Black Friday: Assine a partir de 1,49/semana
Continua após publicidade

Um fio negro

Um conto da ganhadora do Jabuti 2015

Por Maria Valéria Rezende
22 Maio 2018, 18h09

Quando Eleonora esticou o braço para apagar a luz, percebeu na parede, a pouco mais de um palmo à direita da beira da cama, à altura de seus pés, como um fino fio negro em movimento. Era tanta a dor pelo corpo todo, tão grande o desânimo e tão pesado o sentimento de solidão que não teve coragem de mover-se para verificar de que se tratava. Não valia a pena. Não interessava. Nada podia ser pior do que já era, nada podia dar-lhe alguma esperança. Já havia fechado a porta do quarto e a janela, puxando cuidadosamente as persianas espessas para que nem um fiapo de luz coasse. Agarrou um a um os diversos aparelhinhos de controle remoto e foi desligando completamente a televisão, o decodificador, o reprodutor de DVD, até extinguir qualquer sinal luminoso, apagou a lâmpada de cabeceira e mergulhou no torpor que nem era sono nem vigília, um estado de suspensão naquele sofrimento pastoso que a envolvia. Era sua vida ou semivida havia tanto tempo! Dia e noite, de pé, sentada ou deitada, imóvel ou em movimento, servia a ela, a poderosa, soberana, onipresente, invencível e misteriosa dor. Eleonora era apenas sua serva e suporte. Mais nada. Faltavam-lhe as forças para tentar de fato viver apesar do corpo permanentemente dolorido e a coragem para pôr fim àquilo de modo radical. Deixou-se ficar na mais completa escuridão, olhos fechados esperando os poucos e esparsos minutos de algum sono, como a cada noite.

Assustou-se ao acordar de fato, sentir que despertava de um sono real, com o sol forte já filtrando-se à força pelas bordas da persiana. Percebeu ainda outras estranhezas naquele amanhecer. Custou a reconhecer o que era, talvez porque a própria hipótese estivesse inteiramente ausente de seus pensamentos, havia anos: não sentia mais dor alguma. Nem se lembrava da noite transcorrida, havia dormido um sono só, sem interrupções nem sonhos, a não ser uma leve impressão de formigamento pelo corpo todo, em algum segundo de sonho. Mais nada. Simplesmente a dor desaparecera e ela dormira profundamente a noite toda.

Enquanto avançava o dia, ainda descrente, Eleonora por vezes punha em questão sua sanidade mental, outras, cada uma mais duradoura que a anterior, era tomada por uma euforia crescente diante do fim da dor impondo-se como realidade.

Ao entardecer, voltou-lhe aos músculos e articulações algo como uma leve lembrança da dor intensa que a perseguia havia tanto tempo. Sim, a dor era real e, portanto, também era verdade que havia desaparecido, ou pelo menos baixado a um nível perfeitamente suportável, quase nada. Não, ela estava lúcida e equilibrada, nem maluca nem eufórica. Deitou-se, apagou tudo como de costume, teve a impressão de ver um fio negro serpenteando pela parede na fração de segundo antes que se extinguisse a luz da cabeceira. Estava feliz, nem ligou, adormeceu num átimo.

Na manhã seguinte, nem sombra de dor, de insônia ou de sonhos angustiosos. Ao fim do dia, o corpo levemente dolorido, mas Eleonora foi deitar-se confiante, já acreditando que uma simples noite de sono bastaria para recuperar o bem-estar dos últimos dois dias. Tinha sono de verdade, não apenas uma desistência da vida que a impelia para a cama, como antes.

Continua após a publicidade
2
(Pedro Piccinini/Superinteressante)

Assim se estabeleceu a rotina. A vida voltou a ser vida, nova perícia médica para retornar ao trabalho, amizades, a retomada do cuidado consigo mesma, com a aparência, a recuperação de uma alegria que lhe dava um certo brilho, justificando a renovada esperança de ainda encontrar um amor verdadeiro.

