A aventura humana na América do Sul começa na Sibéria: foi de lá que vieram os ancestrais das populações indígenas, há 16 mil anos.
Texto: Tiago Cordeiro | Edição de Arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria
uma manhã de sol, as 13 embarcações que formavam a esquadra de Pedro Álvares Cabral deixaram o pedaço de praia onde hoje fica Santa Cruz de Cabrália, nos arredores de Porto Seguro, para nunca mais voltar. Era 2 de maio de 1500 – dez dias depois de eles terem aportado, em 22 de abril. As terras das Américas ao sul do equador não eram, afinal, o objetivo da expedição. A missão de Cabral era chegar à Índia, e voltar de lá com os navios carregados de pimenta-do-reino, entre outros temperos.
E foi o que eles fizeram. Em 13 de setembro, Cabral chegaria a Calicute, na costa oeste da Índia. No ano seguinte, o navegador voltaria a Portugal, onde morreria 20 anos depois. Ou seja: Cabral e seu time passaram menos tempo na região de Porto Seguro do que um grupo de universitários comemorando a formatura.
Só tem um detalhe: quando eles foram embora, em maio de 1500, deixaram para trás quatro homens, que passaram a morar aqui. Eram os primeiros europeus a viver no território do Brasil atual. Claro que eles não estavam sozinhos. Havia pelo menos 4 milhões de pessoas por aqui – uma população bem maior que a de Portugal na época (1 milhão) ou a da Inglaterra (3 milhões).
Mas de onde vieram os povos indígenas? A resposta curta: vieram da Ásia. A pé. Geneticamente, os nativos das Américas têm fortes semelhanças com as populações asiáticas. Agora, a resposta longa: o Homo sapiens surgiu na África, há 300 mil anos. Há mais ou menos 80 mil, passou a se espalhar. Há 60 mil anos, chegamos à Oceania. Há 40 mil, à Europa – então lar dos nossos primos neandertais. Nesse meio-tempo, a Ásia foi sendo conquistada. As Américas ficaram por último – até porque alcançar o nosso continente não era uma tarefa trivial.
Chegar por mar era virtualmente impossível. Houve períodos, porém, em que as glaciações transformaram o Estreito de Bering numa planície de gelo, ligando o atual Alasca à Sibéria. Estima-se que uma dessas fases começou há 20 mil anos, e durou milênios. Povos siberianos, então, foram se instalando onde hoje fica o Estreito. E começaram a migrar para o Sul, América adentro.
O que não se sabe direito até hoje é exatamente quando isso aconteceu – até porque os rastros arqueológicos que esse pessoal pode ter deixado acabaram cobertos pelo mar. Mas uma pesquisa de 2018 ajuda a contar essa história melhor.
Vindos do frio
Um grupo de geneticistas dinamarqueses e americanos analisou o DNA dos restos mortais de um bebê encontrado num sítio arqueológico do Alasca. Ele nasceu há 11,5 mil anos – é um dos fósseis humanos mais antigos das Américas.
A análise mostrou que o bebê do Alasca tem quase o mesmo DNA dos índios que habitam hoje a América do Norte. A graça aqui está no “quase”. A parte distinta do genoma dele remonta a populações que hoje vivem na China. Ou seja: o bebê é um “elo perdido” perfeito entre os asiáticos e os povos nativos das Américas.
A pesquisa mostrou que os ancestrais comuns entre os chineses de hoje e o bebê pré-histórico viveram há 36 mil anos. Cruzando esses dados com estudos genéticos feitos antes, detectaram que esses ancestrais distantes viveram na Sibéria. E concluíram que os genes do bebê fazem parte de um povo até então desconhecido, e agora batizado como “beringuense” – ou seja, do Estreito de Bering –, que morava ali antes de o lugar virar mar.
Os beringuenses teriam dado origem aos nativos da América do Norte há mais ou menos 20 mil anos. E esses Homo sapiens dariam à luz povos que hoje conhecemos como Navarros, Maias, Astecas, Incas, Ianomamis, Guaranis. Enfim: a todas as populações que já existiam por aqui bem antes de sujeitos como Cabral virem molhar os pés nas nossas praias.
“A evidência genética aponta que os recém-chegados à América do Norte se moveram muito rapidamente em direção à América do Sul”, afirma Michael Waters, professor de antropologia da Universidade Texas A&M e uma autoridade quando o assunto é a ocupação da América do Norte. “Existem evidências indiretas indicando que esses pioneiros devem ter usado embarcações rudimentares para descer pela costa da Colúmbia Britânica. O transporte por mar explicaria a rapidez da movimentação dos humanos em um território desconhecido.”
Ou seja, foi dando pequenos saltos pela costa, fundando portos e mandando parte das tribos para o próximo ponto ao Sul, que os primeiros moradores das Américas percorreram os mais de 10 mil km de extensão de costa entre o Canadá e o Chile. A partir dali, bem mais lentamente, utilizaram os rios para avançar território adentro. (Curiosamente, os europeus também demoraram para sair da costa e iniciar os primeiros passos firmes rumo ao interior.)
