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Quando éramos reis

A Festa do Rosário do Serro, em Minas Gerais, é uma tradição criada pelos escravos há 300 anos. Durante três dias, os humildes se tornam senhores da terra. E reinam.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h46 - Publicado em 30 set 1998, 22h00

Denis Russo Burgierman, do Serro

Nossa Senhora do Rosário surgiu de repente sobre o mar. Os índios foram chamá-la e ela os ignorou, nem os reconheceu como humanos. Os marinheiros brancos, vestindo roupas novas, foram à praia levando padres e banda de música. Eram ricos e poderosos, mas tinham pouca fé. A santa nem se moveu. Só então permitiram que os escravos tentassem: na beira do mar, de pés descalços, eles bateram os tambores tão forte que comoveram a mãe de Deus. E ela veio para a terra.

Ninguém sabe quando essa lenda surgiu, mas a festa de Nossa Senhora do Rosário, a padroeira dos escravos do Brasil colonial, é celebrada em todo o país há pelo menos 350 anos. Na primeira semana de julho, os 20 000 habitantes da pequenina cidade do Serro, no norte de Minas, levam a comemoração ao auge. Com missas, orações, danças e músicas africanas, a população inteira relembra a aparição da santa. É um espetáculo de tradição e religiosidade que amadureceu com o passar do tempo. A SUPER foi ao Serro investigar a cultura popular brasileira. Nas páginas seguintes você vai acompanhar, passo a passo, os rituais da fé que, durante três dias, transformam escravos em reis.

Receita para fazer opressão virar festa

A lenda de Nossa Senhora do Rosário virou de cabeça para baixo a sociedade colonial do século XVIII. Inverteu o poder dos senhores brancos e da Igreja, que foi contra a escravização de índios, mas justificou a dos negros. “A bula Romanus Pontifex, de 1454, do papa Nicolau V”, explica Ilana Blaj, professora de História do Brasil Colonial na Universidade de São Paulo, “legitimou o tráfego de escravos como uma oportunidade de cristianizar os africanos. Os negros eram batizados no embarque, na África, ou na chegada, no Brasil.” A Igreja portuguesa escolhera o culto de Nossa Senhora do Rosário para promover a evangelização da África, de onde vinham os escravos.

Liberdade espiritual

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Em todo o Brasil foram criadas Ordens do Rosário dos Pretos, confrarias religiosas fundadas pelos escravos cristianizados. A primeira Festa do Rosário de que se tem registro foi realizada em Olinda, em 1645. Em Minas, a Ordem dos Homens Pretos surgiu em 1715, em Vila Rica. No Serro, as festas começaram em 1720.

Só que não era a Igreja que as promovia, mas os próprios escravos. No ritual, os negros tornam-se poderosos porque são os preferidos de Nossa Senhora. No contexto cruel da escravatura mineira, essa inversão de papéis era notável. O trabalho negro era muito pesado e sujeito a duros castigos. Faltava comida, pois todos os esforços estavam voltados para a mineração de diamantes e quase não havia lavoura. Com isso, “poucos escravos tinham condições de trabalhar mais do que cinco anos”, conta Blaj. “Festejar”, interpreta a historiadora Márcia Clementino Nunes, nascida no Serro e estudiosa da festa, “era uma válvula de escape numa situação difícil.”

Hoje, o povo do Serro diz que é o lamento dos escravos que se ouve na música melancólica executada pela “caixa de assovios”, a banda formada por dois tambores e duas flautinhas agudas (parecidas com os pífaros do Nordeste). É esse som triste que abre a festa, na madrugada do primeiro sábado de julho.

O ritual do Rosário

Assim começa a festa da cidade mineira do Serro

Matina

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Às 5 horas da madrugada de sábado, a pequena igreja já está lotada de fiéis pedindo permissão para começar a festa. A “matina” é o momento inaugural dos festejos. A pequena cidade de 20 000 habitantes acorda mais cedo.

A santa

Nossa Senhora do Rosário inspira e protege a festa negra. Para os fiéis, é ela que permite a continuação da tradição. A santa já era cultuada na África, onde foi introduzida pelos portugueses, antes de os escravos chegarem ao Brasil.

Mastro

A procissão termina às 8 horas da noite com o levantamento da bandeira do Rosário num mastro, que simboliza a ligação entre a terra e o céu. As músicas, o toque dos tambores e as danças parecem as do candomblé.

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Construída por escravos, no século XVIII, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário é pequena demais para acomodar todos os que querem participar da matina

Caixa de assovios é o nome da banda, formada por quatro músicos (dois flautistas e dois tocadores de tambor), que circula pela cidade durante a comemoração

No segundo dia da festa, o domingo, os tambores e a dança animam as cores do Serro. Do nascer do Sol até a madrugada do dia seguinte, o ritmo não pára. Os fiéis cantam em língua bantu, angolana, e em português: Cuenda cuenda cambaiá dêia muxima, vamu vê a mãe de Deus”. Querem dizer: “Vem, mano do coração, vamos ver a mãe de Deus”. É o júbilo da fé.

História de caboclos, marujos e catopês

No domingo, segundo dia da celebração, todos se fantasiam. Os “caboclos” vestem cocares de penas e empunham arco e flecha. São os índios que Nossa Senhora do Rosário ignorou. Outro grupo veste-se de marinheiro: são os “marujos” brancos, também preteridos pela santa. Os verdadeiros heróis da comemoração são os “catopês”, os escravos negros. Quem é de um grupo não muda para outro no ano seguinte. “É até hereditário”, diz a historiadora Márcia Nunes. “Quem é caboclo, tem orgulho disso. Acha que sua dança é a mais bonita e quer que seu filho seja caboclo também.”

