Nosso repórter passou 40 dias guardando todo o lixo que produziu
Não jogar nada fora por 40 dias deixa claro o quanto consumimos e o tamanho do nosso lixo. E chama atenção para um novo distúrbio psicológico.
(Essa matéria foi originalmente publicada em abril de 2014)
O lixo da minha vizinha é limpinho. Ainda bem. Abri e fucei a sacola preta que ela põe na lixeira do andar. Embalagens de comida congelada, de itens de cozinha e de banheiro. Eu já tinha tudo aquilo de monte, não me interessava. Precisava só de seis garrafinhas de uma marca de cerveja conhecida. Como sei que ela sempre bebe essa marca, achei que poderia repor minha coleção. Por três dias, ao chegar do trabalho, dava um alô ao lixo da vizinha, com cuidado para não fazer barulho e provocar os estridentes latidos de seus mínimos cães. No quarto dia, consegui: ela tinha se permitido tomar umas a mais na véspera, e eu faturei as garrafas. Agora sim, poderia voltar ao meu acúmulo de objetos. Tudo isso porque vacilei ao ir a uma festa sem levar a mochila que vinha servindo para carregar o entulho particular para casa. Naquela noite, não tive onde guardar as garrafas consumidas e não poderia computar o acúmulo. Quando procurei um segurança para pedir uma sacola, ele fez uma cara petulante, como se pensasse “quem é esse trouxa?”.
Passei 40 dias juntando tudo o que ganhei ou comprei, sem jogar nada fora, a não ser restos orgânicos. Juntei um bocado. Não me considero consumista, mas é mais fácil se achar uma pessoa econômica, sustentável e tudo mais quando você deixa de pensar no próprio lixo assim que põe os sacos para fora de casa. Se você passa a juntar tudo o que consome, o cenário muda. Todo dia, somamos mais de um quilo de dejetos, segundo a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). Sem essa quantia se acumulando debaixo do mesmo teto em que se dorme, fica mais difícil ter noção do quanto de lixo produzimos. Ao decidir não jogar nada fora, tentei aprender a conviver com a porcalhada pegajosa em casa. Se uma pesquisa do Ibope de 2012 diz que dos brasileiros não faz ideia de onde seu lixo vai parar, agora eu sabia para onde o meu ia: debaixo da pia ou, depois de não caber mais nada, ao lado da cama. Evitava olhar, mas ele estava lá, importunando olhos e narizes de quem chegasse perto.
Lixo de emergente
A Abrelpe diz que em 2012 as cidades brasileiras geraram quase 64 milhões de toneladas de resíduos sólidos. Lixo é decorrência de consumo, e consumo é termômetro de a quantas anda uma economia. De modo geral, quanto mais rica uma população, mais poder de consumo ela tem, logo mais lixo ela produz. Noruegueses, americanos, suíços e neozelandeses superam os 2,5 kg diários de lixo per capita. A taxa do Brasil, apesar do enriquecimento do País, ainda é menos que a metade disso. Há dez anos, nossa geração de lixo por habitante era de 955 g. Desde então, a população cresceu cerca de 10%, e o volume de lixo subiu 21%. Sinal do aumento do poder de consumo, graças especialmente às 40 milhões de pessoas que engrossaram a classe média no período. Com isso, dá para sentir o aumento do rastro de bandejas de carne, caixas de leite e sacolas de shopping no caminho. Efeito colateral do enriquecimento.
Consumir faz parte da vida, lindo. Mas precisa tanta embalagem? Fora isso, alguns produtos poderiam ter seu design repensado. Por que escovas de dentes não têm refil, para repor as cerdas gastas? Outro exemplo: dos 7,5 cm de um cotonete comum, 5 cm são a haste de plástico, que poderia ser usada de novo. Mas vai tudo para o lixo (embora eu tenha lavado e, bem, ele fica parecendo um inútil gnomo molhado). Há os excessos de pequenas embalagens, também. Quando fui almoçar em um restaurante japonês, os palitos vieram embrulhados em papel. Ao comer no trabalho ou na rua, se fosse “levar para viagem”, invariavelmente eu ganhava de brinde dezenas de guardanapos – às vezes embalados. E sempre muito mais do que precisava, a não ser que fosse alimentar um filhote de urso. Canudos, então… Em todas as ocasiões me deram mais de um. A maioria embrulhada. Por que preciso de três canudinhos? Por que embalados?
