Tudo começou com uma invasão americana.
Foi em 1915, quando os Estados Unidos costumavam tratar os países do Caribe como seu playground, que fuzileiros navais americanos ocuparam o Haiti, e de lá não saíram até 1934. A tradicional instabilidade política do país – nada menos que seis presidentes subiram ao poder e foram derrubados entre 1911 e 1915 – estava ameaçando os interesses econômicos dos EUA, segundo avaliou o governo do presidente Woodrow Wilson, e a solução foi transformar o Haiti numa espécie de colônia extraoficial. Durante quase 20 anos, soldados e civis americanos tiveram contato direto com as crenças populares “exóticas” (como eles as definiam) da nação caribenha – entre elas, a ideia de que os mortos podiam voltar à vida de um jeito nada agradável.
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Assim, graças a uma aventura neocolonialista, as histórias de zumbis deixaram de ser basicamente uma especialidade haitiana e invadiram os pesadelos do Ocidente. Mas nossos mortos-vivos, que são sujeitos extremamente adaptáveis, como você já sabe, logo deixariam para trás a ginga africana para adotar outras origens e personalidades, bem mais aterrorizantes.
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O mais interessante, segundo os que estudam o fenômeno cultural dos mortos-vivos, é que cada nova encarnação dos monstros parece acompanhar os grandes temas e as angústias de uma época, da Guerra do Vietnã à guerra ao terror. Parece forçada de barra? Pois então acompanhe os detalhes dessa história nas páginas a seguir e depois tire suas próprias conclusões.
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Gringos com medo
Os zumbis adentraram a cultura pop de um jeito diferente de outros monstros populares da modernidade, como os vampiros e os lobisomens. É o que afirma o especialista americano Kyle William Bishop, professor do Departamento de Língua Inglesa da Universidade do Sul de Utah. Bishop, que se autodenomina o “Dr. Walking Dead” em seu Twitter, explica que os zumbis passaram de modo quase direto do folclore para as telas do cinema, sem antes terem vivenciado (ou “morrenciado”?) uma fase literária, diferentemente do que aconteceu com o Conde Drácula, que primeiro foi retratado num romance do irlandês Bram Stoker.
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Na verdade, embora não tenham tido uma “infância” literária, os zumbis figuraram inicialmente em meios jornalísticos e até científicos. Quando viajantes americanos começaram a visitar o Haiti nos anos seguintes à ocupação militar, as criaturas apareceram em The Magic Island (“A Ilha Mágica”), livro-reportagem sensacionalista do jornalista William Buehler Seabrook publicado em 1929, e Tell My Horse (“Diga ao Meu Cavalo”), sofisticado ensaio da antropóloga negra Zora Neale Hurston que saiu em 1938. O objetivo desses livros, ao menos em princípio, era simplesmente descrever as crenças e os costumes daqueles misteriosos haitianos.
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Os anos 1930, no entanto, também foram a primeira Era de Ouro do horror cinematográfico, conta Kyle Bishop em seu livro American Zombie Gothic (“Zumbi Gótico Americano”). Os diretores estavam sempre em busca de um novo monstro para estrelar suas fitas (como se dizia na época e o Zé do Caixão ainda diz), e foi então que os zumbis, em sua encarnação haitiana, entraram nessa lista.
A questão, porém, é que a sociedade americana dessa época era profundamente racista e funcionava na base da segregação racial institucionalizada em grande parte de seus Estados. Trocando em miúdos: era muito difícil que negros conseguissem entrar nos mesmos restaurantes, nas mesmas escolas e até nos mesmos ônibus que os brancos, independentemente de seu nível financeiro ou de educação. O linchamento sumário de supostos criminosos afroamericanos era relativamente comum.
E o principal crime do qual esses coitados costumavam ser acusados era o estupro de uma mulher branca, algo visto como pior que a morte nessa época.
Durante a Guerra Civil dos EUA, conflito entre o norte e o sul do país cujo pomo da discórdia foi justamente a continuidade da escravidão, os adversários do presidente republicano Abraham Lincoln, o líder do norte, diziam que seu objetivo sórdido ao defender os escravos era “misturar as raças”. “Diziam que ele ia organizar ‘bailes da miscigenação’, no qual negros fariam sexo com brancas”, diz o historiador David Blight, da Universidade Yale (EUA). Previsivelmente, o primeiro filme de zumbis dessa história dramatiza justamente esse temor irracional dos brancos americanos.
Não é à toa, portanto, que o filme, lançado em 1932, tenha recebido o título de Zumbi Branca. Isso porque, na trama que tem como vilão o húngaro-americano Béla Lugosi (eternizado no papel de Drácula), tudo gira em torno da tentativa de transformar uma bela americana, prestes a se casar, numa morta-viva sexualmente escravizada por um feiticeiro haitiano. (O noivo da moça se alia a um missionário protestante para tentar salvá-la, uma alegoria nada sutil do combate do cristianismo contra as “trevas” da crença vodu.)
Outro filme da mesma safra, A Morta-Viva, também tem como centro da trama a transformação de uma jovem branca em zumbi, embora sua trama seja menos abertamente preconceituosa com os nativos do Haiti.
