Geração de bisbilhoteiros
Olhar o outro com curiosidade é natural, compreensível e pedagógico. Mas quem fica obcecado em devassar a intimidade alheia esquece de cuidar da própria vida
Texto Marcos de Moura e Souza
Na noite de 10 de janeiro, televisores de 5,4 milhões de residências em São Paulo e de 3,4 milhões no Rio de Janeiro estavam sintonizados na estréia da sexta edição do programa Big Brother Brasil, da Rede Globo. Desde que transmitiu o primeiro reality show, há quatro anos, a emissora atrai milhões de espectadores. Somente na última edição, nada menos que 115 mil assinantes de canais fechados em todo o país compraram pacotes para ter acesso 24 horas por dia ao que se passava na casa. Não é pouca coisa quando se considera que, no fundo, o que se oferece é a chance de o público bisbilhotar a vida alheia. Para psicólogos e psiquiatras, olhar o outro é algo natural, compreensível e até pedagógico. Mas há quem afirme que os reality shows, os blogs, o Orkut, os milhares de sites disponíveis para voyeurs e a proliferação de câmeras de vídeo ligadas à internet ajudam a formar uma geração com um gosto exagerado pelo voyeurismo. Pela definição do Manual de Diagnósticos e Estatísticas de Transtornos Mentais, da Associação Americana de Psiquiatria, voyeurismo são impulsos sexuais ou comportamentos que causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo, durante no mínimo seis meses, ligados a fantasias sexualmente excitantes envolvendo o ato de observar uma pessoa que está nua, se despindo ou em atividade sexual sem suspeitar que está sendo observada. Esse comportamento leva os voyeurs a só se excitarem olhando e, assim, chegam a trocar o ato sexual pela mera observação. Geralmente, o tratamento inclui terapias e até o uso de moderadores do apetite sexual. São diagnósticos relativamente raros.Não se trata do caso das pessoas que grudam os olhos na TV para acompanhar um reality show ou são fissuradas por sites de gente que se exibe a uma webcam. “Não é que essas pessoas sejam voyeurs, mas naquele momento elas têm um comportamento voyeurista”, diz a psicóloga e terapeuta sexual Ana Canosa, diretora-editora da Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana. “A geração atual, que é bombardeada por imagens de consumo e de prazer a todo momento, está formando uma sociedade com um comportamento mais voyeurista e mais exibicionista”, afirma Ana. Tal comportamento pode ser negativo principalmente em quem já tem dificuldades para interagir e se relacionar com os outros.
Experiência por tabela
Olhar o outro é algo próprio da natureza humana e pode ser explicado de maneiras distintas. Uma delas: o que nos leva a observar as reações alheias é um mecanismo funcional por meio do qual usamos a experiência do outro para validar nossos referenciais, aprender com as punições ou copiar modelos bem-sucedidos. Esse processo pode se dar quando estamos no cinema, lendo um livro, ouvindo uma história sobre alguém ou até assistindo ao Big Brother. A psicologia dá a isso o nome de “experiência de vicariância”. Significa fazer a função do outro, substituir. No sentido médico, significa usar da experiência do outro como se fosse a sua, viver uma experiência qualquer por tabela.
Mas o que é um mecanismo natural se torna algo prejudicial quando exagerado. “Quanto mais a pessoa vive a vida dos personagens, menos vive a própria vida. Quanto mais obtém prazer olhando a vida alheia, menos encontra prazer olhando a sua própria”, diz o psiquiatra Eduardo Ferreira-Santos, do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Outra maneira de explicar a bisbilhotice recorre a uma tese freudiana de fundo sexual. Pense nos que compram um pacote na TV por assinatura para ter acesso total ao Big Brother. Será que eles só desejam ficar a par das briguinhas entre os participantes? Pense num homem que mira com um binóculo o apartamento da vizinha. Ele busca apenas momentos nos quais ela lê ou faz o jantar? “As pessoas também querem ver intimidade”, diz Ana Canosa.
O prazer da visão
Cenas de conteúdo sexual sempre foram um forte estimulante da libido. No início do século passado, Sigmund Freud tentou explicar esse fato ao afirmar que todos nascemos com uma pulsão sexual, sentida logo nos primeiros dias de vida. Mas antes que essa pulsão seja descarregada nos órgãos sexuais, os bebês a desviam para outras pulsões, como a da fome – pela boca – ou da imagem da mãe se aproximando – pela visão. O que se argumenta é que os adultos que crescem com uma tendência acentuada de se excitar por meio do olhar podem ter sido crianças que descarregaram suas pulsões sexuais iniciais preferencialmente na visão. Seria o caso dos voyeurs clássicos – aqueles que precisam de ajuda médica. E talvez também seja o caso dos aficionados por reality shows, Orkut, webcams e outros canais modernos que permitem bisbilhotar a intimidade alheia. É uma tese.