Passou a aceitar os convites de Alencar, o viúvo do quarto andar, para ir ao Teatro Municipal, para um almoço de frutos do mar no mercado de peixes de Niterói, ai!, há quantos anos não atravesso a baía!, para o lançamento de umlivro em Ipanema, jantar no Leblon. Ele discretíssimo, culto, programas perfeitamente honrosos, ela expandindo-se, renovando o guarda-roupa e a sapateira, assídua ao salão de beleza, rejuvenescendo e embelezando-se, ele avançando devagarzinho, vamos dar tempo ao tempo…, ares de coisa séria, ela pensando que quando estivesse em sua melhor forma…

Continua após a publicidade

Longas noites de sono tranquilo repunham em forma corpo e alma. Milagre, simples evolução desconhecida mas natural de uma doença pouco estudada, resultado tardio, afinal, de todas as terapias convencionais e alternativas que experimentara e das quais desistira havia tempos?

Curiosa para entender o que lhe acontecia, voltou ao especialista que tanto se havia interessado, sem nenhum resultado aproveitável, diga-se, pela suposta e complicada combinação de fibromialgia, artrite reumatoide, síndrome do túnel do carpo e do tarso e sabe-se lá mais o quê! Assim como não soubera explicar o complexo e hipotético diagnóstico anterior, o doutor tampouco soube explicar nem sequer levantar suspeitas sobre a repentina e espontânea cura. Ela estava muito bem agora, confirmou o médico, e isso era o que importava! Bola pra frente, que há anos perdidos a recuperar e o Alencar logo ali, no andar de baixo!

À noite, cansada de tantas e emocionantes novidades em seu cotidiano, já saía do chuveiro diretamente para a cama e o sono reparador sem perder mais nenhum minuto com detalhes agora desimportantes. Nada que viesse dela mesma era mais capaz de despertá-la no meio da noite, mas a sirene do carro dos bombeiros sim! Afinal, ela não estava surda. Sentou-se na cama, assustada, acendeu a luz, esfregou os olhos e então viu sua cama e sua pele inteiramente cobertas por um fervilhar negro, uma intensa sensação de formigamento por todo o corpo e, horror!, reconheceu milhares, centenas de milhares, milhões de minúsculas formigas pretas. Forte da nova vida que vinha vivendo havia algumas semanas, venceu a paralisia do medo, saltou da cama, correu para o chuveiro e abriu ao máximo as torneiras, afogando, sem dó nem piedade, a infinidade de formigas que vinham agarradas a ela. Voltou ao quarto com baldes cheios, vencendo outros milhares de inimigas com verdadeiras trombas d¿água.

Continua após a publicidade

Terminou a matança com um spray de inseticida e, finalmente, recebeu o primeiro raio de sol ainda com uma vassoura e uma pazinha na mão, o corpo meio dolorido, o que era perfeitamente explicável pela batalha recém-travada, mas ela e o quarto limpos, livres da invasão.

Ao longo do dia, sentiu um pouco mais cedo e um pouco mais forte a dor que insistia em voltar todo fim de tarde até que o sono a dissipasse. Pudera!, depois da madrugada louca que tivera, não era de admirar. Nada como uma boa noite de sono para repô-la em forma! Mas como me custa dormir hoje! Por que essa dor não quer ir embora desta vez? Acende a luz, olha em volta, nada de estranho, tudo normal, tudo em ordem, nem sequer um fio fora do lugar, apaga de novo a luz e não dorme, mergulha no torpor que nem é sono nem vigília, um estado de suspensão nesse sofrimento pastoso que a envolve e cresce.

 

Maria Valéria Rezende nasceu em Santos em 1942. É religiosa da Congregação de Nossa Senhora, Cônegas de Sto Agostinho, dedicada à educação popular em diferentes regiões do Brasil e no exterior. Vive na Paraíba desde 1976. Passou a publicar ficção em 2001. Ganhou um Jabuti em 2009, categoria infantil; outro em 2013, categoria juvenil; e mais um em 2015, na categoria romance e melhor livro de ficção com Quarenta dias (Alfaguara, 2014).

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY
Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

Apenas 5,99/mês

ou
BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 10,99/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.