Eduardo Sterzi
Paulo Francis certa feita escreveu: “Crime e Castigo, de Dostoiévski, fez de mim o que sou”. De fato, os romances do maior prosador russo possuem a capacidade de moldar a consciência de seus leitores, desfazendo as ilusões otimistas quanto à natureza humana ou à modernidade. Envolvidos pelo enredo, assimilamos certas idéias terríveis contra as quais habitualmente nos acautelaríamos.
Memórias do Subsolo (Editora 34), de 1864, oferece-nos uma visão concentrada – pouco mais de 100 páginas, em contraste com as assustadoras 500 de Crime e Castigo – desse torturado universo literário e moral. O anti-herói desse livro é o anônimo morador de um quarto subterrâneo nos arredores de Petersburgo, um medíocre funcionário público aposentado, porém dotado de um intelecto poderoso e destrutivo (sobretudo autodestrutivo). Trata-se de um virtuose do rancor e acompanhá-lo a um jantar promovido por ex-colegas de escola, tolos mas bem-sucedidos, é deliciar-se com uma rara poesia do ressentimento. Outro russo famoso, o romancista Vladimir Nabokov, que censurava no precursor a “eloqüência de charlatão vulgar”, elogiou esta cena como uma das melhores de Dostoiévski e exemplar de sua habilidade para a tragicomédia. O resto do livro não lhe é inferior.