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Noventa e nove

12.165 caracteres de literatura

Por Isa Prospero
Atualizado em 24 out 2020, 18h19 - Publicado em 26 fev 2018, 15h16

– Vovó, vovó!
Os gritos infantis se erguem com o abrir da porta. O rosto de Adriana se alarga num sorriso quando entra na sala e vê o garoto correndo até ela. Pega-o nos braços e o encaixa ao lado do corpo.
– Meu amor, senti a sua falta!
– Eu também, vovó!
Bracinhos gorduchos envolvem o pescoço dela. Perfeito, ela pensa, inundada de alívio. Ele é perfeito. Passa a mão pelo cabelo castanho e olha naqueles olhos curiosos e inteligentes.
– E o que você aprendeu hoje?
A tutora aparece nesse momento, uma mulher jovem, simpática, competente – e, o mais importante, acostumada com crianças como Edu. Alguém que possa certificar-se de que está tudo correndo como esperado.Adriana olha para o neto, que está dizendo:
– … e como se proteger da poluição. E a gente viu um holofilme sobre os animais antigos!
– Que bacana, querido. – Ela se vira para a mulher. – O dia foi tranquilo?
A outra assente com um sorriso gentil.
– Está tudo bem, sra. Adriana.

***

– Seu aniversário está chegando – ela diz ao neto. Eles estão sentados à mesa do café da manhã. Edu come com gosto, escolhendo seus preferidos: geleia, ovos, pãezinhos de verdade. O trigo orgânico está uma fortuna, mas ela não vai economizar nas coisas de que ele gosta. – O que você vai querer de presente?
Ele engole depressa e responde:
– Quero visitar a mamãe!
O sorriso dela não vacila. Adriana finge pensar sobre o caso, passa geleia numa torrada, faz um hum deliberativo.
– Talvez a mamãe não possa – ela diz. – Ela está muito ocupada.
A expressão do neto murcha como um balão sem ar. Ela sente um aperto no coração. Impotência diante da decepção dele. A raiva no peito é familiar.
– Mas eu vou falar com ela – promete. – Quem sabe ela não pode dar uma passadinha?
Edu sorri.

***

– Sofia.
– Mãe.
– Você está com uma cara péssima.
– E você não.
As conversas com a filha agora são assim: um bate e volta sem força, as alfinetadas já exauridas, nas entrelinhas. Adriana tinha parado de insistir; estava exausta daquelas conversas, e os ataques da filha a enchiam de preocupação. Uma vez Edu entrou na sala de comunicações e Sofia o viu pela tela; depois disso, se recusou a atender às ligações por meses.
Então Adriana cedeu, forçando-se a ser paciente. Achou que Edu fosse se acostumar à ausência da mãe. Mas fazia mais de um ano e o garoto não entendia.
– Como estão as coisas aí? – pergunta ela.
Sofia dá de ombros. Era uma menina tão bonita, uma jovem mulher cheia de vida, apesar de uma ou outra cirurgia necessária. Agora tinha olheiras permanentes, um olhar atormentado.
– Você está trabalhando?
– De vez em quando.
– Se precisar de ajuda, me avise.
Um suspiro.
– Não falta dinheiro, mãe.
– Claro que não.
Uma engenheira de sucesso, a filha patenteou um processo de produção de grãos sintéticos que a deixou rica e influenciou a decisão de ter um filho sozinha. Era bom saber que ela ainda recebia os lucros da invenção, mas Adriana não entendia como alguém podia ter todo aquele patrimônio e não o usar em benefício próprio.
– Sofia, ouça – diz ela. – Ele quer te ver.
Sofia estremece e vira o rosto. Responde num sussurro abafado:
– Mãe, pare com isso.
– Não posso! Ele não para de perguntar: “Por que a mamãe não vem me ver? Quando eu posso visitar a mamãe?” Ele tem fotos suas. Fica me contando as coisas que vocês fizeram juntos, suas brincadeiras, a vez que você o levou ao…
– Mãe – a voz fica mais forte, marcada por um tom de advertência.
– Quando você vai parar de ser teimosa?
Sofia volta a encarar a tela.
– Eu não quero ter essa conversa de novo. Eu te disse, desde o início, qual era a minha posição. A senhora passou por cima dos meus desejos quando fez o que fez. E eu avisei, eu disse que não queria ter nada a ver com isso!
– Uma garota inteligente como você, com uns preconceitos desses! Você, que sempre me acusou de ser retrógrada! – A raiva aflora. – A tecnologia existe a serviço da humanidade, para facilitar as nossas vidas e nos ajudar a evoluir como espécie…
– É isso que disseram à senhora naquele lugar?
– Você mesma trocou os pulmões quando era criança.
– Ah, mãe, isso é completamente diferente!
– Não é, não! Os médicos dizem…
– Os médicos – bufa a filha, e dá uma risada sem humor. – Não são médicos, são…
– Sofia, ele se lembra de tudo, ele sente a sua falta, ele…
– Cala a boca. – Ela fecha os olhos. – Você não faz ideia do esforço que me custa sequer olhar para a senhora.
– Pois eu estou cansada de você me olhar como se eu fosse uma vilã, quando tudo que eu quis foi facilitar as coisas pra você! Eu fiz a parte mais difícil, eu providenciei tudo! E não aguento mais ouvir minha filha falar comigo como se eu fosse uma criminosa, quando eu só queria ver meu neto!
Sofia abre os olhos e a encara. Eles faíscam do outro lado da tela, furiosos e terrivelmente frios.
– Se quer ver seu neto – diz a filha –, a senhora sabe onde ele está enterrado.

