A Rússia contra a arte
A prisão da banda Pussy Riot não é fato isolado, mas o auge da ofensiva contra os artistas russos. Conheça as batalhas dessa guerra
Marina Darmaros, de Moscou
“Virgem Maria, livrai-nos de Putin!” O refrão ecoou pela igreja, surpreendendo crentes, turistas e seguranças. No principal templo ortodoxo de Moscou, roqueiras com meias-calças, vestidos e balaclavas de cores vivas bradavam contra o então premiê russo. Durou menos de um minuto. Foi o suficiente para que o Pussy Riot, misto de banda punk, grupo de protesto e coletivo de arte, ganhasse outra face: inimigo de Estado.
Criado em 2011, o Pussy Riot é composto por um conjunto indeterminado e variável de roqueiras que atuavam sempre mascaradas. Cada nova criação coletiva era apresentada em “turnês ilegais” – performances com guitarras em locais polêmicos que depois viravam clipes no YouTube. Gravado em 21 de fevereiro de 2012, o minishow da Catedral de Cristo Salvador fez sucesso. Talvez sucesso demais.
Em março de 2012, a polícia foi atrás do grupo. Duas fugiram da Rússia e três foram presas. Do trio, uma foi libertada após sete meses e outras duas foram condenadas a dois anos de prisão por “desordem motivada por ódio religioso”. O grupo voltou às manchetes em novembro de 2013, quando uma das presas, Nadezhda Tolokonnikova, 24, fez greve de fome e desapareceu. Quase um mês depois, o governo esclareceu que, à moda soviética, a moça tinha sido mandada para a Sibéria. “Durante 26 dias, a gente não sabia se ela estava viva ou não”, disse à SUPER o pai dela, Andrêi Tolokônnikov. Por sorte, a família é da região. “A Nádia (apelido de Nadezhda) está a um quilômetro da casa da minha mãe. Um milagre!”, diz o pai.
Os protestos internacionais não comoveram o agora presidente. “Elas tiveram o que pediram”, disse Vladimir Putin. Palavras que explicam por que os artistas russos, dos quais o Pussy Riot é só um expoente, enfrentam um longo e tenebroso inverno.
Crime e castigo
O pai de Nadezhda, cujo nome significa “esperança”, mostra de onde veio o batismo da filha. “Apesar de não ser modesto da minha parte, eu acredito que as meninas do Pussy Riot vão ser canonizadas pela Igreja. Não agora, mas daqui a uns 200 ou 300 anos, quando a Igreja não for mais um mero instrumento de poder do Putin e da KGB”, diz o médico aposentado.
Se no comunismo a Igreja Ortodoxa era perseguida, desde a queda do regime ela está com e no poder. Substituiu-se a ideologia do partido pela religião.
O crítico de arte Andrêi Erofeev compartilha da ideia: “O fato de botarem na prisão as meninas do Pussy Riot é um retorno ao pico da sociedade soviética. O que não é nada inesperado, porque na liderança do nosso país está um homem totalmente soviético, com uma mentalidade soviética e costumes soviéticos, que não conseguiu mudar”. Diretor de novas tendências de uma aclamada galeria de Moscou, ele foi demitido em 2008. Seu pecado foi reunir peças banidas de outras mostras que criticavam sobretudo o governo e a Igreja – e as estranhas relações entre os dois. Entre elas, colagens da dupla de artistas Narizes Azuis, que misturavam fotos da dupla com cabeças de Jesus e Putin. Assim como as Pussy Riot, Erofeev pagou: em 2010, ele e o diretor do museu que recebeu a exposição foram declarados culpados de incitar o ódio religioso e receberam multas de R$ 12 mil e R$ 15 mil cada um.
Mas seu julgamento não passou em branco. Durante uma sessão em 2009, o coletivo Voiná (“Guerra” em russo ), de onde saíram as fundadoras do Pussy Riot, realizou dentro do tribunal uma de suas ações bombásticas. “Assim que o juiz anunciou o início da sessão, o coletivo ligou o equipamento no volume máximo e tocou um show punk completo, chamado `F*da-se a polícia, esses patrões filhos da put*¿. Foi um protesto de verdade contra a repressão”, conta Aleksei Plutser Sarno, um dos líderes do Voiná. “Todos os shows do Pussy Riot são um remake do nosso concerto no tribunal. De alguma maneira, toda a poderosa onda de protesto da década de 2010 é, em algum ponto, mérito nosso”, acredita Sarno.
