Peter Singer: O filósofo pop
Caso raro de intelectual que mobiliza multidões, Peter Singer é chamado de nazista. Mas ele garante só querer menos sofrimento no mundo
Eduardo Szklarz
Nas últimas três décadas, o australiano Peter Singer vem tentando realizar na prática o que para muitos não passa de mera utopia: diminuir a quantidade de sofrimento no mundo. Graças a esse desafio, Singer se tornou um dos mais polêmicos e, segundo ele mesmo, influentes filósofos vivos. Sua indicação para professor de bioética da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, gerou protestos furiosos nos portões do velho campus. Por defender o aborto e a eutanásia, foi chamado de “doutor morte” e “o homem mais perigoso do mundo”.
O pensamento de Singer choca porque abandona noções éticas enraizadas na sociedade. A começar pelo caráter sagrado da vida humana. Por que a vida de um homem tem sempre mais valor que a de um cão ou de um chimpanzé? Para responder essa pergunta, o australiano leva em conta algumas variantes. A principal delas é o interesse em não sofrer, um princípio que está na origem de seu vegetarianismo radical. Singer também considera a capacidade de fazer planos para o futuro, relacionar-se e pensar sobre a própria existência. “Os seres que têm essa consciência perderão mais se forem mortos. Por isso, matar uma pessoa é, em geral, pior que matar uma galinha”, diz.
Mas essa teoria também vale para nós. Singer afirma que tirar a vida de um ser humano “normal” é mais errado que tirar a de outro que não tem e nunca terá – devido a uma lesão cerebral, por exemplo – a capacidade de se ver como alguém existente no tempo, com passado e futuro. Portanto, não há sentido em prolongar a vida onde existe muito sofrimento e pouca consciência. A ética prática de Singer também ecoa em outros campos, embora com menos barulho. Ele defende que os países ricos têm a obrigação de ajudar os pobres e que cada um de nós é responsável por pessoas que neste momento estão morrendo de fome.
É realmente possível viver sem causar sofrimento aos outros?
Não falo de um mundo sem sofrimento, e sim de um mundo com menos sofrimento. Não podemos pensar em tudo ou nada. Uma forma de reduzi-lo é parar de fazer aos animais muitas coisas desnecessárias, como algumas experiências de laboratório e maus tratos em fazendas industriais. Outro ponto diz respeito a crianças pobres e subnutridas. Podemos dar a elas parte do que nós gastamos em coisas supérfluas. Uma terceira maneira seria ajudar pessoas que estão sofrendo com doenças graves e incuráveis e que querem terminar com essa aflição.
Qual deve ser o critério ético em nosso relacionamento com os demais?
“Não faça aos outros o que não gostaria que lhe fizessem.” O conteúdo de minha ética está em pensar mais nas conseqüências daquilo que fazemos que ver se nossas ações estão de acordo com regras como “não minta” e “não roube”. Esse tipo de norma talvez seja útil para educar pessoas, mas não oferece respostas para várias situações difíceis.
Poderia exemplificar?
Digamos que uma pessoa tem uma renda razoável e compra roupas apenas porque estão na moda. Agindo assim, ela é responsável pelo que acontece com outras que estão passando fome ou morrendo por doenças que podem ser evitadas. Se temos como ajudá-las e não ajudamos, somos responsáveis por elas continuarem nessa situação.
De acordo com a FAO (agência da ONU para comida e agricultura), o consumo de carne reduz a desnutrição em países subdesenvolvidos. Seria justificável diminuir o sofrimento de animais aumentando a aflição humana?
Uma coisa é falar das pessoas desnutridas que não conseguem ter acesso a comida. Outra, bem diferente, são pessoas que vivem em cidades como São Paulo e podem comprar alimentos no supermercado. Podem comer tofu e uma infinidade de comidas que não geraram sofrimento aos animais. A FAO está falando de desnutridos, que não são exatamente as pessoas sobre as quais escrevo. Refiro-me às que têm possibilidade de escolher o que comem.
Você diz que caiu o racismo, depois o sexismo e agora é a vez do especismo, ou seja, a idéia de que humanos são superiores a outras espécies. Essa mudança de mentalidade terá êxito?
Creio que sim, mas precisaremos de um longo tempo. A luta contra o racismo e a escravidão levou anos, e a luta contra o especismo também levará. Lembre-se de que ainda havia escravos nos Estados Unidos até 80 anos após o começo do movimento abolicionista. Com os direitos dos animais não será diferente. Precisaremos de algo como 50 anos ou mais até que haja uma mudança de mentalidade.
As idéias que você defende não são matemáticas demais e pouco humanas, como no caso de sua posição sobre os recém-nascidos com deficiências?
Dizem que sou um homem perigoso e contra a religião cristã. Mas penso que minhas visões são baseadas na compaixão, no sofrimento de pessoas que vivem situações trágicas. Argumento que pais de recém-nascidos com grave deficiência devem ser autorizados a decidir, junto a seu médico, se o bebê deve viver ou morrer. A vida de uma criança com anencefalia (falta de cérebro), por exemplo, pode ser tão aflitiva que seria desumano estender seu sofrimento.
Você é uma raridade: um filósofo pop. Por que suas opiniões mobilizam tanto?
Provavelmente porque lido com as questões realmente práticas que enfrentamos no cotidiano. Talvez porque eu não tente me esconder atrás de linguagens obscuras ou de jargões filosóficos, que tornariam meus livros difíceis de entender. Procuro me expressar de forma muito simples e clara. Isso faz com que as pessoas compreendam meu pensamento e se sintam desafiadas por ele.
Por mais perfeita que seja, a lógica que você defende conseguirá superar o lado ilógico e irracional da natureza humana?
A lógica pode ser apenas um lado da balança. Você está certo sobre o lado irracional da natureza humana e sempre haverá uma tensão em conseguir que as pessoas sigam o que é correto. Então, o que devemos fazer é colocar o melhor da lógica e dos argumentos éticos de um lado e esperar que possamos influenciar o lado ilógico e irracional do ser humano. Não durante todo o tempo, mas pelo menos durante grande parte do tempo.
Como você recebe as críticas que o comparam aos nazistas?
Obviamente as considero ofensivas. Elas banalizam os crimes que os nazistas perpetraram. Meu livro Pushing Time Away (“Afastando o Tempo”, sem tradução em português) conta a triste história de meus avós, três dos quais mortos no Holocausto. Estudei o nazismo com cuidado, e ele é exatamente o oposto de minhas idéias, que são baseadas em compaixão e no desejo de evitar o sofrimento. Além disso, quero dar mais poder aos indivíduos e aos pais, não ao Estado – como era o caso do nazismo.
Você foi impedido de falar na Áustria e na Alemanha e sofreu ataques da imprensa européia. Já pensou em desistir?
Nunca. Sempre há coisas interessantes a dizer e públicos novos a alcançar. Estou feliz com a extensão da resposta ao que escrevo, mas obviamente gostaria de ter mais apoio. Há um longo caminho a percorrer. Estou contente com meu progresso, mas certamente não satisfeito. São assuntos tão importantes que é preciso ter força para não desistir.
Peter Singer
• Tem 57 anos e nasceu em Melbourne
• É vegetariano e doa 20% do que ganha para organizações de ajuda humanitária
• Gosta de surfar
• Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, é seu romance favorito
• Seu livro Libertação Animal, publicado em 1975, foi traduzido para 14 idiomas e mudou a história do movimento pelo direito dos animais