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A inteligência nasceu da cascata

Nossa capacidade de lidar com situações sociais complexas surgiu de uma corrida armamentista entre a habilidade de mentir e a de desmascarar mentiras

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h46 - Publicado em 8 mar 2013, 22h00

Maurício Horta

Mentir é necessário – e o que explica isso não é a filosofia nem a moral, mas a biologia. Vírus enganam seus hospedeiros. Borboletas e camaleões enganam seus predadores. Chimpanzés e humanos enganam seus iguais. Mas humanos atingiram níveis incomparáveis de dissimulação. Somente nós temos linguagem verbal, que nos permite contar histórias falsas, e capacidade de inferir quais as crenças, as intenções e os desejos dos outros. Mas isso não quer dizer que nossas mentiras se tornaram mais complexas do que as dos outros seres por sermos inteligentes. O contrário aconteceu. Somos inteligentes porque precisamos mentir e desvendar mentiras com uma perícia cada vez maior.

Vamos primeiro quebrar um mito. A evolução não acontece pelo bem da espécie. Uma adaptação passa adiante se ela beneficiar a sobrevivência e reprodução de um indivíduo, e não de sua espécie. Na verdade, não há rival maior de um indivíduo do que seu semelhante. Eles lutam pelos mesmos recursos, território e parceiros sexuais. Por isso, competem entre si usando estratégias egoístas. Com uma exceção.

Uma adaptação altruísta pode ir para a frente se ela for recíproca. Por exemplo, quando um caçador abate um mamífero de grande porte, ele pode ficar com a caça para si. Como ele não é capaz de comer o animal inteiro, será interessante, nessa situação, chamar outros caçadores e compartilhar a caça. Se os outros sentirem gratidão por ele, no futuro poderão recompensar o altruísta por esse ato. Com o passar do tempo, a estratégia altruísta favorecerá a sobrevivência de quem for predisposto a adotá-la. Assim, o altruísmo se tornará prevalente ao longo das gerações. Não somos de todo maus.

Mas sempre haverá alguém para se aproveitar da bondade alheia. Digamos que uma espécie tenha a estratégia altruísta de emitir barulho de aviso toda vez que encontrar um predador. Um grupo predisposto a adotá-la vai aumentar sua chance de sobrevivência e reprodução. Mas, da mesma forma, um indivíduo pode ser predisposto a trapacear, emitindo esse barulho quando encontra um alimento, em vez de um predador. Com essa estratégia mentirosa, vai espantar os outros e ter para si a caça inteira. Ao se alimentar bem, o “trapaceiro” vai melhorar suas chances de sobrevivência e de reprodução – e, com isso, passar para as próximas gerações sua predisposição a essa estratégia egoísta.

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Aí está o início da mentira. E, logo em seguida, o da detecção de mentiras. Com tantos indivíduos mentirosos se beneficiando do engano, sobrariam poucos “trouxas” para enganar. Nesse cenário, quem é que teria a maior vantagem? Um terceiro indivíduo: o “rancoroso”. Tal como o trouxa, o rancoroso usará a estratégia altruísta, mas com uma grande diferença. Ele conseguirá identificar a mentira do trapaceiro. Mantendo os benefícios do altruísmo e se protegendo da trapaça, ele terá vantagem evolutiva sobre o trouxa e o trapaceiro. E o “gene” do rancor passará adiante.

É nesse momento que começa a corrida armamentista das cascatas. Trapaças mais elaboradas farão o rancoroso de trouxa. Por outro lado, um rancoroso ainda mais perspicaz desmascarará essas trapaças. E essas melhorias genéticas de um lado favorecerão melhorias genéticas do outro por milhares de gerações. Assim caminha a evolução.

Homem primata

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A corrida armamentista do engano e do desengano é especialmente acelerada em uma situação: quando uma espécie vive em grupos grandes e por um longo período. Essa organização ajuda na defesa contra predadores e obtenção de alimentos. Mas também cria uma guerra fria evolutiva. Tanto os mentirosos quanto os rancorosos têm que se preocupar com um número muito grande de interações sociais. Precisam memorizar quem é quem, quem fez o quê, quem sabe do quê e como lidar com cada indivíduo. Isso é um passo muito além das estratégias de engano do vírus, da borboleta e do camaleão.

É o que ocorre com primatas do velho mundo (que incluem os humanos). Vamos a um exemplo: o macaco rhesus, uma espécie que vive em grupos grandes com forte hierarquia e laços sociais duradouros. A competição por status é feita com violência, nepotismo e alianças. Machos alfa ameaçam e agridem os outros para garantir a melhor comida, os lugares mais seguros para dormir e o acesso às fêmeas. Já os subordinados comem restos e vivem marginalizados, em áreas mais vulneráveis a predadores. Ainda assim, conseguem fazer sexo às escondidas -afinal, embora as fêmeas prefiram o macho alfa, elas instintivamente querem garantir filhos caso ele seja estéril. Essa ordem não é estática. Quando surge uma oportunidade, famílias de subordinados se unem para derrubar a família dominante numa guerra civil. Mas, diante de um grupo forasteiro, todos se tornam verdadeiros patriotas e se unem contra a ameaça externa.

Mas grupos humanos são ainda maiores, o que faz a complexidade das relações aumentar exponencialmente. Essa é a base da hipótese da inteligência maquiavélica, postulada pelos primatologistas escoceses Richard Byrne e Andrew Whiten. Segundo ela, o cérebro humano chegou ao atual estágio baseado na necessidade de resolver problemas sociais muito complexos em grupos cada vez maiores. Nessa situação, cérebros com mais conexões teriam uma vantagem enorme.

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Para verificar isso, o antropólogo britânico Robin Dunbar comparou o tamanho dos cérebros de primatas e o número de indivíduos de seus grupos. Descobriu que, realmente, o tamanho do neocórtex de uma espécie é proporcional ao tamanho do grupo em que se organiza. Comparando o tamanho do neo­córtex de chimpanzés (que se organizam em grupos de 55 indivíduos) com o de humanos, previu que a média de um grupo social humano seria de 150 pessoas. E esse é de fato tanto o tamanho dos grupos reunidos em cerimônias tradicionais de caçadores-coletores quanto a média de pessoas com quem um humano moderno consegue manter relação social sem o intermédio de uma organização.

Em relação aos outros primatas, o humano deu dois saltos que o tornam ainda mais capaz de mentir. Ele tem uma capacidade muito desenvolvida de inferir as crenças, as intenções, os desejos e os conhecimentos dos outros e também de inferir o que os outros inferem sobre ele. Tem também a linguagem verbal, que permite manipular melhor o comportamento dos outros e obter informações sobre eventos que eles não presenciaram – ou que nunca aconteceram.

Isso tudo explica que ninguém aprende a mentir. Uma pessoa nasce com a capacidade inata para enganar os outros. Mas isso não quer dizer que crianças mintam apenas para obter vantagens e escapar de punições. Elas mentem também para poupar os sentimentos alheios. Por outro lado, são capazes de contar a verdade mesmo quando a mentira é a estratégia mais fácil. Afinal, são egoístas, mas também internalizam valores morais. Se um filho mente para os pais, ele geralmente não faz isso por mau caráter ou por má educação. Ele faz isso porque ele é o exemplar da espécie mais inteligente dos seres vivos.

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