Texto Bruno Garattoni e Ricardo Lacerda, com reportagem de Fernanda La Cruz
Ilustração Rafael Sica | Cores Yasmin Ayumi | Design Juliana Caro
Texto originalmente publicado pela Super em outubro de 2019
Em 1973, o americano Robert King foi preso pela terceira vez. A polícia o levou para a cadeia de Nova Orleans, onde ele conheceu membros dos Panteras Negras: um grupo que misturava ativismo com violência e havia matado pelo menos três policiais nos EUA. King se juntou a eles numa greve de fome para exigir melhores condições carcerárias. Não conseguiu, e foi transferido para a Penitenciária Estadual da Louisiana, também conhecida como Angola (no século 19, lá ficava uma plantação onde trabalhavam escravos trazidos desse país). Ao chegar, foi colocado na solitária – na qual passaria os 29 anos seguintes. Foram três décadas incrivelmente, absurdamente, sozinho. King recebia as refeições por baixo da porta e só podia sair do cômodo, de 2×2,5 metros, uma hora por dia (quando ficava isolado numa gaiola de arame farpado, sem poder falar ou se aproximar dos outros presos).
Em 2001, aos 59 anos de idade, ele foi solto. Ao tentar se readaptar à vida em sociedade, descobriu que não conseguia mais reconhecer rostos nem seguir rotas para ir a algum lugar, e se tornou objeto de interesse da ciência – em novembro do ano passado, King foi convidado a contar sua história no congresso da Sociedade Americana de Neurociência.
O caso dele é notável porque nunca um ser humano havia sido submetido a um período de isolamento tão longo e mesmo assim sobrevivido com lucidez para contar como foi. A solitária geralmente enlouquece suas vítimas, e há razões concretas para isso. Estudos com ratos de laboratório revelaram que um mês isolado deforma o hipocampo (região cerebral que coordena a formação de memórias), desregula a atividade da amígdala (ligada ao medo e à ansiedade), mata 20% dos neurônios do cérebro – e, após o primeiro mês, começa a destruir as conexões entre os que sobraram. Um mês representa bem mais tempo, na vida de um rato, do que um mês na vida humana. Mas, em ambos os casos, a conclusão é a mesma: isolamento prolongado tem consequências neurológicas.
Ficar sozinho pode fazer muito mal. E não só para quem está trancafiado numa cela. Você já deve ter se sentido solitário, e sabe o quão desagradável isso é. A solidão pode ser objetiva, ou seja, derivada de um isolamento real, ou subjetiva, uma sensação criada pela mente (esse tipo de solidão se manifesta, por exemplo, quando nos sentimos sós mesmo estando cercados de outras pessoas). Em ambos os casos, ela é um alerta do organismo para que busquemos a companhia de outras pessoas, o que aumenta nossas chances de sobrevivência.
Isso era tão verdadeiro na Pré-História (o homem das cavernas precisava da ajuda do grupo para caçar e se defender de predadores) quanto é no mundo de hoje – se você não fizer networking, fica muito mais difícil conseguir um bom emprego. A novidade é que, por motivos ainda não elucidados, a solidão parece estar aumentando – a ponto de se tornar uma epidemia.
Nos EUA, nada menos que 76% das pessoas apresentam níveis moderados ou altos de solidão, segundo um estudo da Universidade da Califórnia1. Na década de 1980, cada americano tinha em média 2,94 amigos “do peito”. Em 2011, a média nacional havia caído para apenas 2,03 amigos próximos. Na Inglaterra, 66% da população apresenta sintomas de solidão crônica; e quase 50% das pessoas acham que o mundo está ficando mais solitário.
Não há números a respeito no Brasil, mas os indicadores mais relevantes apontam na mesma direção. Entre 2004 e 2014, o número anual de divórcios aumentou 250% (12 vezes mais que o aumento no número de casamentos). Entre 1991 e 2019, a quantidade de pessoas que moram sozinhas subiu 340% (dez vezes mais que o crescimento da população como um todo).
Em suma: a solidão é onipresente, e está crescendo. O problema é que ela mata. Solitários têm 29% mais chances de sofrer de doenças cardíacas; 32% mais risco de ter um AVC; e são 200% mais propensos a desenvolver Alzheimer. Em mulheres solitárias, a reincidência de câncer de mama é 40% maior, e a propensão à letalidade chega a 60%.
Quem já experimentou um grau elevado de solidão tem três vezes mais chances de cair em depressão2. Somando todos os fatores envolvidos, a solidão crônica (ela é medida pelo UCLA Loneliness Scale, teste que foi desenvolvido pela Universidade da Califórnia e você pode fazer no final desta página) aumenta em até 50% o risco de morrer, segundo uma pesquisa publicada pela psicóloga americana Julianne Holt-Lunstad, que analisou os dados de 148 estudos3.
A solidão é mais letal do que a obesidade (que eleva em 20% o risco de morrer) e o alcoolismo (30% a mais de risco), e consegue ser tão nociva quanto o tabagismo; é tão mortal quanto fumar 15 cigarros por dia. Mas quase ninguém se dá conta disso. “Apesar de estar associada a altos índices de mortalidade, a solidão é uma questão de saúde pública amplamente ignorada”, afirma a psicóloga Michelle Lim, do Centro de Pesquisas em Ciências Cerebrais e Psicológicas da Universidade de Swinburne, na Austrália, e especialista no assunto.
Mas como a solidão, um fenômeno psicológico, pode ter efeitos tão profundos sobre o resto do organismo, a ponto de matar? E por que ela se tornou uma epidemia no mundo moderno?
1. High prevalence and adverse health effects of loneliness in community-dwelling adults across the lifespan. Ellen E. Lee e outros, 2018.
2. Loneliness and social isolation as risk factors for mortality: a meta-analytic review. Julianne Holt-Lunstad e outros, 2015.
3. Social Relationships and Mortality Risk: A Meta-analytic review. Julianne Holt-Lunstad e outros, 2010.