Já em 2010, Piotr Verzilov, marido de Nádia e então integrante do Voiná, soltou 1.500 baratas gigantes dentro do tribunal, visando atrapalhar o pronunciamento da sentença. Em vídeos divulgados na internet, ele aparece saindo do prédio do tribunal escorraçado por policiais, enquanto é amaldiçoado por fanáticos ortodoxos com longas barbas e roupas de couro – parecendo mais motoqueiros do que religiosos.
Acusado de delatar outros integrantes do Voiná, Piotr tornou-se persona non grata no grupo, mas, antes disso, ele, a mulher e outras Pussy Riot realizaram outras ações de impacto. A mais famosa foi a pintura de um pênis de 65 metros em uma ponte elevadiça de São Petersburgo que dava de cara para o FSB, órgão que substituiu a antiga KGB. De maneira inesperada, a obra apareceu e sumiu diversas vezes na lista de indicados ao prêmio estatal Inovação-2010, até ser anunciada vencedora, em abril de 2011. O Voiná doou à Ágora, organização de defesa dos direitos humanos, os 400 mil rublos do prêmio (cerca de U$ 13,5 mil.
Depois da performance-tumulto “Revolta Palaciana”, em 2010, em que tombaram carros da polícia contra a corrupção do órgão, dois membros do Voiná, Leonid Nikolaiev e Oleg Vorotnikov, foram detidos. Sarno, que não estava no apartamento no momento da busca, cruzou a fronteira e fugiu. “Um investigador confessou ao meu advogado que o convite para uma conversa na polícia era na verdade para me prender por organização de grupo criminoso. Pode-se pegar de 12 a 20 anos por isso. Para esse governo mafioso atual, artistas de protesto são grupos criminosos. Uma idiotice completa”, diz Sarno, que continua exilado.
Os demônios
Enquanto as traquinagens do Voiná ainda são passíveis de má interpretação e até de repúdio devido à depredação de patrimônio, a dupla Narizes Azuis dificilmente poderia ser acusada de violações penais do gênero. Mas nem por isso as obras de Viatcheslav Mizin e Aleksandr Shaburov ficam isentas de censura e repressão.
Em 2007, a dupla teve obras impedidas de deixar o país para participação em uma exposição na Maison Rouge, em Paris. Uma delas, Era da Compaixão, mostrava dois policiais trocando um beijo apaixonado em meio à taiga russa coberta de neve, enquanto a outra tinha Putin, George Bush e Bin Laden brincando de cueca em um sofá. Para o então ministro da cultura, as obras eram muito provocativas e seriam “uma vergonha para a Rússia”.
A mordaça imposta aos Narizes Azuis não parou por aí. Em setembro de 2013, quatro pinturas dos rapazes foram apreendidas no Museu do Poder, em São Petersburgo. Elas retratavam de maneira caricata o presidente Putin e o premiê Dmítri Medvedev em lingeries, zombavam com os sonhos eróticos de Elena Mizulina, deputada que defende os “valores tradicionais” no país e que propôs um polêmico projeto de lei contra a “propaganda gay”, além de reproduzir o Patriarca Kirill (o papa ortodoxo) coberto de tatuagens de prisioneiro.
“Nos últimos tempos, o nível de liberdade na Rússia piorou significativamente. Pode-se ver um endurecimento da censura sobre a arte contemporânea por toda a parte”, diz o artista petersburguense Piotr Pavlênski. A primeira performance de Piotr a chamar a atenção da mídia aconteceu durante os julgamentos do Pussy Riot, quando ele se postou diante da catedral de Kazan, em São Petersburgo, com a boca costurada com linha preta e uma placa onde se lia: “A ação do Pussy Riot foi um remake da célebre ação de Jesus Cristo (Mateus 21:12-13)” – trata-se do episódio em que Jesus expulsa os comerciantes do Templo de Jerusalém. Piotr foi levado para um hospital psiquiátrico.
Já em Moscou, em novembro passado, seu destino foi o mesmo depois de Fixação, em que martelou um prego de 20 cm nos próprios testículos, prendendo-os ao chão da Praça Vermelha. “Um artista nu, olhando para seus próprios ovos pregados aos paralelepípedos, é uma metáfora à apatia, à indiferença política e ao fatalismo da sociedade russa atual”, explicou depois. Acusado de vandalismo e libertado um dia depois, ele agora enfrenta um processo que pode lhe render até três anos de prisão. Ninguém pode dizer que o rapaz não tinha culhões.
Guerra… E paz?
