Espiritualidade: A genética da fé
O biólogo americano Dean Hamer causa polêmicacom sua tese de que o código genético de uma pessoadetermina o tamanho de sua fé. Mas, afinal, de ondevem a espiritualidade e para que ela serve?
Texto Carla Aranha
Você às vezes sente uma conexão intensa com todos à sua volta (e não só quando exagerou na bebida ou está desfilando na Salgueiro)? Também tem um forte sexto sentido, acredita em milagres e ama sentir o perfume das flores? Sim? Então, parabéns: você é um ser altamente espiritualizado – ao menos segundo os parâmetros do biólogo americano Dean Hamer, doutor pela Universidade de Harvard e autor do polêmico O Gene de Deus (Mercuryo, 2005), que vem provocando debates no mundo todo.
As perguntas anteriores fazem parte de um questionário criado pelo psiquiatra americano Robert Cloninger, da Universidade de Washington, e utilizado por Hamer para medir o grau de espiritualidade de 1001 voluntários que participaram das pesquisas que deram origem ao seu mais recente estudo. A partir das respostas obtidas, Hamer separou as pessoas que tinham uma pontuação maior ou menor e estudou as diferenças genéticas entre os grupos. Ele acredita ter descoberto um conjunto de genes que tornaria o ser humano predisposto a ter experiências sensoriais, como acreditar em Deus e professar uma religião. Em seu estudo, o biólogo apregoa com todas as letras que o código genético do indivíduo determina o tamanho da sua fé.
Pronto. Estava lançada uma das maiores controvérsias dos últimos tempos. Seu ponto nevrálgico é que, para antropólogos, filósofos e psicanalistas que estudam o tema, a biologia não é capaz de explicar algo complexo como a fé, e muito menos um questionário teria condição de medir o grau de espiritualidade. Para início de conversa, dizem esses estudiosos, a própria definição de fé não é tão simples como pode parecer à primeira vista.
“Existe a crença em Deus, que todo mundo conhece, e também o que chamamos de ‘fé antropológica’, que é a esperança depositada na evolução do espírito humano ou em conceitos como a democracia e a justiça social”, diz Antônio Carlos Magalhães, coordenador de pós-graduação de ciências da religião da Universidade Metodista, de São Bernardo do Campo (SP). “Nesse sentido, a crença é algo inerente ao ser humano, quer você acredite ou não em Deus. Não podemos esquecer que uma pessoa pode ser atéia e mesmo assim ter essa fé antropológica”, afirma. Segundo Magalhães, querer estudar esse fenômeno com parâmetros matemáticos da ciência provavelmente não vai levar a lugar algum. “Não sou biólogo e não posso julgar trabalhos nessa área, mas existe um consenso de que a espiritualidade tem explicações culturais e psicológicas, e não da ordem da biologia”, diz.
Ciência e espiritualidade
Outros especialistas são menos cautelosos e criticam, para valer, a intromissão da ciência no mundo espiritual. “Estamos falando de um fenômeno social, de algo que foi construído pelo homem, e quem não enxerga isso fica nadando na superfície ou, quem sabe, é movido por outros interesses”, critica Eric Gans, lingüista e editor do jornal de antropologia da Universidade da Califórnia, um dos maiores especialistas do mundo em estudos da religião. Ele sabe do que está falando. Os Estados Unidos são líderes em número de pesquisas que tentam ligar ciência e espiritualidade.
Magnatas americanos religiosos vêm destinando milhões de dólares a estudos que buscam provar que o homem é programado para acreditar em Deus. O milionário John Templeton, de 92 anos, é um dos que financiam essas pesquisas – destina cerca de 40 milhões de dólares todos os anos a profissionais e instituições que aceitam a tarefa. Mas dentro do próprio país e no meio médico, há quem erga a voz contra essa onda. “A ciência é uma disciplina que demanda medições precisas de fenômenos, e as dimensões da consciência humana não podem ser medidas dessa forma”, afirma o médico Jerome Groopman, um defensor de explicações mais humanistas para o funcionamento da mente.
