NEM DEMÔNIOS, NEM ANJOS
Os índios eram mais complexos do que a idealização e o preconceito dos europeus permitiam ver.
No século 16, espalhou-se em Portugal a ideia de que a língua dos índios brasileiros carecia de três letras: F, L e R – logo, não tinham como ter nem Fé, nem Lei, nem Rei.
A teoria era meio surda – os índios tinham os três sons – e totalmente míope: as instituições só existem se nomeadas em português? Mas resume bem o que os portugueses pensavam dos índios: almas a serem catequizadas, doutrinadas e governadas.
Enxergando sempre por esse prisma, os europeus não quiseram ou não puderam ver certas nuances sobre seus novos súditos. Nuances reveladas por novas pesquisas arqueológicas, e que ajudam a entender como as tribos do litoral viveram seus últimos dias de índios.
Os portugueses não compreendiam direito os papéis dos homens e das mulheres. Eles caçavam, mas, diferente dos varões lusos, ignoravam a lavoura. Elas cuidavam das tarefas domésticas mas, ao contrário das carolas católicas, não tinham vida espiritual – uma tarefa masculina. E não havia mesmo reis: o poder era fragmentado, cada chefe mandava na sua aldeia e olhe lá – às vezes, como no estilo britânico, reinava mas não governava.
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A monogamia predominava, mas as separações, frequentes e numerosas, confundiam os conquistadores. E nada de famílias numerosas: as mulheres paravam nos dois filhos. Era o máximo que dava para alimentar sem aperto e o máximo que se podia carregar em caso de mudança.
A perfeição física dos índios, que tanto chamou a atenção dos europeus, pode ser resultado de eugenia – como os espartanos, eles provavelmente matavam os bebês que consideravam deficientes.
Muita ciência passou despercebida. Só agora podemos dizer com certeza que os índios domesticavam plantas, enriqueciam o solo com adubo, realizavam pesca por envenenamento com elevado grau de eficácia. Tendo profundo conhecimento das plantas que os rodeavam, tinham remédios eficazes para quase todos os males – cujas propriedades ainda estão sendo descobertas em laboratórios. Sem falar em uma das maiores invenções de todos os tempos: a rede de dormir.
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Até que a rede e o mundo caíram. Como disse em uma entrevista recente à revista Piauí o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, “o mundo deles acabou em 1500. Se formos falar do fim do mundo, pergunte aos índios como é, porque eles sabem. Eles viveram isso. A América acabou”.
Enquanto os portugueses escreviam a certidão de nascimento da nova terra, os timbiras faziam um atestado de óbito para o seu mundo. Na lenda de Aukê, um menino com poderes sobrenaturais é morto em uma fogueira. Ele ressuscita como o primeiro branco, e pede que a tribo escolha entre a espingarda e o arco. A espingarda traria a civilização; com medo, os índios escolhem o arco, e permanecem índios. Aukê até hoje chora de pena dos timbiras.
Três antes de CabralPedro Álvares Cabral é o descobridor oficial do Brasil – veio oficialmente, tomou posse, rezou missa e fez com que o mundo soubesse. Mas não é o descobridor cronológico: antes dele, pelo menos três outros navegadores estiveram em nossas atuais costas – um português seguido de dois espanhóis. O primeiro foi Duarte Pacheco, ainda em 1498. Tudo indica que o experiente explorador esteve em Belém e foi subindo até a futura Caracas. Sua missão talvez fosse saber se havia terra que valesse uma esquadra maior – a de Cabral.
O segundo veio em janeiro de 1500: Vicente Pinzón, que havia descoberto a América junto com Colombo. O espanhol foi o primeiro a cruzar a linha do Equador e, sem estrela polar para se guiar, bateu no Nordeste e foi subindo até a Flórida.
Logo atrás dele, em fevereiro, chegou seu primo Diego de Lepe. O curioso é que, apesar de nomear várias regiões, não tomaram posse: sabiam muito bem que estavam em território que era de Portugal pelo Tratado de Tordesilhas.