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A batalha do Estelita

Como um cais abandonado criou uma briga entre ativistas e construtoras, ganhou na Internet a atenção do Brasil e colocou o Recife no centro do debate sobre o futuro das cidades

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h52 - Publicado em 8 dez 2014, 22h00

André Duarte, do Recife. Edição: Felipe van Deursen

 

 

Ele está fincado no centro da capital pernambucana, ao lado do Forte das Cinco Pontas, erguido pelos holandeses em 1630 e desde então cenário das maiores revoltas da cidade. Hoje, o cais José Estelita e seu entorno estão de novo em evidência. Às margens da Bacia do Pina, o futuro dele virou caso de polícia e mereceu um alerta da Anistia Internacional. Isso graças ao grupo Direitos Urbanos, que desde 2002 milita em causas urbanísticas. Descontentes com a situação, estudantes, arquitetos, professores e advogados, entre outros membros do grupo, se uniram no movimento Ocupe Estelita. Há anos eles lutam contra as empresas de construção civil que pretendem injetar até R$ 1,1 bilhão para erguer ali um complexo residencial e comercial. Chamado Novo Recife, o projeto é uma cortina de espigões bem diferente da área – histórica, mas decadente.

NOVO RECIFE

O declínio do cais teve início nos anos 70, quando a estação ferroviária que dava vida ao local foi demolida para dar lugar a um viaduto. Anos depois, os armazéns, antes cheios de açúcar, acabaram obsoletos. Dessa época, restam carcaças de vagões, ao sabor da maresia, desafiando a ferrugem. Por mais de 30 anos, o cais ficou entregue às moscas.

Em 2008, o consórcio formado pelas construtoras arrematou a área em um leilão por R$ 55 milhões. Em 2012, pressionado pelo Direitos Urbanos, ele apresentou o Novo Recife. Inspirados pelo movimento Occupy Wall Street e desgostosos com o projeto, manifestantes se organizaram para peitar as empresas. Surgiu assim o Ocupe Estelita, que ganhou corpo ao buscar detalhes e irregularidades.

Em 2014, as redes sociais deram força extra ao movimento. “A briga é por democracia. O projeto impacta a vida de toda a cidade, mas nem todo mundo opinou”, diz o ativista Leonardo Cisneiros, professor de Filosofia na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).

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Os ativistas usaram o Facebook para chamar atenção para a causa. Mas também porque acreditam que não se trata de um problema local, mas nacional. Outras cidades já passaram por algo assim – prédio histórico abandonado implodido para virar shopping, condomínio etc. A diferença é que, dessa vez, as pessoas conseguiram se organizar e lutar contra a construção de algo que não queriam em sua cidade. O Ocupe Estelita ganhou apoio de artistas como Ney Matogrosso, Lenine e Matheus Nachtergaele. Shows gratuitos pela causa reuniram até 10 mil pessoas na área externa do terreno, que virou um polo cultural alternativo. O movimento tem mais de 30 mil seguidores no Facebook e foi um dos assuntos mais discutidos no Twitter até o início da Copa.

O caso lembra também a intricada relação entre políticos e construtoras. Grandes financiadoras de partidos, elas têm influência no poder público. No Recife, a Queiroz Galvão, integrante do consórcio, doou R$ 300 mil à campanha do prefeito Geraldo Julio (PSB). Em 2012, ela doou R$ 4 milhões ao diretório nacional do PSB, que também recebeu R$ 500 mil de outro membro do consórcio, a Moura Dubeux. Com tanto dinheiro em jogo, governantes podem dar mais atenção a empresas que a pessoas.

Além disso, o que se passa no cais é reflexo do futuro das cidades. Teoricamente, ambos os lados querem desenvolver áreas degradadas. Mas como? A que custo? O Novo Recife é anunciado como uma modificação urbana em uma área pobre, que trará benefícios como um parque, 24 mil empregos temporários e 2 mil permanentes, preservação dos armazéns para fins culturais e a demolição do viaduto, que marcou o início da decadência do local.