Higiene, economia, preservação. Existem motivos para as embalagens existirem, é claro. E também existem profissionais especializados em buscar melhorias nelas, para que sejam mais úteis e menos dispendiosas. Enquanto isso, nós seguimos comprando e consumindo. A Associação Brasileira da Indústria do Plástico previa que cada pessoa no Brasil consumiria 46 kg de plástico em 2015. Um aumento que acompanha a escalada global. Em 1950, a produção mundial de plástico era de 1,5 milhão de toneladas, coisa à toa. Atualmente, são 265 milhões de toneladas por ano. Com essas e outras, nós chegamos a bizarrices como a ilha de plástico do Pacífico, uma monstruosidade sem tamanho definido, com uma área maior que o Estado de Minas Gerais nas estimativas mais humildes. Um lixão formado pelo encontro mundial de pedaços pequenos da turma do polietileno: garrafas PET, tampinhas e sacolas, entre outros.
Embrulhos e entulhos
Embalagens são um símbolo do consumismo. É algo que ficou mais claro nos anos 70, lembra Carlos Anjos, professor da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp. Na época, surgiram os grandes supermercados e os sistemas de pegue-pague e self-service. “As mercadorias deixaram de ser vendidas a granel”, diz. Foi a explosão dos saquinhos.
Nos últimos anos, tem gente querendo reverter esse lado menos útil e agressivo das embalagens. A maioria ainda são protótipos ou ações temporárias, mas já mostram um caminho. A Wikipearl, uma loja de Paris, vende sorvetes e iogurtes sem nenhuma embalagem plástica. Seus produtos vêm envoltos em uma tecnologia desenvolvida pelos criadores da empresa, que consiste em uma película feita de partículas naturais de comida que não absorve sujeira. Uma embalagem comestível, em suma. A Natura lançou uma linha de produtos cujas embalagens têm 70% menos plástico. Em 2013, o Bob’s embalou seus sanduíches com papel comestível. Todo ano, designers do mundo todo são premiados por criações que reduzem o desperdício, como o sul-coreano Yeong Keun Jeong, que inventou uma embalagem de manteiga com tampa em forma de faca. Mas são medidas pontuais. Ainda falta muito para termos embalagens mais inteligentes e funcionais em grande escala.
O lixo nosso de cada dia assusta, ainda mais quando não se abre mão dele. Foi o que ocorreu comigo. A mesa no trabalho ficou impraticável com tantos papéis e copinhos de uma água escura e doce que uma máquina no fim do corredor oferece como café. Não encontrava livros sob meus escombros. No 23º dia, a faxineira do andar levou uma bronca de seus superiores por, visivelmente, ter abandonado uma das mesas da redação da SUPER. Na verdade, ela só estava respeitando o aviso “por obséquio, não retire o lixo nem de cima nem debaixo da mesa”. Tudo foi resolvido. Após os devidos esclarecimentos, meus dejetos e o emprego dela estavam a salvo.
Só que meu lixo (e o seu e o de todo mundo) é, por incrível que pareça, ridiculamente pequeno perto do que outros setores provocam. O especialista em resíduos sólidos Maurício Waldman, autor do livro Lixo: Cenários e Desafios, diz que o lixo urbano, aquele acumulado pelas cidades e seus habitantes, representa só 2,5% dos detritos mundiais. Os grandes sujadores do planeta são pecuária, mineração e agricultura. Há uma interseção de geração de lixo entre os setores, por isso a soma dá mais de 100%. Mas como uma fazenda pode causar tanto estrago? Os dejetos dos 7,9 milhões de porcos de Santa Catarina poluem quatro vezes mais que o cocô de todos os brasileiros juntos. E uma mineradora? “Cada parte de ouro gera 5 milhões de partes de resíduos”, diz Waldman. “Quem compra aliança pensa na montanha de lixo envolvida?”. Por isso que, ao olhar para trás e analisar toda a cadeia de produção, especialistas dizem que cada saco de lixo que geramos representam 60 sacos produzidos anteriormente. Os meus seis grandes sacos de lixo representam, então, 360. O grosso do lixo pode estar longe da cidade, mas ainda é nosso. E, com tanto consumo, criamos um distúrbio psicológico.
A nova doença
Todo mundo é consumidor. Muitos são consumistas. E há os acumuladores compulsivos, uma das novas doenças descritas no DSM-5, o manual da Associação Americana de Psiquiatria, publicado no primeiro semestre. O distúrbio, até então, era um subitem do transtorno obsessivo compulsivo (TOC). Mas uma série de estudos mostrou diferenças entre eles, e agora os especialistas passam a vê-los de maneira separada. Acumuladores compulsivos são pessoas que juntam de maneira patológica objetos de tudo que é tipo. Há os acumuladores de roupa, de lixo e até de gatos. Eles não são colecionadores, pois não fazem a catalogação dos objetos típica de quem coleciona. Acumuladores não têm controle sobre suas coisas. Os pertences ocupam cômodos inteiros e influem drasticamente na vida deles. Muitos são abandonados pela família por não se livrarem de nada. Outros viram questão de saúde pública.