Em diferentes pontos da América do Sul, os pioneiros encontraram tatus gigantes de 2 metros de comprimento e 800 kg de peso, mastodontes de 5 metros e 3.500 kg e a impressionante Catonyx cuvieri, uma preguiça gigante, que podia alcançar até 6 m de comprimento, 4 m de altura e 5.000 kg.
Prédios de conchas
Por alguns milênios, antes que a agricultura se desenvolvesse nas Américas, alguns grupos de coletores já viviam em condições confortáveis o suficiente para adotar uma vida sedentária. Eram comunidades estabelecidas em lugares de abundância de comida, em geral áreas de transição de ambientes, que favorecem a diversidade ecológica, como lagunas, restingas, manguezais e dunas. Um rapaz cujos restos foram encontrados por arqueólogos em 1999 viveu num lugar assim.
Ele tinha 1,60 m de altura. Viveu entre 25 e 30 anos, no atual vale do rio Ribeira do Iguape, no litoral sul de São Paulo. Morreu há 10 mil anos – é o paulista mais antigo de que se tem notícia. Comia carne de roedores, porcos-do-mato, veados e alguns tubérculos, e habitava uma das áreas conhecidas por seus sambaquis.
Sambaquis são morros de conchas, espalhados pelo litoral brasileiro, principalmente nas regiões Sudeste e Sul, mas também encontrados na costa do Uruguai. Formam estruturas impressionantes: esses cemitérios verticais feitos de conchas e restos de peixes chegam a ter 50 m de altura. Cada um podia ser usado por vários séculos, até ser substituído por novas construções. Um sambaqui do sul de Santa Catarina abrigou 40 mil corpos. Os corpos eram colocados em posição fetal e cobertos por restos de alimentos, enquanto a família fazia refeições fartas sobre o cadáver.
Os moradores dessas áreas não precisavam se deslocar em busca de comida, e puderam se dar ao luxo de diversificar funções. Havia todo tipo de “profissional” morando naquele grupo, como os caçadores, os coletores, os cozinheiros e os especialistas em construir sambaquis. Mas havia também, por exemplo, os pescadores de tubarões. Os dentes dos animais eram transformados em colares.
Pistas do passado
Quando se trata da ocupação das Américas, ainda faltam muitas peças para terminar o quebra-cabeça. São conhecidos indícios da existência de civilizações expressivas, mas as informações deixam mais dúvidas do que certezas. Por exemplo: oficialmente, a astronomia surgiu na Mesopotâmia, pelas mãos dos sumérios, por volta de 4500 a.C.
Mas havia um observatório 7 mil anos mais antigo, aqui onde hoje é o Brasil, usado para monitorar o movimento do Sol e da Lua, construído na região da Caverna da Pedra Pintada, no Pará, mais especificamente sobre a Serra da Lua.
O local tem todas as características de um observatório, e a padronagem das pinturas indica uma coerência com a linguagem visual utilizada em toda a região. “Entre todos os grupos de humanos do passado, no mundo inteiro, esse é um dos mais antigos casos de pessoas estudando o movimento dos astros”, afirma a antropóloga americana Anna Curtenius Roosevelt, professora da Universidade de Illinois e bisneta do presidente Theodore Roosevelt (ele também um pesquisador interessado na história da ocupação da Amazônia).
Mas sabe-se pouco sobre os pesquisadores que trabalharam ali, e a que conclusões chegaram. Isso porque dois problemas dificultam esse trabalho de reconstituição do passado remoto das Américas. O primeiro é a ausência de linguagem escrita. Em outros cantos do planeta, foi a escrita que garantiu que conhecêssemos a rotina, os líderes políticos e militares, as práticas religiosas, a filosofia e a produção científica de pessoas que viveram há 5 mil anos.
A outra questão é a ausência de um grupo étnico e linguístico unificado, como se observou na Europa, por exemplo. Ali, os idiomas remetem quase todos a uma única matriz, a indo-europeia, que influenciou quase todos os idiomas conhecidos, da Espanha ao norte da Índia.
Nas Américas, até poucos séculos atrás, grupos completamente diferentes surgiram. Duravam alguns séculos, eram incorporados por outros, de características distintas. Quando os europeus começaram a desembarcar, no fim do século 15, havia perto de 1.500 idiomas no continente. Por isso, não existe uma linguagem única, um desenvolvimento linear para analisar – com as gloriosas exceções de alguns povos que deixaram linguagem escrita, como os astecas e os incas.
No Brasil, civilizações relativamente avançadas surgiram e desapareceram até que, por volta de 3 mil anos atrás, as linhagens que deram origem aos povos indígenas que conhecemos começou a avançar, lentamente, até ocupar boa parte do que hoje é o nosso país. Esse é a verdadeira história do Descobrimento.