Da geladeira ao estrelato
Curiosamente, os zumbis passaram as duas décadas seguintes meio esquecidos. Em seu lugar, alienígenas e cientistas malucos se tornaram os principais vilões do horror hollywoodiano. Mas esses anos, por outro lado, também ajudaram a gestar o que seria uma ideia central da moderna mitologia zumbi: a da catástrofe apocalíptica na qual uma doença misteriosa transforma a quase totalidade da população mundial em monstros.
Essa é a premissa de Eu Sou a Lenda, romance do americano Richard Matheson publicado originalmente em 1954, e inspiração para o filme de mesmo nome estrelado por Will Smith em 2007. OK, é importante ressaltar que as criaturas que tentam destruir o último humano sobrevivente da Terra em Eu Sou a Lenda se comportam como vampiros, e não como zumbis “clássicos”, mas o isolamento do personagem principal e o comportamento de manada assassina dos antigos habitantes de sua cidade, entre outras características marcantes dessa ambientação, acabaram inspirando um certo George Romero.
Esse jovem diretor de comerciais, fã de Eu Sou a Lenda, fez uma vaquinha com os amigos e colegas, chegando a um orçamento final de US$ 114 mil – o que dá uns US$ 750 mil em dinheiro de hoje, mas mesmo assim uma ninharia para os padrões de Hollywood – e filmou A Noite dos Mortos-Vivos. Lançada em 1968, a fita em preto e branco ajudou a estabelecer de forma quase instantânea as regras do “subgênero zumbi”: a criação dos monstros não é sobrenatural, mas mais ou menos explicada por causas “científicas”; os zumbis são canibais (os mortos-vivos haitianos não comem carne humana); um pequeno grupo de sobreviventes é cercado numa casa e precisa enfrentar tanto os zumbis quanto outros humanos.
Críticos de cinema imediatamente associaram a violência e o preconceito (contra o herói negro do filme) presentes em A Noite dos Mortos-Vivos com traumas americanos recentes, como a Guerra do Vietnã e o assassinato do líder negro Martin Luther King Jr. Romero reconheceu a influência desse momento histórico violento em sua obra. É claro, no entanto, que a molecada que lotou os cinemas queria mesmo era ver canibais sanguinolentos.
O sucesso foi tamanho que, ao longo dos anos 1970, surgiram imitadores de todos os tipos, inclusive em países como Espanha e Itália (era o fenômeno dos filmes “zumbi espaguete”, mais ou menos como os “faroestes espaguete” feitos em estúdios italianos). O processo atingiu seu pico por volta de 1980, ano em que 15 diferentes filmes de zumbis foram produzidos, segundo as contas do pesquisador Kyle Bishop.
Em geral, essa foi uma era de zumbis relativamente sérios e assustadores, mas os anos 1980 veriam o surgimento dos mortos-vivos mais engraçadinhos, desde o clipe da canção “Thriller”, de Michael Jackson, até A Volta dos Mortos-Vivos, de 1985, primeiro filme a retratar zumbis devoradores de cérebros (e não só de carne humana de modo geral). Segundo os especialistas, um período de economia em alta fez as pessoas perderem o interesse nos zumbis “críticos sociais”. Depois disso, a coisa foi meio ladeira abaixo. Em meados dos anos 1990, não havia zumbis nas telas.
Ao mesmo tempo, porém, o gênero começava a ser revitalizado no mundo dos games, com o surgimento de jogos como a série Resident Evil em 1996. Os jogos zumbizescos foram ganhando cada vez mais adeptos – e o tema se tornou mais uma vez popular no cinema a partir do começo da década passada.
Para Bishop, os atentados de 11 de setembro de 2001 podem estar por trás dessa “Renascença Zumbi”: de repente, para o público ocidental, o fim do mundo nas mãos de forças assassinas voltava a ser um conceito plausível. Seja como for, os últimos anos viram algo em torno de 30 filmes sobre mortos-vivos a cada 12 meses, uma média sem precedentes, para não falar no sucesso das HQs The Walking Dead e da série de TV inspirada nelas. Pelo visto, os mortos ainda têm um longo trajeto a caminhar no meio de nós.
Pornografia zumbi invade as telas
Uma vez que você começa a conceber a existência de gente apodrecendo e caindo aos pedaços andando por aí, o céu é o limite quando se trata de bizarrice. Surgem então sub-subgêneros do filme de zumbi, como a “zombédia” (a comédia zumbi) e, socorro, até o “zombô” (pornô zumbi).
O próprio clássico A Volta dos Mortos-Vivos é um dos grandes exemplos de “zombédia”. Um exemplo mais recente é Dead Snow (“Neve Morta”), de 2009. A premissa do filme? O diretor norueguês Tommy Wirkola estava pensando consigo mesmo: “O que seria mais malévolo do que um zumbi? Já sei, um zumbi nazista!”. E filmou a história de soldados nazistas transformados em mortos-vivos que atacam jovens noruegueses. Um ano antes, saía uma “zombédia” com um pezinho no “zombô”: Zombie Strippers, estrelado pela ex-atriz pornô Jenna Jameson. E sim, conforme o nome sugere, as strippers viram zumbis e continuam se apresentando mesmo assim na história.
O rei do zombô foi o diretor italiano Joe D’Amato, morto em 1999. Ele filmou, por exemplo, Porno Holocaust, no qual o zumbi de uma ilha misteriosa, dono de um pênis gigantesco, primeiro estupra e depois mata as infelizes mulheres que vão parar no local.