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Mentiras da memória sincera: falsas recordações de traumas

Só nos Estados Unidos, são 3000 casos nos tribunais baseados no depoimento de gente que garante ter recuperado lembranças traumáticas. São acusações de estupros e abusos sexuais. Bom para a Justiça? Nem tanto. Muitas dessas recordações podem ser memórias imaginárias. E o acusador nem sabe que está mentindo.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h49 - Publicado em 31 dez 1994, 22h00

Carlos Eduardo Lins da Silva, Lúcia Helena de Oliveira

Nos Estados Unidos, há em pendência na Justiça pelo menos 3000 processos ativados pela suposta recordação de lembranças reprimidas na infância. Claro que a recordação dos traumas é útil para o esclarecimento de uma série de crimes. Mas pode ser uma armadilha. À ciência cabe o papel importante de definir, nesses casos, o que é uma lembrança reprimida verdadeira, que acabou sendo recuperada, e o que é memória falsa implantada. Sim, porque às vezes um cidadão pode se “lembrar” com detalhes de um fato que nunca aconteceu. Aí o sujeito vai lá, diz a verdade (ele está sendo absolutamente fiel à sua memória) mas, sem saber, está contando uma mentira (a memória dele é que não é nem um pouco fiel à realidade).

Nunca se falou tanto de falsas memórias como agora nos Estados Unidos. Em maio do ano passado, na Faculdade de Medicina da Universidade Harvard, dezenas de neurologistas, psiquiatras e biólogos se reuniram para discutir o problema de quem tem recordações mentirosas. As conclusões estão longe de ser definitivas. O conhecimento científico atual ainda não consegue determinar quando uma lembrança é falsa ou verdadeira. É necessário mais empenho para desvendar como o processo da memória funciona.

É bem verdade que já se sabe alguma coisa sobre os mecanismos de memorização. Sabe-se, assim, que, ao se guardar alguma coisa na memória, as células do cérebro mudam de comportamento. Podem enfraquecer, ou reforçar, os contatos que mantinham com outras células — chamados sinapses.

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Com isso, surgem dois tipos de memória: a de curto prazo e a de longo prazo. A primeira é o tipo que se usa para guardar um número telefônico apenas para discá-lo — em seguida, ele pode ser esquecido. Essa memória não altera a estrutura das sinapses. Já a memória de longo prazo, duradoura, provoca mudanças, aumentando a eficiência da transmissão de sinais entre as células cerebrais.

Além disso, em cada um dos dois tipos, a memória se subdivide em duas formas: a implícita e a explícita. A implícita lida com o conhecimento inconsciente, com as habilidades motoras e de percepção. Por exemplo: um adulto só sai andando pelo mundo porque um dia, quando ainda era um bebê, aprendeu a caminhar e guardou esse conhecimento na memória implícita – ele não tem consciência de que está se recordando desse aprendizado a cada um de seus passos. A memória implícita ou inconsciente é trabalhada em diversas áreas cerebrais, em especial numa delas, conhecida como amídala.

Já a memória explícita é processada numa região chamada hipocampo e depois vai para o córtex, a superfície cerebral que funciona como sede da consciência. Esse outro tipo de memória tem a ver com o conhecimento consciente de informações, pessoas, lugares — o que você aprende na escola é guardado como memória explícita.

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Na prática, porém, as coisas não são tão fáceis de ser rotuladas, pois as diversas partes do cérebro comunicam-se entre si. A amídala e o hipocampo podem mandar mensagens um para o outro. Um exemplo: alguém se fere num acidente de carro em que a buzina dispara. Mais tarde, esse indivíduo pode vir a ter uma reação emocional sempre que ouvir aquele som. A lembrança do acidente é clara, porque foi guardada na memória explícita (no hipocampo). Mas, quem sabe, não exista a consciência de que a buzina estava tocando quando tudo aconteceu e que esse é o motivo do medo ou do susto, toda vez que escuta o seu barulho. Porque esse detalhe da buzina disparada ficou na memória implícita (na amídala). “A memória sempre registra cada detalhe de uma cena qualquer”, explica a psicóloga paulista Elisabete D. R. Pimentel. “Mas só temos lembranças conscientes de parte deles.” E o risco surge quando uma memória falsa é confundida com algo que foi recuperado do inconsciente.

Uma das razões pelas quais certas pessoas não se lembram de experiências traumáticas da infância é que a região cerebral do hipocampo, ligada à consciência, leva tempo para amadurecer e formar memórias acessíveis. A amídala amadurece mais cedo e armazena memórias implícitas (inconscientes) desses eventos.

“Os elementos registrados nessa memória inconsciente, traumáticos ou não, irão se expressar nas funções psíquicas e comportamentais do indivíduo”, diz a psicóloga Elisabete Pimentel. Para a Psicanálise, algumas lembranças, em especial as dolorosas, podem ser mantidas no inconsciente por representarem uma ameaça. “É um mecanismo de autopreservação”, explica Elisabete. “Pois, se não há um preparo para se ter consciência das informações reprimidas, a vivência delas é como um pesadelo insuportável.”

