PRORROGAMOS! Assine a partir de 1,50/semana

Unschooling: o movimento de pais que tiram seus filhos do colégio

Mais de 2.500 famílias instruem suas crianças fora das salas de aula – e fora da lei. Entenda a discussão por trás do tema.

Por Alice Ribeiro, editado por Tiago Jokura
Atualizado em 8 Maio 2020, 10h40 - Publicado em 15 set 2015, 17h30

“Minha filha não sabe o que é ser obrigada a acordar cedo, colocar uma mochila nas costas, estudar o que um professor decidiu que ela deveria saber e ter de fazer uma prova para mostrar do que é capaz”, conta Cleber Nunes sobre a filha Ana, de 8 anos. “Nessa idade, o único compromisso de uma criança é brincar. Ela aprende só o que acha interessante. E, mesmo assim, fazemos com que isso faça parte da brincadeira. Sem agenda. Sem ritmo.” 

O que Cleber ensina neste depoimento é o princípio do unschooling – desescolarização, em tradução livre -, prática que consiste em expor a criança ao mundo, perceber seus interesses e facilitar para que cada situação seja uma chance de aprendizagem. Tudo isso fora da escola – e da lei.

No Brasil, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) afirma ser dever dos pais ou responsáveis matricular os menores na rede regular de ensino a partir dos 4 anos. Foi com essa idade, e sem nunca ter pisado em uma sala de aula, que Ana Nunes aprendeu a ler. Caçula de uma família de Timóteo, município mineiro com pouco mais de 80 mil habitantes, ela nasceu para não ter matrícula. Por causa do bullying e da violência no ambiente escolar – e por julgar o conteúdo das aulas fraco -, Cleber já havia tirado os filhos mais velhos do ensino fundamental.

E ele não está sozinho. No Brasil, estima-se que cerca de 2.500 famílias instruam os filhos assim. Em todo o mundo, mais de 60 países permitem ensinar em casa. Na lista estão Reino Unido, Canadá, Rússia, Austrália e França. Nos EUA, mais de 2 milhões de crianças não frequentam a educação regular.

“As famílias têm, cada vez mais, uma vontade de não terceirizar a educação dos filhos. É preciso entender, porém, que a desescolarização não é apenas sair da escola, mas tirar a escola de dentro da gente”, afirma Patrícia de Caires Sogayar, cofundadora do programa Famílias Educadoras, que reúne pais e mães dispostos a criar ambientes que promovam a aprendizagem a partir do interesse dos filhos.

“Tudo passa por eliminar a fragmentação do aprendizado, deixar a potência da criança florescer. Quando o interesse parte dela, ela ganha outro brilho no olhar. A vida passa a ser o currículo.” No início deste ano, por exemplo, Ana ficou tão entusiasmada com a multiplicação dos números que os pais introduziram a lógica dos gráficos. Ela adorou. Sem preocupação com a idade “adequada” para travar contato com qualquer tipo de conteúdo, a garota devorou A Volta ao Mundo em 80 Dias, romance de aventura de Julio Verne. A mãe, Beth, aproveitou o itinerário de Phileas Fogg para apresentar o mapa-múndi à filha e contar um pouquinho da história dos países que o inglês visitou à caça do ladrão que subtraiu 55 mil libras do Banco da Inglaterra.

Ana viaja pela literatura estrangeira e por planos cartesianos sem desconfiar que também está sendo caçada. Saber onde fica Calcutá sem ajuda do Google não vale nada para que o Estado considere que ela esteja sendo instruída. No ano passado, ao constatar que ela não estava matriculada, o Conselho Tutelar avisou o Ministério Público. A promotora conheceu a menina, mas ainda não emitiu parecer. Cleber, escolado no assunto, não teme. Quando não matriculou Davi e Jônatas, a história foi a mesma.

Continua após a publicidade

Entre a denúncia, em 2006, e o veredicto, em 2010, ele tentou convencer o juiz de que cumpria os objetivos pedagógicos com os filhos: submetidos a um teste de conhecimentos, os dois fizeram mais pontos do que o estipulado. Não adiantou. Cleber foi condenado por abandono intelectual, crime que prevê pagamento de multa ou um mês de prisão. Como protesto, até hoje não pagou os R$ 500 da sentença.

