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Outro livro nas entrelinhas

A obra-prima que levou densidade psicológica a uma era de romances água-com-açúcar

Por Alexandre de Santi (edição: Bruno Garattoni)
Atualizado em 26 out 2020, 15h20 - Publicado em 30 nov 2015, 18h45

Livro: Dom Casmurro
Autor: Machado de Assis
Ano: 1900
Por que ler? A suposta traição de Capitu é um mistério arrebatador há mais de um século.

Bento Santiago, o narrador do romance Dom Casmurro, é um advogado de meia-idade, herdeiro da elite fluminense, que decide contar suas memórias, em especial a suposta traição de Capitu, sua mulher, com Escobar, seu melhor amigo. Bentinho, como era mais conhecido, passa a ter certeza do envolvimento amoroso entre os dois no velório do amigo, em que percebe Capitu olhando fixamente para o morto. A partir daí, começa a enxergar sinais do adultério em todo  lugar, até no rosto do próprio filho Ezequiel, que seria parecido com Escobar.

Mas nem Bentinho nem Machado oferecem provas da traição. O leitor só tem acesso ao depoimento do marido. E a ausência do contraponto de Capitu fez do livro material perfeito para um eterno e delicioso debate sobre o que “de fato” teria ocorrido entre a mulher e Escobar – uma improvável caçada pela verdade em uma obra de ficção. No início, muitos críticos literários aceitaram a versão de Bentinho sem muito questionamento. Parte do viés bentinista se explica pelo perfil da sociedade do início do século 20, ainda mais machista do que hoje. Como o personagem gozava de posição social de respeito, a visão do marido era suficiente para muitos. Bentinho é convincente. Em várias partes, se dirige diretamente ao leitor, como se estivesse conversando com um amigo, confessando sua tristeza. Difícil não se apiedar do tristonho (ou amargurado, ou casmurro) Bento Santiago.

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Ao longo das décadas, porém, a sociedade mudou, assim como a interpretação do livro. As mulheres ganharam direitos e liberdades. Aos poucos, Capitu ganhou defensores e, sobretudo, defensoras. Uma pergunta ficou cada vez mais forte: por que devemos acreditar no homem rico e branco? Tudo o que estava oculto na obra emergiu definitivamente nos anos 60, quando uma crítica literária americana confrontou Bentinho no mundo acadêmico pela primeira vez. Em O Otelo Brasileiro de Machado de Assis, lançado em 1960, Helen Caldwell chega a sugerir que Capitu não traiu Bentinho. O crescente poder da mulher deu uma nova leitura ao romance, uma interpretação que coloca Capitu como uma vítima de um marido neurótico. “Alguém já afirmou, em tom de pilhéria, que, se ela não traiu Bentinho, devia ter traído”, diz o professor de literatura Marcelo Frizon. Na visão de Helen Caldwell, Bentinho é como Otelo, o personagem de Shakespeare que mata a mulher, Desdêmona, uma inocente, após ser convencido de uma traição a partir de intrigas do vingativo Iago. As múltiplas interpretações revelam por que a obra continua sendo adorada por leitores e reverenciada por críticos: ela guarda mistérios insolucionáveis. Dom Casmurro é um livro de enigmas.

O romance obrigou críticos e leitores a prestar mais atenção num aspecto decisivo do texto literário: o narrador. Parece óbvio pensar que o relato de uma pessoa é um relato parcial sobre as coisas, mas não é tão evidente assim quando se está em pleno deleite de uma obra-prima – ainda mais quando o narrador tem um texto elegante, como um lorde inglês tomando chá da tarde, e está precisando de um ombro amigo. O leitor acaba sendo fisgado pelo envolvente discurso de Bentinho e nem se dá conta de que só está vendo um lado da história. Esse é um dos trunfos de Dom Casmurro, mas está longe de ser o único.

(…) Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas…

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O professor de literatura Sergius Gonzaga diz que há dois textos no romance. Um é aquele em que Bentinho afirma a traição. Há um outro em que o próprio Bentinho solta pistas de que tudo não passa de neura da sua cabeça. Essa contraprova é apresentada quando o narrador afirma que Capitu era muito parecida com a mãe de Sancha, mulher de Escobar, o suposto amigo traidor. Ou seja, a semelhança entre o filho de Bentinho e o melhor amigo poderia vir daí – e não de um adultério. São passagens que revelam que Machado semeou a discórdia de propósito entre leitores. Casmurro se tornou uma ode às coisas não ditas, às entrelinhas, aos discursos ocultos (muitas vezes, mais importantes do que as declarações explícitas).

Dom Casmurro é também considerado um retrato de como funcionava a sociedade na metade do século 19. Na época, apenas 20% da população brasileira era alfabetizada. A obra disseca a nobreza e a elite (onde Bento e sua família se encaixavam), os homens livres para quem trabalho era algo malvisto (a labuta era considerada coisa de escravos) e os escravos, que não têm tanta participação no livro.

Além disso, a Capitu descrita por Bentinho é uma rebelde que diz o que pensa e que dissimula com naturalidade, como na passagem em que o ex-marido mostra como ela se saiu bem de uma situação em que eles foram pegos namorando escondidos e que deixara Bentinho desconcertado. Essas atitudes seriam impensáveis a uma mulher oriunda de uma classe social baixa, num Brasil ainda escravocrata. “É uma narrativa que aponta o início da rebelião da mulher diante de uma sociedade patriarcal”, comenta o professor Marcelo Frizon. Machado de Assis previu uma mudança que viria a tomar forma meio século depois.

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