Descida aos porões do planeta
É mais fácil ir à Lua do que chegar com uma sonda ao centro da Terra. As perfurações são lentas, caras e complicadas. Apesar disso, sabe-se cada vez mais o que existe e o que acontece debaixo dos nossos pés
Maria Inês Zanchetta
Há mais de um século, o francês Júlio Verne escreveu sua fantástica Viagem ao centro da Terra. Nela, o professor Otto Lindenbrok, mineralogista alemão, e seu sobrinho Axel desceram às profundezas do planeta perdendose em uma interminável cadeia de labirintos e galerias, onde correm rios de forte correnteza e mares subterrâneos. Na verdade, esse cenário não tem nada a ver com o que acontece no interior da Terra. Em 1864, quando Verne escreveu sua história, não se tinha ultrapassado sequer mil metros em direção ao fundo do coração do planeta, a 6 370 quilômetros da superfície.
Ali, a temperatura chega aos 4 mil graus e a pressão ultrapassa 3 milhões de atmosferas — uma atmosfera equivale à pressão exercida por 1 quilo sobre 1 centímetro quadrado. É um mundo infernal, de acesso quase impossível, digno da imaginação de um escritor de ficção científica: a profundidades maiores que algumas poucas dezenas de quilômetros, as altíssimas pressões e temperaturas pulverizariam qualquer sonda por mais resistente que fosse. Mas, afinal, o que existe mesmo lá embaixo? Como é mais fácil subir ao espaço do que descer aos porões do planeta, a ciência tem acumulado uma massa de conhecimentos sobre o sistema solar talvez até maior do que sobre suas camadas mais fundas.
Esse é o desafio para os cientistas que têm os olhos voltados não para o céu, mas para o chão — ou melhor, para o que existe abaixo dele. Embora compacta, a Terra não é um bloco homogêneo; é possível compará-la a uma imensa cebola, onde diversas camadas se sobrepõem. A pele que a recobre sena a crosta terrestre, cuja profundidade varia de cerca de 10 quilômetros nas áreas oceânicas até 70 quilômetros nos continentes. Por ser a camada mais superficial, a crosta naturalmente é a mais simples de ser estudada.
Os fragmentos de rochas recolhidos durante as perfurações são uma preciosa fonte de estudo. Depois da crosta vem a zona de transição para a camada seguinte, o manto, que alcança até 2 900 quilômetros de profundidade. Abaixo do manto está o núcleo, a uma profundidade de 5100 quilômetros. Para perfurar os cinco primeiros quilômetros em direção ao interior da Terra existem equipamentos apropriados. Daí em diante as coisas se complicam. “É difícil manter a sonda na direção correta, as brocas quebram e qualquer operação para recuperar 0 material leva muito tempo”, explica o professor Igor Pacca, do Instituto Astronômico e Geofísico da Universidade de São Paulo.
Nesse tipo de exploração, o recorde pertence aos soviéticos. Desde 1970, eles vêm fazendo perfurações na península de Kola, no extremo norte da URSS. Só recentemente chegaram à marca dos 13 quilômetros de profundidade — um simples arranhão na casca do planeta. Segundo o geofísica Pacca, o feito mais importante dos soviéticos até aqui foi não encontrar na parte inferior da crosta uma zona de transição de rochas de granito para rochas de basalto. Até então, os geofísicos acreditavam que essa área existia, tanto que tinham até um nome para ela: descontinuidade de Conrad. “Atingida a profundidade que corresponderia a essa descontinuidade, não se achou basalto”, relata o professor Pacca.
Da mesma forma como os astrônomos astrofísicos querem conhecer melhor o que existe, por exemplo, em Marte, o mais ambicioso objetivo dos geofísicos de todo o mundo é conhecer a intimidade do interior da Terra. Por isso, em setembro do ano passado, uma equipe de cientistas iniciou uma perfuração na cidadezinha de Windischeschenbach, no norte da Alemanha Ocidental, que não vai terminar antes do ano 2000. Então, os pesquisadores esperam chegar à meta estabelecida: 14 quilômetros abaixo da superfície. No começo da viagem, vão utilizar os mesmos equipamentos usados em perfurações petrolíferas.