***

Noventa e nove
(Carlos Caminha/Superinteressante)

A primeira vez que foi ao Laboratório de Registros, estava presa num pesadelo e pronta a dar qualquer coisa para escapar dele. Então o dr. Franco projetou o Registro de Edu na tela do consultório e disse:
– Seu neto é um candidato perfeito ao procedimento.
Ela não conteve as lágrimas.
– É mesmo, doutor?
– Vimos que o Registro esteve em funcionamento constante desde o nascimento…
– Eu mesma dei o dispositivo – ela contou. Era o lançamento mais recente. O fato de estar registrado em nome de Adriana foi o que lhe permitiria iniciar aquele procedimento. – Todo ano atualizei, também. Só queria o melhor pra ele.
– Foi uma ótima decisão. Temos tudo de que precisamos para a recriação.
– Mas, doutor, ele… ele vai ser…
– Acredite, entendo seu receio. – O dr. Franco se inclinou para a frente, os cotovelos apoiados na mesa. Exalava uma calma segura, transmitia confiança em suas habilidades. – O procedimento ainda parece recente, se pensarmos que não existia até quinze anos atrás. Mas, antes de ser implementado, testamos o processo de recriação com sujeitos humanos, acompanhando-os ao longo de décadas para ver como as recriações evoluíam e se comportavam em relação às nossas projeções e aos indivíduos orgânicos. O resultado? Tanto mental como fisicamente, a taxa de compatibilidade era 99%.
Ela assentiu, ávida, absorvendo as palavras como um bálsamo, sentindo o fim daquele horror tão próximo que dava para tocar. Não gostava de pensar em testes ou cobaias humanas, nem de se perguntar como viviam as tais recriações ou se as pessoas originais ainda estavam vivas – mas, afinal, os Tratados Internacionais de Bioética estavam aí para garantir que tudo fosse feito humanamente, e Adriana tinha certeza de que tinha sido assim. Não era da conta dela, no fim das contas. Ela só queria um serviço.
– Então, só com o Registro, vocês têm tudo?
O doutor apontou para a tela.
– O Registro nos informa tudo que Eduardo aprendeu e falou em seus quatro anos de vida. Marca a velocidade e o nível do seu aprendizado, seus gostos e preferências, sua personalidade e suas lembranças. E, claro, suas características físicas, que, fora a predisposição a doenças genéticas, vamos manter. Ele terá um desenvolvimento absolutamente natural, como seria se não tivesse sido interrompido. – Ele olhou para ela novamente. – Encare a recriação como uma retomada do seu neto, não como uma nova pessoa. Hoje em dia, temos o privilégio de poder registrar cada momento da vida. O ser humano não é mais restrito ao invólucro do corpo.
– Sim – concordou ela. – É claro.
– O primeiro ano é o mais delicado; às vezes precisamos fazer ajustes, mas quanto mais jovem o paciente, maior a chance de sucesso. A senhora tem mais alguma pergunta?
Ela se aprumou na cadeira.
– Quando posso ver meu neto?

***

– Eu estou preocupada com você – Adriana dizia à filha.
– E eu me preocupo com a senhora – Sofia respondia às vezes, quando seu humor estava um pouco melhor. O que significava menos gritaria, só o cansaço emanando em ondas.
– Comigo está tudo bem – ela dizia. – Você não vê que está tudo bem?
Sofia balançava a cabeça.
– Não existem atalhos, mamãe.