Muito tempo depois de Freud, a neurociência encontrou uma base fisiológica para seus apontamentos. Descobriu que o cérebro possui uma estrutura do tamanho de uma noz chamada amídala, responsável por disparar várias sensações, entre elas a da excitação sexual. E um dos mais poderosos gatilhos da excitação são justamente cenas de sexo ou que remetam ao sexo. “A reação observada na amídala quando uma pessoa está diante da uma cena de sexo é a mesma de quando a pessoa está fazendo sexo”, afirma Suzana Herculano-Houzel, professora-adjunta do Departamento de Anatomia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutora em neurociência, Suzana diz que um estudo mostrou que essa reação cerebral acontece mais nos homens do que nas mulheres.
Seja qual for o interesse que nos leva a espiar o outro, os meios tecnológicos para fazer isso são mais variados do que nunca. A janela indiscreta que o cineasta Alfred Hitchcock filmou em 1954 deu lugar a webcams ou câmeras fotográficas digitais usadas por viciados em ver sem ser vistos. “Não sei se há uma geração de voyeurs sendo formada, mas não há dúvida de que a tecnologia está facilitando esse comportamento”, diz o psicólogo clínico Aílton Amélio da Silva, professor de relações amorosas do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Para ele, a facilidade de observar o outro em várias situações pode inicialmente representar, para muitas pessoas, um bloqueio. “Depois pode ser um estímulo e, por fim, pode levar a uma banalização e cansar”, afirma.
BBB é fichinha
“O que vemos à noite nãose compara ao Big BrotherBrasil”, diz casal de swinger
Por um vão na janela semi-aberta do quarto, Pedro olha um casal fazendo sexo. Em outro momento, sua mulher apenas assiste, num sofá num canto do quarto, a uma cena parecida. Os dois formam um dos muitos casais swingers de São Paulo. E, como todos os swingers, experimentam o voyeurismo em sua expressão máxima. Apelidados de Pedro e Loba no circuito swinger, eles têm 40 anos e visitam uma vez por mês casas de trocas de casais da cidade. “As casas têm um esquema para facilitar a visualização e ao mesmo tempo para torná-la meio secreta. Quem se deixa ver é visto geralmente por uma treliça, por uma fresta ou por um buraco na parede”, conta Pedro. Sua mulher diz que algumas pessoas preferem ficar atrás de cortinas observando sorrateiramente a atividade sexual dos outros. “É um jogo. É a mesma história do Big Brother. Você sabe que tem alguém querendo ser visto e, do outro lado, uma pessoa que tem prazer em olhar”, diz Pedro. “Há também casas que permitem voyeurismo num espaço aberto. Um sofá na parede de onde se pode ver, sem nenhum obstáculo físico, as pessoas fazendo sexo.” Há três anos, quando entraram no universo do swing, Pedro e Loba descobriram que sentem prazer em ver um ao outro se satisfazendo com outras pessoas. “Tenho essa faceta voyeur. O grande interesse é olhar o parceiro tendo prazer. Curto, acho bonito. É como assistir a um bom filme”, diz Loba. “É o playground da sensualidade feminina.” É esse mesmo prazer propiciado pela visão que leva muitas pessoas a visitarem pela primeira vez uma casa de swing. Antes de começar a praticar, Pedro e Loba estiveram por três ou quatro vezes visitando casas, apenas observando os outros. “A maioria vai pela primeira vez dizendo que só quer ver, mas acaba se envolvendo”, diz Pedro. Ele conta que nunca havia sentido antes um interesse especial pelo voyeurismo. Já havia observado com uma luneta moradores de um prédio ao lado, assistira a filmes pornográficos, bisbilhotara sites em que as pessoas se exibiam por meio de uma webcam e acompanhara algumas cenas de reality shows. Um de seus filmes favoritos? Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock. Nada disso, porém, fazia dele um caso clínico. Mesmo depois de passar a freqüentar casas de swing, Pedro afirma que nem ele nem sua mulher se tornaram obcecados pela prática e que não dependem dela para sentir prazer a dois. Mas desde que começou a praticar swing e a exercitar de maneira mais intensa seu lado voyeur e hedonista, Pedro perdeu o interesse por filmes pornôs e nem dá bola para reality shows. Sua visão aprendeu a se saciar com outro padrão de imagens. “Sem dúvida, não dá para comparar o que passa no Big Brother Brasil com o que vejo à noite numa casa dessas.”