Quando Eleonora esticou o braço para apagar a luz, percebeu na parede, a pouco mais de um palmo à direita da beira da cama, à altura de seus pés, como um fino fio negro em movimento. Era tanta a dor pelo corpo todo, tão grande o desânimo e tão pesado o sentimento de solidão que não teve coragem de mover-se para verificar de que se tratava. Não valia a pena. Não interessava. Nada podia ser pior do que já era, nada podia dar-lhe alguma esperança. Já havia fechado a porta do quarto e a janela, puxando cuidadosamente as persianas espessas para que nem um fiapo de luz coasse. Agarrou um a um os diversos aparelhinhos de controle remoto e foi desligando completamente a televisão, o decodificador, o reprodutor de DVD, até extinguir qualquer sinal luminoso, apagou a lâmpada de cabeceira e mergulhou no torpor que nem era sono nem vigília, um estado de suspensão naquele sofrimento pastoso que a envolvia. Era sua vida ou semivida havia tanto tempo! Dia e noite, de pé, sentada ou deitada, imóvel ou em movimento, servia a ela, a poderosa, soberana, onipresente, invencível e misteriosa dor. Eleonora era apenas sua serva e suporte. Mais nada. Faltavam-lhe as forças para tentar de fato viver apesar do corpo permanentemente dolorido e a coragem para pôr fim àquilo de modo radical. Deixou-se ficar na mais completa escuridão, olhos fechados esperando os poucos e esparsos minutos de algum sono, como a cada noite.
Assustou-se ao acordar de fato, sentir que despertava de um sono real, com o sol forte já filtrando-se à força pelas bordas da persiana. Percebeu ainda outras estranhezas naquele amanhecer. Custou a reconhecer o que era, talvez porque a própria hipótese estivesse inteiramente ausente de seus pensamentos, havia anos: não sentia mais dor alguma. Nem se lembrava da noite transcorrida, havia dormido um sono só, sem interrupções nem sonhos, a não ser uma leve impressão de formigamento pelo corpo todo, em algum segundo de sonho. Mais nada. Simplesmente a dor desaparecera e ela dormira profundamente a noite toda.
Enquanto avançava o dia, ainda descrente, Eleonora por vezes punha em questão sua sanidade mental, outras, cada uma mais duradoura que a anterior, era tomada por uma euforia crescente diante do fim da dor impondo-se como realidade.
Ao entardecer, voltou-lhe aos músculos e articulações algo como uma leve lembrança da dor intensa que a perseguia havia tanto tempo. Sim, a dor era real e, portanto, também era verdade que havia desaparecido, ou pelo menos baixado a um nível perfeitamente suportável, quase nada. Não, ela estava lúcida e equilibrada, nem maluca nem eufórica. Deitou-se, apagou tudo como de costume, teve a impressão de ver um fio negro serpenteando pela parede na fração de segundo antes que se extinguisse a luz da cabeceira. Estava feliz, nem ligou, adormeceu num átimo.
Na manhã seguinte, nem sombra de dor, de insônia ou de sonhos angustiosos. Ao fim do dia, o corpo levemente dolorido, mas Eleonora foi deitar-se confiante, já acreditando que uma simples noite de sono bastaria para recuperar o bem-estar dos últimos dois dias. Tinha sono de verdade, não apenas uma desistência da vida que a impelia para a cama, como antes.
Assim se estabeleceu a rotina. A vida voltou a ser vida, nova perícia médica para retornar ao trabalho, amizades, a retomada do cuidado consigo mesma, com a aparência, a recuperação de uma alegria que lhe dava um certo brilho, justificando a renovada esperança de ainda encontrar um amor verdadeiro.
Passou a aceitar os convites de Alencar, o viúvo do quarto andar, para ir ao Teatro Municipal, para um almoço de frutos do mar no mercado de peixes de Niterói, ai!, há quantos anos não atravesso a baía!, para o lançamento de umlivro em Ipanema, jantar no Leblon. Ele discretíssimo, culto, programas perfeitamente honrosos, ela expandindo-se, renovando o guarda-roupa e a sapateira, assídua ao salão de beleza, rejuvenescendo e embelezando-se, ele avançando devagarzinho, vamos dar tempo ao tempo…, ares de coisa séria, ela pensando que quando estivesse em sua melhor forma…
Longas noites de sono tranquilo repunham em forma corpo e alma. Milagre, simples evolução desconhecida mas natural de uma doença pouco estudada, resultado tardio, afinal, de todas as terapias convencionais e alternativas que experimentara e das quais desistira havia tempos?
Curiosa para entender o que lhe acontecia, voltou ao especialista que tanto se havia interessado, sem nenhum resultado aproveitável, diga-se, pela suposta e complicada combinação de fibromialgia, artrite reumatoide, síndrome do túnel do carpo e do tarso e sabe-se lá mais o quê! Assim como não soubera explicar o complexo e hipotético diagnóstico anterior, o doutor tampouco soube explicar nem sequer levantar suspeitas sobre a repentina e espontânea cura. Ela estava muito bem agora, confirmou o médico, e isso era o que importava! Bola pra frente, que há anos perdidos a recuperar e o Alencar logo ali, no andar de baixo!
À noite, cansada de tantas e emocionantes novidades em seu cotidiano, já saía do chuveiro diretamente para a cama e o sono reparador sem perder mais nenhum minuto com detalhes agora desimportantes. Nada que viesse dela mesma era mais capaz de despertá-la no meio da noite, mas a sirene do carro dos bombeiros sim! Afinal, ela não estava surda. Sentou-se na cama, assustada, acendeu a luz, esfregou os olhos e então viu sua cama e sua pele inteiramente cobertas por um fervilhar negro, uma intensa sensação de formigamento por todo o corpo e, horror!, reconheceu milhares, centenas de milhares, milhões de minúsculas formigas pretas. Forte da nova vida que vinha vivendo havia algumas semanas, venceu a paralisia do medo, saltou da cama, correu para o chuveiro e abriu ao máximo as torneiras, afogando, sem dó nem piedade, a infinidade de formigas que vinham agarradas a ela. Voltou ao quarto com baldes cheios, vencendo outros milhares de inimigas com verdadeiras trombas d¿água.
Terminou a matança com um spray de inseticida e, finalmente, recebeu o primeiro raio de sol ainda com uma vassoura e uma pazinha na mão, o corpo meio dolorido, o que era perfeitamente explicável pela batalha recém-travada, mas ela e o quarto limpos, livres da invasão.
Ao longo do dia, sentiu um pouco mais cedo e um pouco mais forte a dor que insistia em voltar todo fim de tarde até que o sono a dissipasse. Pudera!, depois da madrugada louca que tivera, não era de admirar. Nada como uma boa noite de sono para repô-la em forma! Mas como me custa dormir hoje! Por que essa dor não quer ir embora desta vez? Acende a luz, olha em volta, nada de estranho, tudo normal, tudo em ordem, nem sequer um fio fora do lugar, apaga de novo a luz e não dorme, mergulha no torpor que nem é sono nem vigília, um estado de suspensão nesse sofrimento pastoso que a envolve e cresce.
Maria Valéria Rezende nasceu em Santos em 1942. É religiosa da Congregação de Nossa Senhora, Cônegas de Sto Agostinho, dedicada à educação popular em diferentes regiões do Brasil e no exterior. Vive na Paraíba desde 1976. Passou a publicar ficção em 2001. Ganhou um Jabuti em 2009, categoria infantil; outro em 2013, categoria juvenil; e mais um em 2015, na categoria romance e melhor livro de ficção com Quarenta dias (Alfaguara, 2014).