Como a inspiração dos bardos foi criada. E de que forma os deuses quase perderam sua juventude eterna.
Texto: Reinaldo José Lopes | Edição de Arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria | Imagens: Rômulo Pacheco e Getty Images
Apoesia e a eloquência eram coisas muito sérias para os escandinavos da Idade Média. Aliás, eram literalmente coisas divinas – dádivas dos Æsir, em especial do próprio Odin, para alguns de seus escolhidos na humanidade. Chegou a hora de contar como esse presente dos deuses surgiu, numa trama que inclui fluidos corporais divinos, anões serial killers, sexo e trapaças letais (e sem participação de Loki, por incrível que pareça).
Tudo começou após o fim da guerra entre Asgard e os Vanir. Num ritual criado para que as duas raças de deuses fizessem as pazes de vez, cada um dos ex-combatentes foi até um caldeirão e cuspiu lá dentro. Para as famílias divinas agora unidas, no entanto, a mistura das salivas ainda não era uma marca suficientemente duradoura do acordo de paz, de modo que os deuses usaram aquela quantidade sobrenatural de baba como matéria-prima para a criação de um homem, que batizaram de Kvasir. Reunindo em seu corpo novinho em folha um pouco da essência de todos os habitantes de Asgard e Vanaheim, Kvasir se tornou o ser mais sábio de toda a Criação – não havia pergunta que ele não fosse capaz de responder.
Além de sábio, Kvasir era generoso: dispôs-se a viajar pelos Nove Mundos levando o conhecimento a todos os que desejavam ouvi-lo. Sua turnê de palestras estava fazendo o maior sucesso, mas ele teve a má sorte de se encontrar com dois anões sinistros chamados Fjalar e Galar. Eles pediram para fazer algumas perguntas a Kvasir em particular e, assim que se viram a sós com o jovem deus, mataram-no à traição (ou seja, o conhecimento enciclopédico da criatura não incluía a capacidade de prever o futuro).
Logo depois, os anões fizeram com que todo o sangue dele escorresse para dois caldeirões e um bule, misturaram esse sangue com mel e, a partir daí, criaram uma forma de hidromel capaz de transformar qualquer pessoa em poeta ou erudito. Para encobrir o assassinato, Fjalar e Galar disseram aos Æsir que Kvasir havia engasgado com seu próprio excesso de conhecimento quando chegou às terras dos anões, porque ali ninguém seria sábio o suficiente para lhe fazer perguntas. Parece inacreditável que sujeitos desconfiados como Odin ou Loki seriam capazes de engolir uma desculpa esfarrapada dessas, mas foi o que acabou acontecendo.
Fjalar e Galar poderiam ter se deliciado com o hidromel da poesia por eras a fio após seu crime, mas a dupla, pelo visto, tinha mania de mandar suas visitas para Hel. Tempos depois, os anões receberam a visita do gigante Gilling e de sua mulher. Convidaram Gilling para um passeio de barco a remo no mar e, de propósito, bateram a embarcação em rochas submersas, de modo que a canoa virou. O gigante, que não sabia nadar, morreu afogado, enquanto Fjalar e Galar colocaram o barco na posição correta e voltaram remando para a costa, como se nada tivesse acontecido.
Como era de se esperar, a esposa de Gilling se pôs a chorar desesperada assim que ouviu a notícia. “Se puderes ver o lugar onde ele se perdeu no mar, será que ficarás mais calma?”, perguntou Fjalar, fingindo preocupação. A giganta aceitou e foi levada para um ponto a pouca distância dos muros da casa dos anões. Nisso, Galar escalou o muro e jogou uma pedra de moinho na cabeça da viúva, matando-a – a choradeira da mulher do gigante estava incomodando demais, disseram os assassinos.
A carreira de serial killers dos impiedosos anões acabaria aí, porém. Suttung, filho de Gilling, descobriu o que tinha acontecido, capturou os anões e os amarrou em rochas da costa que seriam encobertas pela maré alta. Prestes a morrerem afogados, Fjalar e Galar ofereceram o sangue de Kvasir transformado em hidromel como compensação pela morte dos pais do gigante. Suttung aceitou a oferta, guardando os recipientes com o precioso líquido dentro de uma montanha. Sua filha, chamada Gunnlod, ficou encarregada de proteger o tesouro dali por diante.
Depois de tantas peripécias em torno da bebida, tudo indica que Odin finalmente ficou sabendo do misterioso hidromel e deduziu que ele tinha sido fabricado a partir do sangue do finado Kvasir. O Pai-de-Todos arquitetou então um plano para reaver esse legado dos deuses. Primeiro passo: disfarçado, adotando o codinome de Bolverk, Odin dirigiu-se para Jötunheim e chegou às terras que pertenciam ao gigante Baugi, irmão de Suttung.