Há alguns poréns. A arquiteta Joana Pack pesquisou o aspecto técnico do projeto em sua dissertação de mestrado em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Ela estudou o impacto das torres na ventilação na área atrás delas e simulou a influência de outros modelos, com prédios menores e mais afastados uns dos outros. “A proposta do Novo Recife é a que gera mais desconforto ao pedestre”, concluiu. Entre os motivos, haveria grandes áreas sem ventilação e outras com túneis de vento. E ainda há o choque visual: uma região histórica sem nenhum prédio de médio porte que de repente pode ganhar torres de 40 andares.

As construtoras dizem que o debate sobre a altura dos prédios é mitificado. O engenheiro Eduardo Moura, porta-voz do empreendimento, defende que o projeto é o que a região precisa para se desenvolver. “A cidade tem que crescer onde há infraestrutura, e o terreno está próximo a áreas com esse potencial”, explica. Ele diz não entender as acusações dos críticos. “Tem muito desconhecimento. Quanto mais verticalizado o projeto for, menos solo você usa. Numa lógica simplista, você consegue com um prédio de 40 andares dar mais espaço livre do que com quatro prédios de dez na mesma área. A lei diz que devemos destinar 35% do terreno para área de circulação pública. Vamos dar 45%”. Mas há outros problemas. O Ministério Público de Pernambuco diz que o consórcio não apresentou dados concretos sobre o impacto no trânsito, por exemplo – segundo cálculos dos manifestantes, seriam 5 mil veículos a mais por dia na área.

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O projeto original foi aprovado no apagar das luzes da gestão do ex-prefeito João da Costa (PT). No governo atual de Geraldo Julio, ele foi parcialmente modificado, após as críticas. Mas a nova versão não convenceu o movimento, que continuou acreditando que a proposta é excludente.

Na Justiça, a disputa também fez barulho. Denúncias de irregularidades envolvendo o leilão, além de ausência de relatórios de impacto obrigatórios por parte de órgãos de fiscalização, municiaram o grupo de advogados voluntários do movimento. O consórcio nega qualquer irregularidade.

A promotora de Justiça Belize Câmara obteve liminares contra as empresas e protagonizou embates acirrados com o empreendimento. Mas, poucos dias depois, ela acabou transferida da Promotoria de Meio Ambiente e Patrimônio. O Ministério Público alegou necessidades formais e a mandou de volta a sua promotoria de origem. Isso motivou um protesto na sede do MP. “A ocupação é legítima defesa da sociedade, é uma área estratégica. Esse projeto tem cheiro de irregularidade desde o início”, diz Belize.

OCUPE ESTELITA

Quando flagraram máquinas derrubando os galpões, os ativistas constataram que só salvariam o cais se o ocupassem. Entraram, peitaram os seguranças e barraram a demolição. “Chegamos com uma barraca, pouca água e dez pessoas. Tinha certeza que seria um fracasso”, lembra o estudante Milton Petruczok sobre a noite de 21 de maio. Ele foi um dos primeiros a chegar e presenciar a vitória parcial. Foi assim que, no descampado entre os galpões e a linha férrea, cerca de 60 pessoas montaram a Vila Estelita. Em menos de um mês, o acampamento ganhou cozinha, almoxarifado, uma lona que faz as vezes de salão central e banheiro com caixa d¿água e tratamento de resíduos. A coleta de lixo fornecia o material orgânico da horta.

Com a ocupação, surgiu a necessidade de um convívio em sociedade. Eles criaram funções para todos, da segurança à cozinha. Isso até 17 de junho, quando a PM chegou para desocupar o terreno e virou notícia internacional. Com um mandado de reintegração de posse, deteve pelo menos quatro pessoas, entre elas Milton, e feriu cinco. A Anistia Internacional, o MP e a UFPE condenaram a ação da polícia, que usou balas de borracha, gás lacrimogêneo e bombas de efeito moral para dispersar os ativistas. Depois disso, eles ficaram acampados de maneira ainda mais precária sob um viaduto.