Groopman é apoiado por antropólogos, psicólogos e filósofos. Para esses profissionais, a fé, no além ou em nós mesmos, é uma construção da mente, algo extremamente ligado ao próprio desenvolvimento do homem. Sem a invenção da linguagem, por exemplo, sustentam esses especialistas, a espiritualidade não poderia existir. Para complicar, os antropólogos acreditam que tanto a fala quanto a fé e sua representação por meio de rituais teriam surgido ao mesmo tempo. “Afinal, a espiritualidade, que é algo abstrato, não poderia ter aparecido sem que houvesse um sistema de códigos para expressá-la, ou seja, a linguagem”, diz Gans. Na ótica da antropologia, a linguagem e a fé fazem parte da condição humana – sem elas o homem não seria homem. Se a espiritualidade tem uma explicação genética, a fala também precisaria ter.
Enquanto isso, continuam os estudos que investigam a fundo os meandros da espiritualidade, chave para se entender o funcionamento da mente humana. Para a psicologia, a crença no eterno serviu, desde os primórdios, para que o homem superasse alguns conflitos dramáticos e pudesse seguir em frente. Forças maléficas presentes em todos nós, como o instinto assassino e a rivalidade, seriam de alguma forma controladas pela experiência mística. É essa a visão da psicanálise sobre a fé.
Sentimento de culpa
Para os psicólogos modernos, a espiritualidade também foi um bom canal para o homem desaguar a culpa inconsciente causada por sentimentos como a inveja ou o desejo de ter a mãe ou o pai só para si. “Essas culpas, difusas e sem rosto por não serem conscientes, podiam gerar uma grande angústia, capaz até de tornar o homem inapto para o trabalho. Era preciso transformá-la em algo palpável”, afirma o psicanalista francês Jean-Paul Kornobis, da Sociedade de Psicanálise da França. Colocar esse medo primitivo e sem forma no temor a Deus – ou ao Diabo – é um jeito, segundo Kornobis, de controlar um sentimento que, caso contrário, poderia ser altamente paralisante para a espécie humana. “O homem foi encontrando maneiras de contornar suas piores idiossincrasias”, diz o psicanalista.
Na visão dos filósofos, o mais importante é que a conexão com o plano etéreo alivia o medo da morte, que seria a maior fonte de angústia do ser humano. A crença em Deus ajudaria o homem a seguir adiante sem gastar muita energia se preocupando com o momento derradeiro de sua existência. “A fé religiosa oferece certamente esse conforto, além de agregar as pessoas, por meio dos cultos, e fazer com que não se sintam sós”, diz o teólogo e filósofo Deitmar Regensburger, da Universidade de Innsbruck, na Áustria. Ele enumera outras vantagens proporcionadas pela espiritualidade. A criação de uma ética válida para toda a comunidade, de leis e de regras de conduta que estipulavam até a punição para o defloramento de uma virgem – mesmo quando ele fosse consensual – seriam algumas das conseqüências práticas no dia-a-dia de se ter uma crença comum no plano espiritual. É só lembrar dos Dez Mandamentos e dos parâmetros para a vida em sociedade obedecidos por milhares de judeus, unidos sob a crença no mesmo Deus. “Claro que, se não fosse pela fé, talvez não tivéssemos conseguido viver harmoniosamente e dar prosseguimento a nossa espécie, mas para mim ela vem do campo emocional, e como tal não pode ser explicado pela genética”, afirma Regensburger.
O exercício da espiritualidade, dizem os especialistas, também acabou por reforçar conceitos como a solidariedade, fornecendo mais um mecanismo para o homem viver bem em sociedade. “Ao dividir o corpo de Cristo entre todos, por exemplo, com a hóstia, o homem divide simbolicamente a comida em vez de cair matando em cima dela”, diz o lingüista Gans.
