Texto: Guilherme Eler | Design: Carlos Eduardo Hara | Ilustrações: Bernardo França | Edição: Alexandre Versignassi
Um carro sobe a ladeira na zona norte de Belo Horizonte (MG) para fazer sua primeira entrega do dia. Nada de pacotes lacrados ou caixas de delivery: as encomendas, na verdade, são cilindros de plástico compridos – como se fossem versões king size de tubos de ensaio. Dentro de cada um dos tubos, vivem 150 exemplares de mosquitos Aedes aegypti, confinados por uma tela amarrada com elástico. A cada 50 metros, o veículo desacelera e, pela janela, mais uma carga de insetos ganha liberdade. Não se trata de uma tentativa de sabotagem ou terrorismo científico. Pelo contrário. Espalhar mais mosquitos Aedes nas cidades é, hoje, a aposta mais promissora para controlar a ocorrência de doenças como dengue, zika e chikungunya.
Os mosquitos soltos no experimento parecem idênticos aos convencionais. Também gostam de colocar seus ovos em caixas d’água ou pratos de planta e de beber sangue humano no almoço. Mas têm uma vantagem: foram programados para serem resistentes a vírus que causam doenças. Não há qualquer modificação genética no processo. A resistência é garantida por uma bactéria do gênero Wolbachia, que bloqueia a reprodução dos parasitas causadores de doenças no interior do mosquito.
Apesar de morarem nas células de mais ou menos 60% dos insetos que vivem na natureza, bactérias Wolbachia não costumam dar as caras nos Aedes aegypti. O que os cientistas fizeram, então, foi inseri-las em laboratório, criando uma versão de Aedes livre de dengue. Ao se acasalarem com os mosquitos que já vivem nas cidades, os insetos recém-chegados passam a bactéria aos seus descendentes. Se tudo correr como o esperado, em pouco tempo a maioria da população é substituída por mosquitos com Wolbachia. E, por tabela, o número de casos de arboviroses – como dengue, zika e chikungunya – na região cai.
A ideia faz parte de uma iniciativa do World Mosquito Program (WMP), projeto australiano chefiado por Scott O’Neill, microbiologista da Universidade de Monash. Há décadas, O’Neill pesquisa doenças ligadas a mosquitos, na tentativa de encontrar uma forma de impedir que os bichos passem vírus a humanos.
1,5 milhão
de casos de dengue foram registrados no Brasil em 2019 – 488% a mais que 2018.
No início dos anos 2000, sua aposta foi usar a popcorn, um tipo de bactéria Wolbachia encontrada em moscas-das-frutas, para infectar Aedes aegypti. Moscas com a tal bactéria vivem 50% menos, já que, depois de alguns dias, o micróbio explode os neurônios delas – como uma pipoca na panela. “Então, O’Neill pensou: se a gente colocar a bactéria no Aedes aegypti, e ele viver metade do tempo que normalmente vive [cerca de um mês], talvez o vírus não tenha o tempo necessário para se replicar dentro dele”, explica Luciano Moreira, pesquisador da Fiocruz Minas e líder do WMP Brasil. Assim, os Aedes bateriam as botas antes mesmo de conseguirem infectar humanos.
O problema é que a tarefa era extremamente complexa. Se quisessem fabricar Aedes com Wolbachia, cientistas precisariam, primeiro, inserir a bactéria em embriões do inseto. Foram quatro anos até que os australianos aprendessem a injetar o micróbio em ovos de Aedes sem danificá-los. Isso aconteceu apenas em 2008, conta Moreira, que fazia seu pós-doutorado na Austrália à época e acompanhou de perto o trabalho do grupo. De início, pensou-se que o tiro havia saído pela culatra: Aedes com a popcorn acabavam vivendo muito pouco – tão pouco a ponto de não conseguirem se reproduzir e passar a Wolbachia para uma geração seguinte. Mas uma descoberta inesperada aposentou a popcorn, e deu vida nova ao projeto.
Um aluno de O’Neill percebeu que não era necessário usar a tal popcorn. Dentro dos Aedes aegypti, quase todas as linhagens de bactéria Wolbachia conseguem bloquear a reprodução de vírus. Bastava, então, escolher uma Wolbachia diferente para infectar o mosquito – uma que não explodisse seus miolos, claro. A Wolbachia vive dentro das células do inseto e usa o maquinário delas para se replicar, inibindo a multiplicação viral. O vírus, assim, não chega em quantidade suficiente à saliva do inseto, e a picada do Aedes tem menos chance de causar doenças em humanos. “A ideia de reduzir o tempo de vida do mosquito [com a popcorn], então, caiu por terra”, conta Moreira. Era a chance que pesquisadores precisavam para criar um Aedes aegypti menos propenso à dengue. O passo seguinte era testar a eficácia da ideia, liberando os mosquitos com Wolbachia (também chamados de wolbitos) no ambiente.