Desta vez, antecipando-se ao que a Justiça pode decidir sobre Ana, ele redigiu uma carta ao Ministério Público argumentando que “o direito à escola não pode ser confundido com a imposição de frequência escolar”. O documento foi enviado a outras famílias que respondem à Justiça para ser encaminhado como referência de defesa. É uma tentativa de criar jurisprudência – conjunto de decisões que sirvam como referência para orientar juízes em casos semelhantes -, uma vez que, com a pulverização das iniciativas, o Judiciário não tem um padrão para reagir às denúncias.

Mas também é uma mostra de força do movimento, hoje representado pela Associação Nacional de Ensino Domiciliar (Aned), fundada em 2010. A entidade promove encontros de pais e apoia famílias com suporte jurídico. Além disso, pressiona o Congresso para aprovação do projeto de lei 3.179/12, que regulamenta a educação domiciliar no País. A proposta do deputado federal Lincoln Portela (PR-MG) é de que estudantes possam aprender em casa, supervisionados e avaliados periodicamente.

Com nota 450 na prova e 500 na redação do Enem, é possível concluir o ensino médio ser ter ido à escola.

Licença para estudar

No Brasil, há só um caso de unschooling aprovado pela Justiça. Em Maringá (PR), o pedagogo Luiz Carlos Faria da Silva e a esposa Dayane podem educar em casa os filhos Lucas, 16 anos, e Julia, 15. Assim que não renovou a matrícula das crianças, em 2007, o casal foi denunciado. Após algumas audiências, o juiz liberou que os filhos estudassem em casa, mas com avaliações anuais e acompanhamento pedagógico e psicológico.

Em oito anos, a família nunca seguiu currículo fixo. Para aprender matemática, Lucas e Julia fizeram Kumon – método japonês que incentiva a autonomia nos estudos. As aulas de inglês eram com uma professora particular. Geografia, História, Ciências e Literatura foram aprendidas no dia a dia: o terraço do prédio em que moram, por exemplo, foi a sala de aula onde compreenderam o amanhecer e o poente.

Continua após a publicidade

O restante do tempo foi preenchido com cursos de balé, de natação e de música – oportunidades para que eles socializassem. Mais recentemente, a dupla começou a assistir a videoaulas gratuitas. No fim do ano passado, Lucas prestou o Enem e conseguiu pontuação para obter o certificado de conclusão do ensino médio e entrar em uma universidade.

Antes da faculdade, no entanto, os irmãos devem cabular mais um pouco: a ideia é morar um tempo fora do País, em algum projeto de intercâmbio ou de voluntariado. Ao avaliar a decisão de anos atrás, Luiz acredita ter escolhido certo, mesmo que isso tenha interrompido a carreira da mulher.

“Nunca imaginamos isso. Tínhamos expectativas boas e pesquisamos muito para encontrar a melhor escola. Quando os matriculamos, achávamos estar fazendo o melhor. Até notarmos que não queríamos aquilo para eles.” O pedagogo refere-se a valores morais que considera inadequados mesmo em instituições confessionais, como o colégio católico em que os filhos estudaram. “Eles ficavam assustados com a indisciplina, com amigos que não respeitavam crianças com deficiência.”

Liberdade controlada

A decepção de Luiz costuma motivar outro tipo de educação caseira: o homeschooling. Nesse modelo, os pais seguem o currículo escolar em casa, com horários estipulados de estudo e metas de aprendizagem. Muitos dos adeptos fazem essa opção para educar os filhos longe do bullying e de um ensino religioso que a família desaprove.

Em um mapeamento feito com 62 famílias brasileiras – fazer esse tipo de pesquisa é difícil, já que vários entrevistados agem na clandestinidade – o pesquisador André de Holanda Padilha Vieira, da Universidade de Brasília (UnB), construiu um retrato do homeschooling no Brasil. Quase todos os pais-educadores são casados e têm escolaridade superior à média nacional. Em 70% das famílias, as mães encabeçam a educação caseira, enquanto os pais têm ocupação fora do lar; em 84% dos casos, os pais estabelecem um período diário de aprendizagem de até quatro horas.

Continua após a publicidade

A família de Eliseu Moreira Júnior, 20 anos, encaixa direitinho nesse perfil. Quando tinha 8 anos, os pais tiraram os três filhos da escola. Os irmãos, Samir, com 7 anos, e Hadassa, 10, não gostaram e voltaram às aulas. Vítima de provocações por ser negro e tímido, Eliseu aprovou. “Foi bom me livrar do bullying, mas não foi isso que motivou meu pai. Ele queria preservar nossa fé. Não concordava com muitas coisas do colégio e temia que fôssemos influenciados.”