A química do transe espiritual
Neurologista procura Deusno cérebro de religiosos emmomentos de intensa devoção
Para o neurologista americano Andrew Newberg, da Universidade da Pensilvânia, Deus está no cérebro. “Minhas pesquisas indicam que o único modo de compreender o Criador é por meio da química dos neurônios”, afirma. Em 2001, ele revelou os mecanismos da mente humana nos momentos de entrega espiritual. Por meio de tomografia computadorizada, examinou o funcionamento do cérebro de monges budistas em meditação e de freiras católicas durante suas preces.
No momento do transe, a área do cérebro responsável pelo sentido de orientação tem sua atividade reduzida, daí a sensação de desligamento com o corpo relatada por quem passa por profundas experiências espirituais. É o que contam sentir os religiosos que passam por experiências sensoriais. “No momento de uma longa prece, sinto um aquietar da mente, uma sensação de paz interior e elevação espiritual. E também um sentimento de plenitude, como se a presença do Criador estivesse permeando meu ser”, relatou uma freira americana que participou das pesquisas.
Segundo o neurologista, ao estudar a mecânica do cérebro durante os processos de meditação e transe, os cientistas pretendem compreender como as experiências religiosas afetam a psicologia e a saúde do homem. O modelo de funcionamento cerebral poderá explicar, por exemplo, por que as pessoas habituadas a meditar – ou rezar – geralmente não sofrem de depressão, têm pressão normal, baixa incidência de ataque cardíaco e pouca ansiedade.
Meça a sua espiritualidade
No questionário a seguir, criado pelo psiquiatra americano Robert Cloninger, assinale verdadeiro (V) ou falso (F). Some um ponto para cada afirmação verdadeira e confira o seu grau de espiritualidade
1. Costumo me sentir conectado às pessoas ao meu redor
V ( ) F ( )
2. Empenho-me em proteger o planeta, os animais e as plantas em extinção
V ( ) F ( )
3. Tenho fascínio por muitas coisas que podem ser explicadas cientificamente
V ( ) F ( )
4. Costumo ter revelações e insights quando estou relaxado
V ( ) F ( )
5. Me sinto conectado à natureza da qual tudo parece fazer parte, como se fosse um único organismo vivo
V ( ) F ( )
6. Sinto que tenho um sexto sentido
V ( ) F ( )
7. Às vezes sinto como se fizesse parte de uma estrutura sem fronteira entre espaço e tempo
V ( ) F ( )
8. Muita gente me chama de “mente ausente”, pois me envolvo tanto no que faço que me esqueço do resto
V ( ) F ( )
9. Costumo ter uma forte sensação de unicidade com as coisas que me rodeiam
V ( ) F ( )
10. Aprendi a confiar mais nos meus instintos do que na lógica
V ( ) F ( )
11. Sinto uma conexão espiritual forte com todos que me rodeiam
V ( ) F ( )
12. Quando me concentro em algo, perco a noção do tempo
V ( ) F ( )
13. Fiz sacrifícios pessoais para fazer do mundo um lugar melhor
V ( ) F ( )
14. Tive experiências que deixaram claro o meu papel na vida
V ( ) F ( )
15. Acredito já ter tido uma percepção extra-sensorial
V ( ) F ( )
16. Em momentos de alegria, tive a sensação profunda de unicidade com tudo o que existe
V ( ) F ( )
17. Às vezes tenho a sensação de ver tudo claramente pela primeira vez
V ( ) F ( )
18. Amo sentir o perfume das flores na primavera tanto quanto rever um amigo querido
V ( ) F ( )
19. Com freqüência me dizem que vivo em outro mundo porque estou alheio ao que ocorre ao meu redor
V ( ) F ( )
20. Acredito em milagres
V ( ) F ( )
Resultado
• 14 pontos ou mais Você marcou o grau máximo de espiritualidade. Pode ser o próximo Dalai Lama.
• De 12 a 13 pontos Você tem bastante consciência espiritual.
• De 8 a 11 pontos Você está na média, como a maioria das pessoas.
• De 6 a 7 pontos Você só acredita vendo, tem pouca fé.
• De 1 a 5 pontos Você é um cético, não acredita em nada que não possa ser provado.