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O médico vienense Sigmund Freud (1856-1936) foi o primeiro a se interessar pela “paisagem nublada das memórias reprimidas”, como dizia. Também foi pioneiro em descrever que o inconsciente pode embaralhar lembranças reprimidas e lembranças falsas, as fantasias, como mostra o filme de John Huston, Freud Além da Alma.

Freud concordava que no momento em que a pessoa está “pronta”, essas memórias podem vir à tona, até de maneira espontânea. Foi o que aconteceu com o americano Frank Fitzpatrick, um corretor de seguros de 38 anos, que recordou ter sido molestado sexualmente pelo padre James Porter, trinta anos antes. A lembrança veio numa noite mal dormida, em que o som da respiração do próprio Fitzpatrick o fez reviver o arfejante sacerdote. O episódio do passado acabou sendo comprovado por depoimentos.

Em outro caso, a americana Eileen Franklin se lembrou que seu pai estuprou e assassinou uma amiga dela, vinte anos antes. A recordação veio quando sua sobrinha gesticulou como sua colega, ao tentar se defender dos golpes. Evidências materiais provaram que a lembrança era verdadeira e, em 1990, George Franklin, pai de Eillen, se tornou a primeira pessoa nos Estados Unidos condenada por uma acusação baseada em memória recuperada. O problema todo é que, às vezes, uma provável memória recuperada não passa de uma fantasia.

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O que acontece no cérebro quando as lembranças são reprimidas? Segundo um trabalho da neurologista Michela Gallagher, da Universidade da Carolina do Norte, em situações de pavor, o organismo despeja substâncias similares ao ópio na amídala cerebral. Chamadas opiáceos endógenos, elas enfraqueceriam o processo de memorização, aparentemente para reduzir o medo e a dor. A lembrança fica, então, atenuada na amídala e, com isso, diminui também a sua transmissão para o hipocampo — ou seja, para a consciência.

Mas o acontecimento aterrorizante, que não chega a se transformar em memória explícita, pode permanecer como memória implícita associada a alguma sensação física ou a gestos que, mais tarde, quando experimentas de novo, desencadeiam a recuperação das lembranças. Eis por quê memórias reprimidas podem se tornar nítidas de uma hora para outra.

Às vezes, porém, a situação “recordada” com nitidez impressionante não passa de uma memória implantada — fenômeno para o qual os cientistas começam a encontrar explicações. Em maio do ano passado, Gary Ramona obteve a primeira condenação de psicólogos, nos Estados Unidos, acusados de implantar memórias. Os terapêutas tiveram de pagar 500 000 dólares a Ramona, por terem induzido sua filha, Holly, a “lembrar” de supostos abusos sexuais praticados por ele, seu pai, quando ela era criança. Ramona provou que os incidentes alegados nunca ocorreram.

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Segundo o pesquisador Stephen Kosslyn, da Universidade Harvard, a mesma área cerebral que percebe uma imagem captada pelo olho e a armazena na forma de memória também se encarrega daquilo que imaginamos — como o rosto de uma pessoa que ainda não conhecemos, mas que foi descrito por alguém. Trata-se da chamada região temporal mediana. Talvez, especula Kosslyn, o fato de visões reais e visões imaginárias serem guardadas no mesmo canto cerebral possa provocar confusões. Então, se perderia a noção daquilo que verdadeiramente foi visto e o que foi imaginado. Alguns estudos recentes mostram que é possível implantar memórias com assustadora facilidade. Especialmente em crianças. Experiências com meninos em idade pré-escolar mostram que eles tendem a relatar como fatos verdadeiros histórias que lhe foram sugeridas por seus entrevistadores. A repetição de perguntas sobre eventos irreais leva as crianças a acreditarem que tudo é real.

Elizabeth Loftus, da Universidade de Washington, implantou memórias em adultos normais, entre 18 e 63 anos de idade. Quando a mentira era sugerida por pais e amigos próximos desses voluntários, o enxerto de memórias foi mais rápido. É ainda mais fácil implantar memórias quando a pessoa está sob o efeito de hipnose ou de drogas como o sódio amital e o sódio pentotal, conhecidos por soros da verdade. Embora essas substâncias sejam desaconselhadas pela Associação Médica Americana, muitos psicólogos ainda as empregam nas sessões de análises.

O perigo é óbvio. As vidas de pessoas respeitáveis podem ser destruídas. O cardeal de Chicago, Joseph Bernadin, passou três meses sob suspeição no início do ano passado. Um homem de 34 anos disse ter sido violentado por Bernadin, 17 anos antes. Depois, o mesmo homem retirou a acusação, afirmando que tinha se enganado. Achar que os processos baseados em memória sempre envolvam esse tipo de engano é um erro. Corre-se o risco de não levar em conta as memórias reprimidas, permitindo que crimes fiquem impunes. O próprio cardeal Bernadin alertou para essa possibilidade, depois de ter se livrado do problema.

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