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A partir de então, o consórcio investiu mais em publicidade na mídia local. Em resposta, o movimento aumentou a presença nas redes sociais. Sob uma lona, dois computadores com acesso à internet eram os equipamentos usados pela unidade de comunicação. “As pessoas estão sendo bombardeadas de propaganda na TV. Então nossa mensagem precisa atingir mais gente”, diz o estudante Artur Maia.

No discurso, a pressão vem surtindo efeito. O consórcio cogitou revisar o Novo Recife e o prefeito, que se mantinha afastado do embate, cancelou o alvará de demolição dos galpões, reposicionando-se como mediador das negociações. Alegando motivos de segurança, os ativistas deixaram de dormir sob o viaduto, mas não abandonaram a ocupação diária.
Enquanto as conversas engatinham, coube ao engenheiro José Estelita antecipar, em vida, o debate sobre o cais que levaria seu nome. Obcecado por urbanismo, ele gostava de discutir os rumos da cidade em seus artigos. Um deles, de 1929, foi compartilhado pelos ativistas como indício de que Estelita os apoiaria: “Defender o interesse geral contra o interesse particular tem sido a norma de ação surgida por todos os povos de grande cultura.”

A luta pelo cais

Conheça o projeto polêmico – e o que os manifestantes propõem

Projeto Novo Recife consorcionovorecife.com.br

RESPONSÁVEIS – Consórcio Novo Recife (Moura Dubeux Engenharia, Queiroz Galvão, Ara Empreendimentos, GL Empreendimentos)

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O QUE É – 12 torres de até 40 andares no bairro de São José, no Centro, sendo duas empresariais, dois hotéis e oito residenciais.

CUSTO – R$ 1,1 bilhão

PRÓS – Pretende revitalizar a área ao criar parque, ciclovia, píer e ruas de acesso a outros bairros, além da restauração de uma igreja e galpões e da criação de 24 mil empregos.

CONTRAS – Impacto visual em área histórica, aumento do tráfego, redução da ventilação e aumento de calor. Criação de ilha de riqueza sem integração com arredores pobres.

#penserecife penserecife.tumblr.com

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RESPONSÁVEIS – Coletivo de arquitetos voluntários

O QUE É – Estudo preliminar de urbanistas descontentes com o Novo Recife. Oito prédios de até seis andares e o desvio de avenida para criação de áreas verdes.

CUSTO – Não informado

PRÓS – Os prédios, com espaço maior entre eles, dariam mais ventilação à região. A área comercial e a retomada da linha férrea deixariam o projeto mais integrado ao entorno.

 

CONTRAS – Ainda é um esboço, então tem pouco peso para ser uma alternativa de fato. Mas um projeto do tipo valoriza áreas de convívio e é mais coerente com a região.

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Na rua

Outros movimentos que uniram pessoas pelas suas cidades

Istambul

Além de histórico, o parque da Praça Taksim é das poucas áreas verdes do distrito de Beyoglu. Em 2013, ambientalistas protestaram contra sua demolição. A polícia agiu com violência, e o pequeno protesto se alastrou pelo país até gerar uma manifestação antigoverno. O parque, espécie de R$ 0,20 da Turquia, não foi demolido.

Fortaleza

Para proteger uma das poucas áreas verdes da cidade, manifestantes ocuparam o Parque do Cocó e tentam impedir a construção de um viaduto no local. Acampado há um ano, o grupo chegou a entrar em greve de fome. Em junho, a Justiça determinou a suspensão da obra até que a prefeitura obtenha licenças ambientais.

Madri
Espaço público que fechou em 2008 para reformas que nunca ocorreram, o campo de Cebada foi ocupado em 2010 para atividades culturais e esportivas. Deu tão certo que a prefeitura liberou o local. Além disso, o caso inspirou a luta pelo Parque Augusta, num terreno privado de área verde em São Paulo.

 

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