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Vitória católica

Logo ao amanhecer, os catopês saem em busca do rei e da rainha da festa, em suas casas. O casal real, escolhido na festa do ano anterior, é a maior autoridade. Cabe-lhes preparar toda a comida – arroz, tutu de feijão, leitão assado, doces de fruta e cachaça, tudo em grandes quantidades –, cuidar dos trajes dos grupos, dos fogos de artifício e dos enfeites da igreja. Durante o ano, são negros pobres. Nessa manhã de inverno, ninguém no Serro é mais importante do que eles.

De manhã mesmo, acontece o confronto entre cablocos, índios e marujos brancos. “Oh, grande sustã monarco”, gritam os marujos. “Sustã” é uma corruptela de sultão. “São os soberanos mouros que governaram a Península Ibérica durante a Idade Média”, explica Marcelo Manzatti, antropólogo do Grupo Cachoeira, uma organização sediada em São Paulo empenhada em preservar o folclore brasileiro. Alterados pelo uso durante séculos, e jamais escritos, os cantos encenam a guerra entre cristãos e muçulmanos pelo território da Espanha e de Portugal. Só que, no Brasil, os infiéis, em vez de islamitas, foram substituídos por índios.

No final, os caboclos se convertem e todos juntos vão adorar Nossa Senhora. A vitória dos marujos representa o triunfo da Igreja Católica sobre os povos não-cristãos. Depois, todos vão comer, cantando: “Quatro libra de carne, um mocotó, alegria de pobre é um dia só.”

As três raças originais

Encenação reproduz a divisão racial do Brasil

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Catopês

Os negros são chamados de catopês. Dançam ao ritmo dos tambores influenciados pelo candomblé e pela umbanda. Também adotaram os cocares de penas dos índios. Vestem mantos de retalhos de chita colorida.

Marujos

São os brancos. Tocam instrumentos europeus: flauta, cavaquinho e violão. Andam em filas, numa ordem militar. Na dança, demonstram respeito à hierarquia.

Caboclos

Fazem o papel de índios. Batem a flecha no arco para marcar o ritmo que comanda a dança. Bailam em roda e obedecem ao comando do cacique.

Fora o cocar de pena inspirado nos índios, os catopês não exageram nos enfeites. Querem parecer sóbrios e elegantes, dignos de conduzir o rei e a rainha e de proteger a santa

Os caboclos índios abusam do enfeite. Usam saiote, cocar de penas coloridas, colares e penduricalhos que se passam por jóias. Maquiam o rosto com batom e rouge

A roupa branca e o chapeuzinho de marinheiro identificam o uniforme militar dos meninos marujos. Eles representam a disciplina e ostentam medalhas e insígnias

A coroação do rei e da rainha

O último dia, a segunda-feira, é o da coroação. De manhã e à tarde, há danças, cantorias e comilanças. À noite, na sede da Ordem dos Homens Pretos, os devotos coroam os soberanos do ano que vem, escolhidos por aclamação entre aqueles que mais se destacam.

São quase três séculos de tradição. A festa, hoje, atrai turistas, é apoiada pela prefeitura e mobiliza a população branca do Serro. “Mas mantém vivos os elementos originais”, diz Márcia Nunes, “o desejo dos negros pobres de se integrar na sociedade cristã branca preservando o que for possível de sua cultura africana.”

Mistura lingüística

As letras das canções são uma reiteração disso. “Viva a rainha no céu, viva a sereia no mar.” A rainha é Nossa Senhora e a sereia é a Iemanjá do candomblé. A mistura de culturas dá-se também com palavras da língua bantu. Inganga, por exemplo, é a palavra n’ganga, que significa sacerdote. “O senhor seu padre inganga, quando tá dizendo a missa, parece os anjim do céu”, diz outra música. E os refrões celebram: “Ô luanda, luanda, luendê”. Luanda, hoje capital de Angola, foi o porto de embarque de muitos escravos, embora pouca gente no Serro saiba disso.

“Hoje”, diz Marcelo Manzatti, “só duas ou três pessoas da comunidade do Baú, um antigo quilombo onde os escravos fugitivos se escondiam, perto do Serro, ainda falam o dialeto africano.” Como não ensinam para mais ninguém, esse conhecimento deve se perder. Mas os cantos usados no ritual estão preservados.

À noite vem a exaustão. São dois dias sem dormir. As fantasias vão para os armários e todos voltam a ser pobres. E cantam: “Quando a lua vem caindo, cadê nossa mucamba?” Mucamba é cama em bantu. É a hora em que o sonho de liberdade adormece.

A comunidade negra do antigo Quilombo do Baú anima três séculos de tradição no Serro. Alguns ainda se lembram do dialeto bantu, de Angola

Os marujos, com roupas impecavelmente brancas, tocam os instrumentos de corda que os europeus trouxeram para um Brasil de índios, brancos e negros

O futuro sem diamantes

Em 1720, o Serro era uma das cidades ricas do país

Em 1714, descobriram-se diamantes no norte de Minas, que logo virou a segunda mais próspera região de mineração do Brasil. O Serro perdia apenas para o ouro de Vila Rica (hoje Ouro Preto). Era sede da comarca da qual fazia parte Diamantina, que, depois de 1731, ultrapassou-a em riqueza e importância. Quem quisesse um pedaço de terra para explorar minério tinha que ter escravos. Quanto mais tivesse, maior e melhor poderia ser a lavra. Por isso, grande número de negros se fixou no Serro. Hoje, a cidade é pobre, mas tem forte potencial turístico. Conserva com orgulho os seus edifícios e igrejas coloniais.

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