Ao chegar lá, o tal Bolverk se deparou com nove escravos do gigante, que estavam cortando capim para os animais da propriedade. “Não gostaríeis de afiar vossas foices? Tenho aqui uma excelente pedra de amolar”, disse o viajante. Os escravos de Baugi decidiram experimentar a tal pedra, e o resultado foi tão bom que todos queriam comprar o amolador de Bolverk.
Só que, em vez de estabelecer um preço e negociar com os servos, o visitante simplesmente jogou a pedra de amolar para o alto, como quem diz “É do primeiro que pegar!”. Desejando apanhar o objeto a qualquer custo, os escravos saíram dando golpes de foice às cegas – e acabaram se matando na disputa. Nenhum sobreviveu.
Odin, com seu disfarce de viajante, saiu dali e chegou à casa de Baugi. “Corro o risco de ficar pobre, forasteiro”, queixou-se o gigante ao recepcionar Bolverk. “Todos os meus nove escravos morreram, e não há ninguém para cuidar das minhas terras”, disse Baugi. “Todos morreram de uma vez? Que infortúnio!”, comentou Bolverk, no auge do cinismo. “Pois eu prometo realizar o trabalho de nove homens neste verão, senhor. Como paga, desejo apenas um gole do hidromel de teu irmão Suttung.”
Baugi explicou que o hidromel não era dele, embora tivesse sido obtido como preço pelo sangue de seus pais. Por outro lado, poderia ajudar o viajante a negociar com Suttung de bom grado, desde que ele realmente fosse um trabalhador de primeira linha. Está de bom tamanho, replicou Odin – e, trato feito, passou a trabalhar com tal afinco que o gigante nem chegou a sentir falta dos servos mortos.
Quando o inverno chegou e todas as tarefas da fazenda tinham sido realizadas com a máxima perfeição, Baugi levou Bolverk para conversar com Suttung, o dono do hidromel mágico. As negociações foram um fracasso, porém: o gigante se negou a ceder uma gotinha que fosse da bebida, mesmo após os pedidos de seu irmão. Odin não se deu por vencido.
Convenceu Baugi a ir com ele até a montanha onde os recipientes com o hidromel estavam escondidos e mostrou ao comparsa uma broca especial, chamada Rati (literalmente “ratazana”), que trouxera consigo. “Agora, para cumprires tua parte no trato, deverás usar Rati para abrir um buraco que leve até o interior da montanha”, explicou Bolverk.
Temendo que Baugi fosse traí-lo, Odin pressionou o gigante para que cavasse logo, até que percebeu que a abertura havia alcançado a câmara dentro do monte. Mais do que depressa, transformou-se em serpente e se esgueirou pelo buraco – e já não era sem tempo, pois Baugi ainda tentou matar a cobra-Odin com um golpe de broca.
Uma vez lá dentro, Odin se encontrou com Gunnlod, a filha do gigante Suttung, sentada num trono de ouro. O senhor dos Æsir acabou resolvendo a parada com seu charme irresistível. Por três dias e três noites Gunnlod e Odin desfrutaram dos prazeres da cama juntos. “Por essas três noites, terás direito a três goles do hidromel”, disse a giganta. Odin era capaz de engolir quantidades imensas de líquido de uma vez só, de forma que o primeiro gole esvaziou o bule de hidromel, enquanto o segundo e o terceiro deixaram vazios ambos os caldeirões.
Com a pança cheia da bebida mágica, Odin saiu da montanha, assumiu forma de águia e voou para Asgard com a rapidez de uma tempestade. Suttung, ao perceber que tinha sido logrado, também se transformou em águia e saiu voando atrás de Odin. Quando estava a uma distância segura da fortaleza dos deuses, o Pai-de-Todos cuspiu a maior parte do hidromel dos poetas em dois caldeirões que os Æsir haviam preparado assim que perceberam que ele estava a caminho. Desde então, é o conteúdo desses reservatórios que o Senhor de Asgard entrega generosamente a todos aqueles que desejam se transformar em mestres da eloquência e da arte.
O problema é que Odin não conseguiu colocar todo o hidromel da sabedoria naqueles caldeirões. Meio no desespero, com Suttung fungando no seu cangote, o deus acabou soltando parte da bebida pelo… outro lado do seu sistema digestivo, digamos. Esse hidromel apodrecido vazou do traseiro de sua forma de águia. Isso explica muita coisa, se a gente parar para pensar. Toda vez que você ouvir uma letra brega de música, uma aula sem pé nem cabeça ou um político cujo discurso não faz o menor sentido, a explicação é simples: alguém andou engolindo o hidromel defecado por Odin.
O sequestro de Idunn
A morte de Kvasir e o roubo da bebida da poesia por anões e gigantes foram crises de pouca importância se comparadas ao rapto da deusa Idunn, cujas maçãs mágicas são as responsáveis pela eterna juventude das divindades.