A partir do sexto quilômetro, no entanto, pretendem estrear um motor desenhado especialmente para essa tarefa, cuja novidade é um dispositivo especial que corrigirá automaticamente a direção da sonda ao menor desvio do eixo de perfuração. Se tudo funcionar, os alemães poderão economizar tempo. Além de superpreciso, esse instrumental é basicamente capaz de suportar altíssimas pressões e temperaturas. Quando a broca chegar ao décimo quarto quilômetro, estará submetida à temperatura de 300 graus. Não tendo acesso direto ao interior do planeta. os cientistas sempre precisaram valer-se de informações indiretas. Uma das formas de saber o que há nas camadas internas dessa grande cebola é analisar os fenômenos que nelas ocorrem.
Os terremotos, por exemplo, emitem ondas sísmicas, cuja trajetória e velocidade são minuciosamente estudadas ao se propagarem por toda a Terra. Combinadas com outras informações, essas análises trouxeram importantes descobertas. Assim. o geólogo iugoslavo Andrija Mohorovicic descobriu já em 1909 que entre a crosta e o manto havia uma descontinuidade. Em homenagem ao descobridor. ela foi batizada com o nome de Mohorovicic. Até 1936, supunha-se que o núcleo era fluido Naquele ano porém, a sismóloga dinamarquesa Inge Lehman, hoje com 99 anos, revelou após estudos de ondas sísmicas que o núcleo tinha também uma parte interna sólida.
Para descobrir de que é feito e o que acontece no miolo da grande cebola — o interior do núcleo —, os cientistas levaram em conta o efeito de um fenômeno natural muito estudado desde o século XVI: o campo magnético terrestre. Atualmente, os geofísicos estão convencidos de que ele é gerado no núcleo externo, mediante um processo semelhante ao de um dínamo só que contínua — os dínamos que se conhecem são descontínuos —, onde a energia mecânica se transforma em energia eletromagnética. Essa é uma das razões pelas quais os cientistas supõem que o material do núcleo interno deva ser metálico, pois precisa conduzir eletricidade para fazer funcionar o dínamo.
Tal teoria se encaixa na análise sismológica: a velocidade das ondas de choque que os terremotos produzem ao atravessar o núcleo revela uma densidade que corresponde à do ferro submetido a pressões como as que existem nas regiões centrais do planeta. A esta evidência junta-se o fato de que no Universo conhecido não existe outro material com tais características em quantidade suficiente para constituir uma alternativa. Daí se consolidou a idéia de que o núcleo é feito essencialmente de ferro, embora também existam nele elementos mais leves, como sílicio, enxofre, oxigênio, potássio, entre outros. Sabe-se com certeza que a pressão do material do núcleo aumenta de acordo com a profundidade.
Essa pode ser uma das razões que explicam por que o núcleo externo é líquido enquanto o interno é sólido — a elevadíssima pressão impediria que ele se fundisse. A questão da pressão e da temperatura sempre foi muito discutida, e a cada dia que passa os cientistas conseguem vencer barreiras nas suas experiências a esse respeito. No início de 1987, por exemplo, os pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Califórnia conseguiram determinar a temperatura do interior da Terra fazendo a seguinte experiência: primeiro, comprimiram uma amostra de ferro entre dois pequenos cones de diamantes, acionados por uma enorme prensa, até alcançar 1,4 milhão de atmosferas — de acordo com os cientistas, essa seria a pressão na fronteira entre o núcleo externo e o manto.
O segundo passo foi aplicar um raio laser na amostra para aquecer o ferro até o ponto de fusão. Verificou-se então que o metal fundia a 3 500 graus — enquanto sob a pressão atmosférica o ferro funde a 1500 graus. A etapa seguinte foi descobrir a temperatura no limite do núcleo sólido com o liquido, onde a pressão alcança 3,3 milhões de atmosferas — algo como a inimaginável pressão que 3 300 carros exerceriam sobre uma superfície do tamanho de uma unha. Para isso, os cientistas dispararam um projétil movido a hidrogênio contra a amostra, comprimindo-a e aquecendo-a até que atingisse seu ponto de fusão.
Não conseguiram chegar aos 3,3 milhões de atmosferas, mas deduziram que a temperatura, ali no limite entre o núcleo externo e o interno, estaria por volta de 6 300 graus, no âmago do núcleo, seria de 6 600 graus, mais até que na superfície radiante do Sol. Esses novos dados aumentaram em 2 mil graus as estimativas de temperatura que vigoravam até então. Entre os dados obtidas com essas experiências, um em especial se destaca: o possível aumento da influência do núcleo nos processos que ocorrem no manto, que abrange a região que vai da divisa do núcleo externo até a descontinuidade de Mohorovicic. O que os cientistas conhecem sobre o manto baseia-se no material que os vulcões expelem e nas cordilheiras vulcânicas do fundo oceânico, além do estudo de certos meteoritos.