“Os russos sempre tiveram a cultura sob suspeita. Os artistas sempre foram pessoas perigosas, destruidoras da tranquilidade. Desde os tempos soviéticos, caçou-se tais baderneiros”, diz Erofeev. Mesmo assim, um futuro próximo deve ver a anistia de presos políticos no país – o que inclui gente como o magnata do petróleo Mikhail Khodorkóvski. E as duas Pussy Riot ainda encarceradas, Nadezhda Tolokonnikova e Maria Aliôkhina.
Os rumores circulavam desde setembro de 2013 até que, no começo de dezembro, após uma reunião de Putin com o delegado de direitos humanos da Rússia, a mídia passou a prenunciar a liberdade das duas. Em 18 de dezembro, dia em que esta edição foi para a gráfica, saiu a confirmação oficial de que Nadezhda e Maria deveriam ser libertadas até o Ano Novo.
A libertação das Pussy Riot pode ser usada como símbolo de democracia e benevolência russa às vésperas das Olimpíadas de Inverno de 2014, que ocorrerão no início do ano em Sôtchi, no sul do país. Mas as duras leis de repressão das liberdades individuais aprovadas no atual mandato de Putin não deixam dúvidas de que a anistia poderá ser tão de fachada quanto os tribunais do ditador Josef Stálin.
Para Andrêi Tolokônnikov, pai da Pussy Riot Nádia, esse conflito entre o governo e os artistas ainda é reflexo de um país que não deixou totalmente de lado seu passado totalitário. “O que acontece agora já aconteceu no século 20, na URSS, até na Alemanha Nazista. Os russos devem aprender a se sentir indivíduos, entender o que é ter suas próprias coisas.”
Realmente, a Rússia ainda tem muito passado pela frente. Em 2010 foi o centenário da morte de Lev Tolstói, um dos maiores escritores da Rússia e do mundo. Pois em um país em que os gigantes das letras ganham homenagens a cada década de morte ou de vida, o centenário de Tolstói foi ignorado pelas autoridades. Por quê? O autor de Guerra e Paz foi excomungado em 1901 e até hoje é tido como herege pela novamente poderosa Igreja Ortodoxa Russa. Resta torcer para que Tolstói um dia receba a anistia concedida às Pussy Riot.
Piotr Pavlênski
Artista de São Petersburgo.
Ações – Em 2012, costurou a boca em apoio ao Pussy Riot. Em 2013, pregou seus testículos no chão da Praça Vermelha.
Destino – Encaminhado a hospitais psiquiátricos após cada performance. A da praça lhe rendeu um processo por vandalismo, pelo qual poderá ser condenado a até três anos de prisão.
Pussy Riot
Misto de banda punk com coletivo de arte e ativismo político formado por feministas ex-Voiná em 2011.
Ações – Fazem shows em lugares proibidos, sendo que a maior polêmica veio com uma oração punk dentro da Catedral do Cristo Salvador em 2012.
Destino – Três integrantes foram condenadas e duas ainda estão presas por incitar ódio religioso.
Voiná
Coletivo de arte-protesto criado em 2008. Em português, o nome do grupo significa “guerra”.
Ações – Show de punk dentro de um tribunal em sessão (2009), pintura de um pênis em ponte elevadiça de São Petersburgo (2010), tombamento de carro da polícia com policial dentro (2010).
Destino – Alguns de seus integrantes se exilaram. Outros foram presos, pagaram multas e, soltos, fugiram da Rússia com passaportes falsificados. A perseguição policial gerou desentendimentos internos no grupo, que está desmantelado, com diferentes integrantes se proclamando responsáveis por sua continuidade.
Iúri Samodurov
Defensor dos direitos humanos, ex-diretor do Museu Sakharov, em Moscou (1996-2008)
Ações – Organizou uma exposição com obras banidas de outros museus.
Destino – Condenado por “incitar o ódio religioso”, pagou multa de R$ 15 mil e acabou pedindo demissão ao ver uma nova exposição nos mesmos moldes ser negada pelo museu.
Andrêi Erofeev
Crítico de arte, ex-diretor de novas tendências da Galeria Tretiakov (2002-2008)
Ações – Curadoria da exposição com obras banidas.
Destino – Foi processado e condenado a pagar uma multa de 150 mil rublos (R$ 12 mil) por “incitar o ódio religioso”. Além disso, foi demitido da galeria Tretiakov, uma das principais do país.
Narizes Azuis
Dupla formada por Viatcheslav Mizin e Aleksandr Shaburov iniciada em 1990.
Ações – Sua obra que retrata dois policiais se beijando na neve foi considerada “uma vergonha para a Rússia” pelo ministro da cultura.
Destino – Continuam a expor e causar polêmica. Em setembro, tiveram quatro obras em que zombavam de figuras públicas apreendidas.