Fonte: Robert Cloninger/Revista Time
“Nós não entendemos Deus. Nós o sentimos”
Para Dean Hamer, todos nós -incluindoos ateus – nascemoscom o gene da espiritualidade
O geneticista americano Dean Hamer, do Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos, vem se especializando em provocar polêmicas – e das grandes. Em 1993, ele causou uma enorme controvérsia ao divulgar a descoberta de uma seqüência de DNA que conteria genes responsáveis pelo homossexualismo – até hoje não comprovada cientificamente. A mais nova ousadia de Hamer foi transportar a genética para o campo da fé. No livro O Gene de Deus, publicado nos Estados Unidos em 2004 e no Brasil no ano passado, o cientista afirma ter descoberto um conjunto de genes que deixaria as pessoas predispostas à espiritualidade. A comunidade acadêmica em peso se levantou contra Hamer.
Alheio às críticas, o cientista diz só ter um ressentimento: não ser carioca, não morar no Brasil e não poder surfar todos os dias. Nesta entrevista a EMOÇÃO E INTELIGÊNCIA, ele conta que é apaixonado pelo Rio de Janeiro e por surfe, tanto que filmou aqui no ano passado o curta-metragem Favela Rocinha Bodyboarders, sem previsão de exibição no Brasil. “Vocês têm tudo, foram abençoados por Deus e pela genética”, brinca ao final do bate-papo.
De onde veio a idéia de que a fé teria uma explicação biológica?
Tudo começou com um estudo sobre preferências e traços de personalidade de fumantes que estávamos fazendo no Instituto Nacional do Câncer. Acabamos ouvindo muitas pessoas, para detectar a relação entre tabagismo e personalidade. Algumas perguntas eram sobre espiritualidade. Detectamos várias pessoas com o mesmo grau de espiritualidade e resolvi estudar o assunto. Analisamos seqüências de genes de 1001 pessoas e descobrimos um grupo deles, batizado de VMAT2, o Gene de Deus, responsável pelo funcionamento de substâncias químicas que levam o homem a transcender o cotidiano e se sentir mais em contato com o plano espiritual.
Como assim?
Estou falando das monoaminas, um grupo de substâncias que engloba, por exemplo, a dopamina e a adrenalina, excitantes naturais, e a serotonina, responsável pela sensação de prazer. As monoaminas também têm papel fundamental na construção da realidade, são elas que dão significado às nossas experiências. O VMAT2 regula as monoaminas e ajuda a determinar como percebemos as alterações da consciência que acontecem, por exemplo, durante transe religioso ou meditação. Somos não só programados geneticamente para sentir alegria, mas para ter experiências místicas. Há variações desse grupo de genes, por isso algumas pessoas são mais espiritualizadas e outras, menos. A constituição genética de uma pessoa tem papel definitivo na determinação do grau de espiritualidade. Nós não entendemos Deus. Nós o sentimos.
Mas onde entra a história de vida de cada um, a educação, o meio ambiente?
Não digo que esses elementos não sejam importantes, mas a genética é a base de tudo, ela é determinante. Também não podemos esquecer que a fé, acionada por esse circuito genético, facilitou a sobrevivência do ser humano nos primórdios da humanidade. A religião também ajudou as sociedades a se organizar, a obedecer a determinados preceitos, a evoluir, em suma, a garantir a perpetuação da espécie humana. E isso sem dúvida se deve à genética.
Antropólogos, teólogos e psicólogos acreditam que a fé e a religião são construções culturais, que nasceram junto com a criação da linguagem. Como o senhor vê essa questão?
O problema é que até hoje não se tinha pesquisado o código genético com o enfoque de se descobrir por que o homem tem fé. Então, ainda sabemos pouco sobre isso. Talvez exista um gene da linguagem. Não acredito que só a genética explique a religiosidade, mas com certeza ela tem um papel muito importante.
E os ateus, eles não teriam o gene VMAT2?
Todos nascemos com ele e temos a predisposição à espiritualidade. Mas exercemos essa capacidade, ou não.