***

Todo ano, ela precisaria levar Edu ao Laboratório, onde ficaria por algumas horas até sair – mais alto, um ano mais velho. Da primeira vez, Edu não entendeu bem o que estava acontecendo, mas, agora que tinha começado a socializar com as crianças do condomínio, percebia que não era igual a elas.
– Por que eu não vou pra escola, vovó?
– Porque certas crianças não… Não podem.
O que é um absurdo. Adriana tinha se unido à Sociedade de Pais de Recriações para lutar contra essa lei ridícula, mas por enquanto ainda havia muita desconfiança, mesmo nos lugares onde se esperava que a ciência fosse amplamente aceita. Havia a ideia de abrir uma escola só para recriações, mas eles estavam tendo dificuldade em conseguir aprovação governamental, já que os grupos antibiogenética eram muito influentes no Congresso. Ela limpa a garganta.
– Algumas crianças não precisam. Você vai aprender aqui em casa, com professores que a gente vai escolher juntos.
Ele também começava a ver que as outras crianças cresciam aos pouquinhos, não de uma vez.
– Estamos trabalhando nisso – explicara o dr. Franco –, mas programar o desenvolvimento ainda é um problema. Por enquanto, é mais seguro realizar a atualização anualmente.
Edu ia começar a se perguntar sobre isso e não haveria jeito: ela precisaria contar. O importante, tinha dito o psicólogo do laboratório, era deixar claro que a família o apoiava.
Isso talvez seja um problema, Adriana pensou.

***

Às vezes ela sonhava com aquela ligação, revivia a náusea que sentira ao encarar o olhar vidrado de Sofia.
– Filha, calma!
Ela tinha chamado a tutora aos gritos para levar Edu embora, depois trancado a porta para bloquear os sons da transmissão. Sofia andava de um lado para o outro na sua própria sala de comunicações, as mãos trêmulas se agitando, soluços dilacerando o corpo.
– Calma!
– Isso não é o meu filho! – Sofia berrava. – Isso não é o meu filho!

***

Edu aprende rápido. Não automaticamente, como os ignorantes dos antirrecriacionistas afirmam, como uma máquina, mas na sua velocidade normal. E a cada dia Adriana confirma que o trabalho foi perfeito. Nos quatro anos da vida orgânica do neto, ela viu suas dificuldades, e elas continuam aí – assim como as birras e os chiliques de criança. Agora, eles a acalmam. É uma pessoinha.
Adriana se maquia diante do espelho do quarto. Edu está afundado numa poltrona e se diverte com um joguinho no Registro manual. Todos os inputs vão ser enviados ao dispositivo em seu cérebro, claro, porque aquelas porcarias portáteis sempre dão umas panes e não se pode correr o risco de perder alguma coisa. Ela passa o batom, admirando o rosto de 77 anos que parece duas décadas mais jovem.
– Tá animado pra festa? – pergunta.
Ele ergue a cabeça.
– A mamãe vem?
– Ela… está muito ocupada. Mas mandou um beijo e falou que te ama muito.
Ela vê o biquinho dele pelo espelho.
– Você nem vai pensar nela, vai ser incrível – ela garante. – Seus amigos vão todos vir. E, olha, a vó estava guardando este aqui para uma ocasião especial!
Ela tira o perfume de uma caixinha antiga de madeira. Não o fazem mais; as flores amazônicas de que tiravam a essência se extinguiram. Um frasco hoje em dia custa os olhos e o resto da cara.
– É o perfume do vovô! – ele reconhece.
– Sim – ela ri. Lembra do marido, morto só dois anos antes de encontrarem a cura do câncer. Que época atrasada. Como vivíamos daquele jeito? – Era o preferido do vovô… e o seu também. – Ela lembra da última vez que o usou: o aniversário de 30 anos de Sofia. Pouco antes de Edu ser… interrompido. Tinha aconchegado o neto contra o peito. “Que cheiro gostoso, vovó”, ele havia dito.
Agora ela borrifa o líquido precioso no pescoço e nos pulsos e se vira.
– Vem cá!
O garoto larga o Registro e pula nos seus braços. Ela sente mãozinhas fazendo força contra seus ombros.
– Que foi? – ela pergunta.
– Cheira mal – ele reclama, o rostinho franzido numa careta. – Eca! – E vira a cara, se debatendo nos braços dela.
Adriana o põe no chão e larga o perfume na mesa. Vai até a cama. Senta-se. O menino termina de esfregar o nariz, então corre até ela, quase dando pulinhos. Está animado com o aniversário.
– Que foi, vovó? Por que tá chorando?
– Está tudo bem – ela diz, afagando os cabelos dele. “Perfeito.” – Está tudo bem.

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Isa Prospero é revisora e tradutora. Além do romance juvenil Volto Quando Puder (2016), tem contos de ficção especulativa publicados, e escreve sobre literatura no seu blog Sem Serifa.

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