Todo esse problema está ligado a um distúrbio cerebral que deixa a capacidade de tomar decisões extremamente complicada. Sim, pode ser difícil para qualquer um se desfazer de algo. Mas, para essas pessoas, é quase impossível. Dói. Eles nunca sabem quando vão precisar daquilo, se jogam fora ou não, se vão ou não se arrepender. Então, postergam, deixam para decidir em um dia que nunca chegará. “Muitas vezes, o indivíduo sente uma necessidade de comprar objetos associada a uma sensação de culpa”, diz o psiquiatra Eduardo Perin, do Consórcio Brasileiro de Pesquisa em TOC.
Existem relatos de acumuladores compulsivos desde o século 14, mas eles nunca estiveram tão em evidência. A abundância de objetos baratos e acessíveis talvez tenha transformado isso em um dos grandes distúrbios do nosso tempo, dizem os especialistas Randy Frost e Gail Steketee em Stuff (“coisas”, sem edição no Brasil). Segundo o livro, nos Estados Unidos, há 40 anos, quase ninguém alugava depósitos externos para guardar objetos que não cabem em casa. Hoje, essas áreas ocupam o equivalente à cidade de Vitória, no Espírito Santo: 93 quilômetros quadrados servindo unicamente para acumular posses. Os EUA têm duas vezes mais shoppings que escolas. Para os autores, é difícil desvencilhar isso do fato de os acumuladores compulsivos terem ganhado mais destaque: entre 2 e 5% da população americana tem a doença. Existem pouquíssimos dados a respeito no Brasil, mas se ela realmente estiver ligada ao comportamento consumista de uma sociedade, como já se vê nos EUA, estamos nesse caminho.
Alguns pesquisadores já começam a citar outro tipo de acúmulo. “Estamos nos transformando em acumuladores digitais”, diz Russell W. Belk, especialista em consumismo e professor da Universidade York, no Canadá. “Músicas, e-mails, fotos…”. Para ele, é uma forma de entulho que incomoda menos, já que não ocupa espaço físico, mas que não deixa de ser acumulismo. E a internet proporciona muito mais que posses virtuais, é evidente. Nas três compras online que eu fiz em 40 dias, por exemplo, juntei uma quantidade considerável de papelão, papel, plástico e isopor. Em uma delas, um pote resistente veio todo envolto em plástico-bolha, como se fosse de vidro. Um desperdício. Pagamos o conforto de receber em casa com mais embalagens e mais lixo, talvez mais que o necessário para um transporte seguro.
Mas, para falar a verdade, eu estava menos preocupado com o excesso de papelão e plástico das grandes varejistas online do Brasil do que com a possibilidade de algum rato aparecer no meu quarto. Por mais que não houvesse comida e eu lavasse tudo, as embalagens ainda guardavam uma fração daquilo que preservaram um dia, quando reluziam em uma gôndola ou vitrine. Era uma lembrança nada cheirosa de seu passado recente. Em um mês, meu banheiro estava impregnado com um cheiro forte de charuto misturado com jornal velho e margarina. Nenhum animal nojento foi visto em meus domínios, ufa, embora tenha recebido um ou outro olhar de estranheza ao viajar de ônibus com uma sacola de lixo. Virei motivo de piada para meus amigos e colegas de trabalho. Fui apelidado de lixão e rainha da sucata. Meus primos perguntaram se virei catador.
Não sou acumulador compulsivo, então se livrar do lixo não foi um dilema. Mas percebi que sou muito mais consumista do que achava. Ganhei ou comprei 20 livros, ainda não li nenhum deles e dificilmente me livrarei de algum em pouco tempo – curioso como acumuladores de livros não são vistos com maus olhos. Em vez disso, folheei um romance inspirado na história real de dois irmãos americanos do começo do século 20, excêntricos e milionários, os Collyer. Um deles, Langley, acabou virando, provavelmente, o acumulador compulsivo mais famoso dos EUA. A história é trágica. Após décadas acumulando objetos tão díspares como jornais, pianos e um Ford T em sua mansão, Langley foi encontrado morto pela polícia, preso entre uma cômoda e uma cama. Ratos já haviam comido parte do seu rosto. A causa da morte foi igualmente triste e estranha. Ele foi soterrado pelos seus próprios objetos. Foi morto pelo seu lixo.
Fontes Associação Brasileira do Alumínio (Abal); Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) e Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC); Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA); Agência Europeia do Ambiente (AEA); Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre); Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea); Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO); Programa da ONU para o Meio Ambiente.