Sabe-se que o manto é composto de silicatos, um material mais leve que a liga de ferro do núcleo e que não aparece de maneira uniforme, pois à medida que a profundidade aumenta o mesmo acontece com a temperatura e a pressão. Por isso, os cientistas dividiram o manto em dois níveis: o inferior e o superior, cada qual composto de minerais diferentes. “Uma camada notável do manto superior é a astemosfera”, diz o professor Igor Pacca, “situada a 250 quilômetros de profundidade.” Mesmo sólida, possui plasticidade suficiente para permitir o movimento de placas que estão acima dela.
Esse movimento é responsável pela deriva continental, que faz com que os oceanos cresçam e os continentes se afastem cada vez mais uns dos outros. De fato, sem o oceano a separá-las, as costas da África e da América do Sul se encaixariam perfeitamente, como num quebra-cabeça. A teoria da deriva dos continentes foi proposta em 1912 pelo meteorologista alemão Alfred Wegener, mas até os anos 50 ficou à espera de uma explicação. Afinal, qual seria o mecanismo que fazia massas de terra tão imensas se deslocarem? Experiências realizadas já então demonstraram que os sólidos cristalinos fluiam como líquidos quando se encontravam a temperaturas próximas do ponto de fusão.
Isso levou o geofísico holandês Felix Vening-Meinesz a elaborar a teoria de que na astenosfera ocorriam fortes correntes ativadas por diferenças de temperatura: os materiais quentes subiam e os frios desciam. A teoria do geofísico holandês foi reforçada nos anos 60, quando se descobriu que a crosta oceânica se renovava sem cessar com deslocamentos horizontais a partir das cordilheiras vulcânicas do Atlântico. Nesse movimento, elas liberam material quente do manto, e voltam a submergir. Isso ocorre, por exemplo, sob a cordilheira dos Andes. Mas foi só há poucos anos que se comprovou definitivamente a presença dessas correntes e sua influência na deriva dos oceanos.
A moral da história é que, mesmo não sendo possível o acesso direto ao interior da Terra, os avanços tecnológicos têm permitido aos cientistas ampliar os conhecimentos sobre sua estrutura, constituição e evolução — além de compreender melhor os fenômenos que ocorrem na superfície e afetam a vida em todas as suas formas.
Para saber mais:
(SUPER número 10, ano 4)
Procura-se um buraco de 200 quilômetros
(SUPER número 10, ano 5)
(SUPER número 1, ano 7)
Los Angeles: o perigo está em toda parte
(SUPER número 3, ano 8)
(SUPER número 8, ano 10)
Programas de brasileiros
No final de 1987, trinta estudantes freqüentavam o primeiro curso de graduação em Geofísica no Brasil. O curso começou em 1984, na Universidade de São Paulo. Dos vinte alunos que então se matricularam quatro terminaram o curso. Todos já têm emprego garantido: dois ficam no Instituto Astronômico e Geofísico e dois vão para grandes empresas. Afinal, mão-de-obra especializada nessa área é difícil, e empresas como a Petrobrás e a Nuclebrás sempre tiveram de investir alguns anos no treinamento desses profissionais. Eles vinham geralmente de áreas como a Engenharia e a Física e depois se especializavam.
Além das informações que os cientistas obtêm estudando os fenômenos físicos que ocorrem abaixo da superfície, as perfurações são uma rica fonte de dados. Só que exigem avançada tecnologia — e muito dinheiro. Por um motivo e por outro, é difícil ao Brasil lançar-se em experiências de sondagens profundas. Mesmo assim, os brasileiros têm participado de projetos internacionais com o objetivo de pesquisar as peculiaridades geológicos do território.
Eles estão presentes nessas operações desde os anos 70, quando foi lançado o Programa Internacional de Geodinâmica, um portentoso projeto integrado por pesquisadores de mais de cinqüenta países, que estudou principalmente os processos que modelaram a superfície da Terra. Depois, no final de 1980, veio o Programa Internacional de Estudos da Litosfera, que deve se estender pela década de 90. Um de seus coordenadores é o professor Umberto Cordani, diretor do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo. As informações levantadas por programas internacionais como esse não têm interesse exclusivamente acadêmico: servem, por exemplo, para auxiliar prospecções de petróleo na plataforma continental.