PRORROGAMOS! Assine a partir de 1,50/semana

A polícia do futuro

A força policial é a única das instituições nacionais que não foi reformada após o fim da ditadura.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h47 - Publicado em 31 mar 2002, 22h00

Luiz Eduardo Soares

A sociedade brasileira cumpriu uma trajetória histórica, que custou o sacrifício de muitas vidas: transitou da ditadura para a democracia, adaptando, através da promulgação da Constituição cidadã, em 1988, as instituições nacionais ao novo contexto, marcado pelo respeito às liberdades individuais e aos direitos civis. Esse enorme esforço coletivo envolveu o investimento na redefinição das metas, dos métodos e dos valores de nossas principais organizações. Por mais paradoxal que seja, uma instituição foi esquecida nas trevas do passado autoritário: a polícia. Conservadores, liberais e progressistas debateram o destino de cada órgão público e disputaram a liderança de cada processo de reforma. Entretanto, não apresentaram à opinião pública projetos que adequassem a polícia à democracia. Afinal, o que seria a polícia do estado de direito democrático?

Essa omissão histórica condenou a polícia à reprodução inercial de seus hábitos atávicos: a violência arbitrária contra pobres e negros, a tortura, a chantagem, a extorsão, a humilhação cotidiana e a ineficiência no combate ao crime, sobretudo quando os criminosos vestem colarinho branco. Claro que há e sempre houve milhares de policiais honestos, corretos, dignos, que tratam todos os cidadãos com respeito.

Mas as instituições policiais, com raras exceções regionais, continuam a funcionar como se estivéssemos em uma ditadura ou vivêssemos sob um regime de apartheid social. A finalidade era construir uma espécie de cinturão sanitário em torno das áreas pobres das regiões metropolitanas, em benefício da segurança das elites.

Nesse sentido, poder-se-ia afirmar que o esquecimento da polícia, no momento da repactuação democrática, em certa medida, acabou sendo funcional para a perpetuação do modelo de dominação social defendido pelos setores mais conservadores. Ou seja, essa negligência talvez tenha sido mais um golpe de esperteza do que uma indiferença política. Mas o fato é que a polícia permanece prisioneira dos anos de chumbo e organizada para defender o Estado e não os cidadãos, o que ocorreria se as leis fossem respeitadas pelas instituições que as aplicam.

Continua após a publicidade

A conseqüência da ausência de projetos de reforma é tudo isso que conhecemos: degradação institucional da polícia e corrosão de sua credibilidade, ineficiência investigativa e preventiva, ligações perigosas com o crime organizado e desrespeito sistemático aos direitos humanos. Ou seja, a polícia, abandonada pelo processo da transição democrática, retorna do passado sombrio como um espectro a nos assombrar. A dinâmica é parecida com o mecanismo individual da neurose: aquilo que reprimimos e procuramos esquecer porque não conseguimos elaborar e integrar à vida interior e às nossas emoções retorna com a força da energia recalcada e perturba nosso equilíbrio, subvertendo nossa felicidade.

É preciso salvar a polícia do passado, torná-la contemporânea do presente democrático e reinventá-la para o novo contexto político. É necessário tirá-la do armário em que guardamos os fantasmas históricos. Libertar a polícia do passado implica inverter sua identidade e seus fins institucionais: ela existe para garantir as liberdades e os direitos, consagrados nas leis, inscritas na Constituição democrática. Ela só pode fazer cumprir as leis se as cumprir. Para que essa virada profunda aconteça, a PM terá de cortar seu cordão umbilical com o Exército, adaptar seu regimento disciplinar medieval ao nosso século e atribuir prioridade ao trabalho comunitário e à prevenção, via diagnóstico dos problemas e planejamento estratégico.

A Polícia Civil terá de ser inteligente, amparada por uma perícia autônoma e tecnologicamente sofisticada. A confiança da sociedade terá de ser reconquistada e o controle da corrupção será o grande alvo do governo. Os salários dos policiais terão de respeitar a importância de sua atividade, viabilizando o cumprimento da lei que proíbe o trabalho na segurança privada. Finalmente, a própria divisão entre as instituições policiais deverá ser suprimida. Poderá haver uma, duas ou muitas polícias (o que será possível com a desconstitucionalização da matéria). O problema não está no número. Os Estados Unidos têm 19 000 departamentos de polícia. O problema está no fracionamento do ciclo do trabalho policial. É necessário que todas as polícias cumpram o ciclo completo, que envolve as tarefas ostensivo-preventivas e investigativas

LUIZ EDUARDO ARES é antropólogo e cientista político, ex-coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do governo do Estado do Rio de Janeiro, responsável pelo programa de segurança pública da Prefeitura de Porto Alegre e membro da coordenação que elaborou o Plano Nacional de Segurança do Instituto Cidadania

Publicidade


Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY
Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

Apenas 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 10,99/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.