O estopim desse problema foi outra das jornadas dos deuses para terras distantes, embora Thor não estivesse entre os viajantes desta vez. Conta-se que Odin, Loki e Hœnir (um dos Æsir responsáveis pela criação do homem, segundo uma das versões dessa história) estavam passando por uma região longínqua, onde havia pouca comida, quando acabaram encontrando um rebanho de bois.
A comitiva de deuses capturou um dos animais, abateu-o e colocou a carne para assar, já salivando com a perspectiva de comer churrasco depois de dias de barriga vazia. Passado algum tempo, foram conferir se a carne estava pronta – e nada, continuava estranhamente crua. Esperaram mais (um intervalo que seria suficiente para quase torrar a carne em circunstâncias normais, diga-se de passagem), mas o boi ainda estava praticamente cru.
Foi então que escutaram uma voz vinda do alto de um carvalho ali do lado. “É por minhas artes que a carne não está assando”, disse o sujeito, quem quer que fosse. Olharam para cima e viram uma águia enorme empoleirada no carvalho. “Se me deres a minha parte do boi, garanto que a carne ficará pronta”, declarou ela. Os deuses acabaram aceitando a chantagem, de modo que a águia saltou de seu galho e avançou para a carne. Sem mais cerimônia, a gigantesca ave foi devorando as duas coxas e os dois ombros do animal.
Diante do desaforo, Loki perdeu a cabeça. Pegou um pedaço de pau e assestou o golpe mais forte que pôde na águia, mas o efeito disso não poderia ter sido mais desastrado: o bicho saiu voando, enquanto a ponta do porrete de Loki ficou presa no corpo da ave, de maneira que ela se foi pelos ares, arrastando o deus traiçoeiro consigo. Dando rasantes, a águia fazia Loki bater contra árvores, raspar seu corpo em rochas e na terra, até que o Trapaceiro achou que seus braços iam ser arrancados.
No desespero, Loki implorou que a ave o colocasse no chão, mas ela só concordou quando ele aceitou ajudá-la num plano para raptar Idunn. Sem a menor disposição para arriscar seu pescoço para preservar a eterna juventude dos Æsir, Loki concordou e conseguiu voltar para junto de seus companheiros de viagem, sem contar nada sobre o que tinha acontecido.
Algum tempo depois, quando todos já tinham retornado a Asgard, Loki procurou Idunn para dizer que tinha achado algumas maçãs que pareciam de excelente qualidade na floresta. “Por que não vamos vê-las? Traze contigo também tuas maçãs, para que possamos compará-las com os frutos que encontrei”, propôs ele. Sem nada desconfiar, a deusa o acompanhou até a mata.
Assim que os dois puseram os pés na floresta, a tal águia (na verdade, era o gigante Thjazi disfarçado) caiu sobre Idunn com as garras arreganhadas, prendeu-a pelos ombros e a levou para sua casa, que ficava num lugar chamado Thrymheim – e, com ela, levou embora as maçãs mágicas.
Sem sua dieta diária de pomos da juventude, os deuses de Asgard logo começaram a assumir a aparência de anciãos. Puseram-se a procurar notícias de Idunn e ficaram sabendo, enfim, que a última pessoa com quem ela tinha sido vista era Loki. Os Æsir ameaçaram torturar o Trapaceiro até que ele morresse da forma mais horrenda possível, e ele escapou desse destino oferecendo-se para salvar Idunn pessoalmente.
Nessa missão, Loki teve a ajuda de Freyja, que concordou em emprestar a ele sua forma de falcão. Já transformado em ave de rapina, Loki voou para Jötunheim e pousou na morada do gigante. Por sorte, naquele dia Thjazi estava no mar com seu barco, e Idunn tinha ficado sozinha.
Loki usou seus sortilégios para transformar a deusa numa noz, pegou-a com suas garras de falcão e partiu para Asgard. Logo, porém, ouviu-se um estrondo no ar: era o barulho do voo de Thjazi, o qual, ao chegar em casa e perceber que Idunn tinha fugido, transformara-se de novo em águia e saíra no encalço da deusa.
Os Æsir, porém, estavam de olho no céu. Assim que perceberam que o falcão-Loki estava a caminho, com a águia-Thjazi na sua cola, reuniram uma grande quantidade de serragem e colocaram tudo perto das muralhas de Asgard. Loki, carregando a noz-Idunn, ultrapassou os muros da fortaleza dos deuses e mergulhou para o chão.
Assim que ele e sua carga estavam seguros, os Æsir puseram fogo na serragem. A águia, que vinha logo atrás, não conseguiu se desviar das chamas. Suas penas pegaram fogo e, ferida, ela desabou dentro do recinto de Asgard. Com a máxima rapidez e brutalidade possíveis, os deuses avançaram para o gigante transformado em águia e o mataram.