O pai organizou um calendário com horários e conteúdo. Coube à mãe, Maria Neide, que havia cursado o magistério, virar professora dos filhos. A partir do ensino médio, cada um estudava sozinho as disciplinas que precisava para o vestibular. Com ideia fixa de cursar Medicina, Eliseu comprou aulas virtuais de Química, Física e Matemática.

Em 2013, fez 920 pontos na redação do Enem, mas a nota da prova não foi suficiente. No ano passado, dedicou-se mais às disciplinas de Exatas, melhorou o desempenho e ingressou na Universidade Estadual de Santa Cruz, na região de Itabuna (BA), onde vive a família.

Agora, a fama do futuro médico que passou no vestibular sem frequentar o colégio cresce na cidade. E faz discípulos. “Quando meus pais trouxeram a escola para casa, só eles faziam isso por aqui. Agora são muitos, mas ficam calados, se escondendo do Conselho Tutelar.”

Já não se discute a capacidade familiar de garantir o aprendizado e a socialização dos filhos fora da escola. O debate atual é sobre quem deve decidir pelo ensino caseiro: filhos ou pais?

A toda prova?

O rendimento acadêmico de Ana e Eliseu, assim como as atividades socializantes de Lucas e Julia, respondem aos questionamentos mais comuns dos pedagogos na época em que o ensino caseiro engatinhava no Brasil, no início dos anos 2000. Atualmente, já não se discute a capacidade das famílias de garantir o aprendizado e a socialização dos filhos fora da escola.

Continua após a publicidade

No entanto, outras questões mais complexas e sutis vêm à tona. Pedagoga da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), Luciane Muniz Ribeiro Barbosa defendeu, em 2013, uma tese de doutorado sobre o ensino domiciliar no Brasil. Ao acompanhar o desenrolar jurídico de alguns casos e compará-los a experiências internacionais, a pesquisadora chama a atenção para pontos pouco discutidos, como a não participação dos filhos na escolha por estudar na escola ou não e o cardápio restrito de conteúdo oferecido a eles em casa.

Em relação à opção por ensinar em casa, Luciane acredita que boa parte dos pais considera a própria má experiência como estudante para decidir não matricular os filhos na rede de ensino. “O ideal é que a decisão seja dos filhos. No Canadá, conheci uma mãe que fazia homeschooling com a criança mais nova, que não se adaptou à escola. As duas mais velhas adoravam o colégio e nunca saíram. Isso é respeitar a liberdade da criança”, diz Luciane.

Também em nome da liberdade, esses pais tentam oferecer experiências que potencializem o aprendizado de temas que interessem aos filhos. A intenção é boa, mas a prática pode ser limitadora. “Não necessariamente a criança terá interesses em coisas que não conhece. Um estudante cuja família estimule o estudo das artes e das humanidades pode não ter a chance de aprender conceitos de química ou biologia. E se um dia ele pensar em ser médico ou farmacêutico?”, questiona a educadora. “Será que no unschooling a gente também não está tolhendo ou limitando as possibilidades da criança?”

São questões que deveriam ser consideradas caso o Brasil optasse por regulamentar a escola em casa, uma vez que o Estado seria responsável por prover estrutura para avaliação acadêmica e psicológica dos alunos. E aí surge a terceira ponderação da pesquisadora: o custo da regulamentação do ensino domiciliar.

“Os países que já têm o básico, como acesso de todos à escola e qualidade na educação, estão livres para custear alternativas. Com a educação do jeito que está, o governo deve investir nisso ou gastar com melhorias básicas da rede pública?” Em casa ou na sala de aula, soltos na rua ou amarrados a conteúdos curriculares, parece que todos ainda temos muito a aprender.

Continua após a publicidade
Tá em casa
No Brasil, estima-se que 2,5 mil famílias eduquem os filhos fora da escola. Veja quais são os países com mais estudantes caseiros:*
EUA: 2 milhões
África do Sul: 150 mil
Rússia: 70 a 100 mil
Reino Unido: 20 a 100 mil
Canadá: 80 a 95 mil
França 12 a 23 mil*Fonte: Associação de Defesa do Ensino Domiciliar (HSLDA), EUA.
Publicidade


Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY
Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

Apenas 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 10,99/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.