado médico no final do século 14. “É preciso notar que quando a esterilidade acontece entre pessoas casadas, os homens são acusados por muitos de não ter a semente (sêmem) adequada.”
Mas as mais divertidas são mesmo as que chutam o balde, e não só apontam o dedo para o homem como explicam o motivo. É o caso de Gilbert, o Inglês, que no século 13, em seu Compêndio de Medicina, cravou: “Em certos homens, muito espírito procede do coração e pouca umidade do cérebro, e então, nesses homens, há muita ereção do pênis e pouca emissão de sementes. Há outros em que muita umidade provém do cérebro e pouco vento espiritual do coração. Nestes, há muita semente sem o desejo de copular e a ereção do pênis. Nós encontramos outros com o desejo no fígado. Estes não têm ereções nem emitem sementes.”
A Trotula foi uma obra de referência influente e muitos seguiram suas recomendações. As ponderações acima são um sinal de que, apesar da sociedade patriarcal, a mulher nem sempre era automaticamente culpada pela infertilidade. No artigo científico, porém, Catherine Rider afirma que as ressalvas teóricas às vezes não se manifestavam na prática. “Apesar de os tratados médicos discutirem longamente a infertilidade masculina, as coleções de remédios compiladas por médicos ingleses tinham uma ênfase diferente: não ignoravam problemas reprodutivos masculinos, mas tendiam a dar mais atenção à infertilidade feminina.”
Resumo da ópera? A medicina medieval pode até ter percebido que a infertilidade é um problema unissex – e inclusive previsto questões bastante contemporâneas, como impotência sexual. Mas a sociedade da época, é claro, ainda considerava a questão essencialmente feminina.
Quanto a você, leitor, passe longe dos remédios – além dos testículos de porco, há outra maravilhosa poção de fertilidade: chá de erva-gato servido em um estômago vazio. Por três dias seguidos. É mais fácil ir ao médico.